Sem medo de arriscar

Presidente da GM, Carlos Zarlenga fala sobre futuro da indústria e ameaça (ou não) de saída do Brasil

Fernando Calmon e Vitor Matsubara Do UOL, em São Paulo Marcelo Justo/UOL

Poucos executivos da indústria automotiva se envolveram em uma polêmica tão grande em 2019 como Carlos Zarlenga. Mas não por causa das atitudes ou declarações deste argentino de gestos discretos e personalidade forte.

Presidente da General Motors do Brasil desde 2016, Zarlenga ainda liderava as operações do Mercosul quando sugeriu que a empresa poderia deixar o Brasil. O caso veio à tona após o vazamento de um comunicado interno no qual o executivo dizia que a empresa teve "prejuízo agregado significativo no período de 2016 a 2018" e que iria "tomar todas as ações necessárias" para deixar de perder dinheiro.

Após vários desdobramentos e incertezas, a GM conseguiu um novo acordo que garantiu abatimento de 25% no ICMS. Em troca, a empresa confirmou um investimento de R$ 10 bilhões nas fábricas de São Caetano do Sul e São José dos Campos até 2024, que devem garantir a manutenção de aproximadamente 15 mil empregos gerados pela empresa no Estado.

Já Zarlenga saiu fortalecido do episódio e assumiu o comando da GM América do Sul em abril. Viveu um ano sem maiores sustos até os dois casos de incêndio do Onix Plus, que culminaram em um recall envolvendo mais de 19 mil carros para atualização de um software da central eletrônica do sedã. Os incidentes aconteceram apenas uma semana após conversar com UOL Carros - daí o motivo de não ter se pronunciado sobre o assunto nesta entrevista.

Durante uma hora de entrevista, o argentino foi sincero e não fugiu de nenhum assunto. Falou sobre o supracitado episódio de deixar o país, criticou as dificuldades com exportações e disse que o nível de exigência do consumidor de carros de entrada está longe de ser o mesmo de antes. Teve tempo até para fazer suas previsões para o futuro da indústria.

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Risco de reduzir operações no Brasil era real

Parecia que 2019 seria um ano tranquilo para a General Motors. O Onix fechou seu quarto ano na liderança absoluta de vendas no Brasil e havia motivos de sobra para comemorar. Mas declarações do alto escalão da empresa abalaram as estruturas da empresa logo nas primeiras semanas.

Tudo começou quando a presidente global da fabricante, Mary Barra, disse que a companhia estaria revendo suas operações na América do Sul porque não quer "investir para perder dinheiro".

O presidente da companhia na região, Carlos Zarlenga, emitiu então um comunicado interno endossando o posicionamento de Barra. E foi além: na carta, o executivo disse que a empresa vivia "momento muito crítico" e que os prejuízos registrados no Brasil nos últimos três anos "não podem se repetir".

A notícia caiu como uma bomba nos corredores da General Motors e deixou muita gente surpresa. Até agora tudo não passou de mera especulação, e logo surgiram acusações de que a medida foi um blefe por parte da empresa para conseguir mais benefícios do governo. Zarlenga discorda totalmente deste posicionamento.

"Nós havíamos acabado de concluir um investimento de R$ 13 bilhões referentes ao período de 2014 a 2019. Além de ser um dos mais importantes da história da GM, esse investimento ocorreu em um ciclo que não foi bom para a indústria automotiva. E, como nessas horas você precisa decidir qual será o próximo ciclo de investimento, foi inevitável pensar: 'preciso investir nas minhas fábricas de São Paulo porque (a planta de) Gravataí já tinha um investimento anterior, mas, se eu não fizer isso, esses produtos vão deixar o mercado".

"Seria uma situação complexa e a imprensa bateu muito na tecla de "a GM vai sair do Brasil". Na realidade, a GM tinha duas plantas com risco de ser desalocadas, ou seja, não receberem investimentos. Se isso acontecesse, a gente conseguiria manter a empresa só com (a fábrica de) Gravataí? Você mantém a rede (de concessionárias)? Realmente você consegue ter uma empresa desse jeito? Não sei. Pode conseguir ou não, mas haveria uma mudança enorme. Então, meu sufoco era viabilizar esses investimentos", afirma.

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Exportar é caminho, mas Brasil impede competitividade

Embora a indústria tenha dado sinais de (lenta) recuperação frente aos maus resultados dos últimos anos, Zarlenga alerta que a oscilação do valor do Real aumenta a dificuldade de viabilizar investimentos.

"No Brasil é necessário ter um pé de exportação. Se você não tem um pé de exportação, não sabe qual vai ser o retorno do investimento, porque com o dólar a R$ 2 é uma coisa, com o dólar a R$ 5, é outra. Então, é uma loteria. Como a gente faz? Temos que exportar para toda América do Sul", disse Zarlenga.

O mandatário da GM, porém, reclama do chamado "Custo Brasil". Segundo Zarlenga, a alta carga tributária e os gastos com processos trabalhistas dificultam a competitividade nas exportações.

"A carga tributária no Brasil é totalmente absurda. Estou exportando 20% de impostos e claro que o cliente chileno não vai pagar os impostos brasileiros, até porque ele não se beneficia dos bens e serviços do Estado brasileiro", comentou.

