Causa sem culpa

Alex Atala promove debate sobre cadeia do alimento e quer incluir "vilões" na conversa

Carina Martins Colaboração para Ecoa André Giorgi/UOL

"Quando você olha a relação do homem com o alimento, ela parece colapsada. Por isso as reações são tão violentas", afirma o chef Alex Atala, criador, ao lado do pesquisador e produtor cultural Felipe Ribenboim, do seminário FRU.TO - Diálogos do Alimento, cuja terceira edição começa nesta sexta-feira (24). Mas Atala não está com jeito de quem se sente paralisado pela ideia de um apocalipse de resíduos e sangue animal; na verdade, está fascinado por possibilidades que tem conhecido pelo mundo, ainda que elas possam ser, também, potencialmente um tanto assustadoras - alimentam essa percepção fazendas marinhas e a ideia de que a extinção de espécies, talvez, não seja assim esse drama todo.

"Uma coisa muito legal nas palestras [do FRU.TO] é que quase todas te levam ao desespero. E depois apontam uma saída", afirma Atala. Felipe concorda: "A ideia é colocar as questões em discussão. Dar foco, luz, mas também a possibilidade de modelos inspiradores. Pensar em solução e possibilidades". Em 2020, o evento trata a água como um dos temais centrais, ao lado do alimento como saúde. Temas apresentados nos anos anteriores continuam em debate, como desperdício de comida, educação alimentar, antropologia e políticas públicas. Ao todo, serão 27 palestrantes de diversos países, com transmissão ao vivo em Ecoa.

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Chamem os vilões

Além do seminário, o FRU.TO gera ações, parcerias e apoios. A proposta é ser um pensamento que se organiza necessariamente em três eixos. "A gente precisa ativar poder público, indústria e consumidor. Não posso jogar responsabilidade só para consumidor, indústria ou poder público. Tem que ser feito com os três juntos", afirma Felipe.

Ah, não espere purismo: eles acreditam que é fundamental não excluir da conversa nenhum dos atores da cadeia. Nem os mais impopulares.

Em 2019, o evento trouxe representantes Grupo de Agricultura Sintrópica. "Esses caras são filhos de grandes fazendeiros, monocultura, poderosos, agroindústria, química. Hardcore. Só que eles estão querendo reinventar o modelo", diz Atala. "Pegaram o Ernst Götsch como referência e tão ali. Hoje, produzem 1000 hectares de soja orgânica, estão entrando em um modelo de produção novo. Eles fizeram um evento este fim de semana em Mineiros, Goiás. Eu fui até lá. Então você já começa a ver que tem uma troca", completa.

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Fora do padrão

O chef gosta de citar o trabalho que fizeram junto ao maior produtor de ovos orgânicos do país. Comercialmente, "eles não precisam de mim nem do FRU.TO", diz. Mas tinham uma questão real: galinhas jovens botam ovos pequenos e disformes, desprezados pelo mercado. O varejo só aceita ovos de um certo padrão, o que significa que a produção de cerca de um mês e meio de vida das galinhas era lixo. Ruim para o modelo de negócio e para qualquer aspecto ambiental. Esses ovos, então, ganharam um selo do FRU.TO e passaram a ser usados nos restaurantes de Alex Atala.

Um dos conceitos trabalhados pelo instituto de Atala que abriga o FRU.TO é, justamente, criar mercado e valor para certos alimentos, como produtos autóctones pouco conhecidos cultivados por comunidades tradicionais. Ou ovos fora de padrão produzidos pela família Diniz.

Há décadas foco de atração de partes iguais de admiradores, críticos e investidores, Atala diz que está com "zero vontade de brigar" e muita de congregar. Isso significa, por exemplo, ver qualidade em ações imperfeitas e conversar com discordantes. Ser garoto-propaganda de café em cápsula e promover ações concretas de sustentabilidade, como a criação de um mercado real para ovos (orgânicos) de galinhas jovens, até então um expurgo da indústria.

Nós não somos críticos. Temos erros. Faço erros na minha casa, faço erros no meu restaurante. E a gente faz coisa legal também. Toda ação nesse caminho eu acho que merece celebração, sem nem por isso ser poupada. O FRU.TO é um espaço de discussão. Isso é fundamental pra gente

Alex Atala, chef

Essa postura fica mais clara com um exemplo concreto. O nome célebre do chef, junto à demanda do mercado por marcas sustentáveis, gerou uma previsível corrida de grandes empresas querendo uma fatia do bolo, ou do fru.to, com ofertas para bancar o evento inteiro. O conhecido "greenwashing", prática de marketing usada por marcas que buscam uma imagem mais positiva de sua responsabilidade ambiental. "A gente sabe disso", diz Atala. "Se alguém perguntar: 'Alex, você vai contestar isso?' Provavelmente, não. 'Você vai deixar a empresa participar?' Óbvio que não. 'E esses caras vão ser segregados da discussão?' Não! De forma alguma!", afirma. E então? "Hoje, a gente está num movimento de convencimento dessas empresas que tinham dinheiro para botar no FRU.TO para que, nas mesmas datas que a gente, façam seus próprios eventos, e contem as suas verdades. A minha verdade não é a maior de todas, não é única. Eles têm as crenças e valores deles, e eu acho que tem que ser discutido isso", afirma.

"A gente tá com vontade de confraternizar. Talvez não na mesma mesa, no mesmo espaço, mas sobre o mesmo assunto. Na mesma semana. No mesmo país. Gerar conteúdo. Todos nós vamos trazer mais jornalistas. O FRU.TO ambiciona ser um movimento."

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Brasil no centro

A geração de conteúdo de que Atala tanto fala está no cerne de sua grande paixão pelo alimento como elo entre homem e natureza. E, nesse sentido, o chef que há 20 anos levou ingredientes brasileiros ao topo da alta gastronomia vê um potencial ainda maior para o país e a América Latina.

"O Brasil é o único lugar no mundo que pode falar sobre alimento em todos os seus momentos", afirma, frisando o "todos". "De comunidades isoladas a metrópoles, de agricultura familiar a megaempresas, todos os atores da cadeia do alimento estão aqui. Ninguém tem tanta propriedade para discutir quanto o Brasil e a América Latina, as grandes fontes geradoras de conteúdo de alimento. O maior ponto gerador de alimento, e tem que ser o dono do conteúdo do alimento, é América Latina, é o Brasil", afirma.

Isso tudo, diz ele, é graças à sociobiodiversidade . O conceito, segundo o Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário, se refere a "bens e serviços gerados a partir de recursos da biodiversidade, voltados à formação de cadeias produtivas de interesse de povos e comunidades tradicionais e de agricultores familiares, que promovam a manutenção e valorização de suas práticas e saberes, e assegurem os direitos decorrentes, gerando renda e promovendo a melhoria de sua qualidade de vida e do ambiente em que vivem". De maneira mais ampla, inclui as demais variações de atores humanos (e CNPJs) da cadeia do alimento.

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"O conhecimento (para acessar a natureza) está na mão dessa sociobiodiversidade. Os saberes tradicionais, os saberes do pequeno produtor, do produtor de escala. A gente tem que aproximar. Essa é uma das coisas que a gente fala no Instituto ATÁ: aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir e o produzir da natureza", afirma.

O Instituto ATÁ é uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) criada em 2013 com o objetivo de "agir em toda a cadeia de valor, com o propósito de fortalecer os territórios a partir de sua biodiversidade, agrodiversidade e sociodiversidade, para garantir alimento bom para todos e para o ambiente".

Na prática, realiza um trabalho de "pesquisa, valorização e preservação" de alimentos autóctones, por meio de parcerias com comunidades tradicionais e agricultores familiares para "fortalecer o sistema produtivo" e criar mercado para produtos brasileiros pouco conhecidos. Ou seja, as ações propostas tendem a acontecer dentro do sistema vigente - criando mercado para comunidades tradicionais ou ovos que eram jogados fora, por exemplo.

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Engajamento e culpa

O chef com cara de durão que não se esquiva de polêmicas - a ponto de matar uma galinha ao vivo no palco do MAD Food Camp, evento dinamarquês que inspirou o FRU.TO - talvez enxergue que, em tempos espinhosos, os provocadores podem ser aqueles que acomodam em vez de cutucar.

O Brasil hoje é muito áspero. Parece que tudo é ruim, que não tem nada bom. É isso mesmo? É assim que nós vamos tratar a gente mesmo pelo resto da vida?

Alex Atala, chef

A abordagem mais esperançosa do que apocalíptica faz parte, também, da tentativa de aumentar o engajamento nas ações, especialmente de jovens. "Estamos sempre pensando na edição seguinte. E eu acho que a gente termina esse FRU.TO 2020 já com essa ideia de engajamento. A gente vê isso não só politicamente, socialmente ou eticamente, mas em como se relaciona com tudo isso. Eu continuo comprando algo com embalagem? Onde foi produzido esse alimento? Qual é a alegria da mão de obra envolvida nele?", explica Felipe.

Nesse sentido, Atala e Felipe querem afastar do debate e das ações qualquer sentimento de culpa. "Como é que eu vou engajar jovens e crianças num futuro próximo se a mensagem que passo para eles é desesperadora, amarga, jogando culpa nesses meninos?", questiona Atala. "A mola matriz hoje da atitude sustentável é baseada em culpa. As crianças estão virando veganas por culpa. Não! Que virem por convicção. Por amor."

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