"98% dos processos trabalhistas do mundo estão no Brasil. O custo é altíssimo. Olha a loucura. Nós temos uma capacidade instalada de Mercosul, além do Brasil, para fazer 5 milhões de carros e não conseguimos exportar para ninguém. Que indústria no mundo tem essa capacidade e não exporta? Não exportamos por melhorias que têm que ser feitas no custo trabalhista, na parte regulatória e na parte logística", completou.

Zarlenga ainda fez ressalvas sobre os impactos que o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia possa trazer à indústria nacional. Para o executivo, os altos custos produtivos fazem com que o país não tenha competitividade para concorrer com outros mercados mais preparados.

"Não controlo os processos trabalhistas, cargas tributárias, carga impositiva sobre o total da empresa. Não controlo o custo da energia, a ineficiência logística. Não estamos contra a redução da tarifa externa comum, mas quero ver os planos de redução do 'Custo Brasil', que estejam entrelaçados com isso".

Se ocorrer a abertura [e nada mudar], o que vamos fazer? Simples. Somos uma multinacional. Se não houver mudanças, levamos os investimentos do Brasil para outras fontes e vamos atender o mercado brasileiro do México, China ou Coreia, sem nenhum problema"

Carlos Zarlenga, sobre altos custos de produção no Brasil

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Bolsonaro e novo governo argentino precisam se entender

Brasil e Argentina são importantes parceiros comerciais e dependem um do outro para praticamente tudo que envolve a economia de cada nação. Prova disso está no desempenho da indústria brasileira, cujas exportações foram duramente afetadas pela crise no país vizinho. Um abalo de relações, como ocorreu recentemente entre o governo Bolsonaro e o recém-eleito presidente argentino Alberto Fernández, preocupa as empresas que têm relações com os dois países.

Na condição de presidente da General Motors América do Sul, Zarlenga crê que os governos poderiam unir forças para pleitear melhores condições para ambos.

"A relação bilateral entre Brasil e Argentina é mais importante que qualquer governo. Quem tenha a responsabilidade de governar, seja na Argentina ou no Brasil, precisa colocar essa relação (entre os países) como prioridade porque temos uma relação histórica muito importante. Temos um futuro muito importante em parceria e, além de tudo, estamos condenados geograficamente a trabalhar juntos", opinou Zarlenga.

"Só que esse acordo precisa ser pensado para o crescimento de ambos. Podemos combater a ineficiência juntos e trilhar um caminho unificado que aumente a competitividade dos dois países no cenário mundial. Se trabalharmos separadamente é como se você fosse da União Europeia e decidisse deixar um sistema de fábricas de um lado e o outro sistema do outro lado. Cadê a eficiência disso?", questiona.

Como manter preço e melhorar carro mais vendido do Brasil

Campeão absoluto de vendas nos últimos cinco anos, o Onix foi totalmente renovado em 2019. A nova linha de compactos (formada por hatch e sedã, agora chamado de Onix Plus) foi projetada na China com ajuda de profissionais brasileiros, e estreou no país com status de produto global.

Impressionou não apenas pelo design repaginado, mas também por outros importantes atributos. Além da generosa lista de equipamentos, os modelos trouxeram tecnologias pouco comuns para a categoria, como internet 4G a bordo, assistente de estacionamento semiautônomo e 6 airbags - este item oferecido de série em todas as versões. Somado a tudo isso veio uma política agressiva de posicionamento, mantendo os preços praticados na geração anterior.

"Desenvolver o novo Onix foi um grande desafio. Estamos falando da segunda geração do carro mais bem-sucedido do mercado brasileiro na atualidade e da história da GM. Foi um projeto pensado para manter a liderança de vendas. Pensamos em quatro fatores fundamentais para o carro ganhar. Um era o desenho. Viu como o carro ficou maior? Hoje em dia tudo é maior. Seu hambúrguer é maior, seu celular é maior e o carro também".

"A segunda parte foi a conectividade. Você imagina levar seu telefone celular na loja para pegar um update de software? Para descer o novo aplicativo? Você nem imagina, mas seu carro você leva na concessionária. No novo Onix não faz mais isso. O terceiro é segurança: o carro pegou cinco estrelas [no Latin NCap], está no mais alto patamar. E a última é tão importante quanto o carro para todos: lançamos com o mesmo preço [do anterior]", disse Zarlenga.

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Consumidor está mais exigente e conectado

Segundo Zarlenga, a criação do novo Onix e de outros lançamentos da GM têm levado em consideração uma mudança no perfil do consumidor de carros: "Nossa visão de mundo mudou, ela não é a mais a mesma de sete ou oito anos atrás. O projeto do novo Onix se baseia em quatro pilares: design, conectividade, segurança e desempenho. Todo mundo deseja ter tudo isso em um carro".

"Quando falamos em desempenho, o carro precisa tem a maior autonomia, a melhor eficiência de combustível e a melhor performance da categoria. A segurança também mudou, é realmente importante na cabeça das pessoas. E quanto ao design, você se identifica com os produtos que consome. Por isso o Onix precisava ter a cara dos clientes, até porque se você não se enxerga no veículo você não vai comprá-lo".

Dos quatro itens, porém, Zarlenga considera a conectividade como 'chave' na mudança do perfil de compra dos consumidores: "Quem consegue deixar o telefone celular na mesa por mais de 15 minutos? Então o carro precisava ter Wi-Fi, até porque muitas vezes você chega em um restaurante e já pede a senha do Wi-Fi antes de olhar o cardápio".

A segurança pode até ser um diferencial de compra, mas deveria ser algo presente em qualquer carro. Mas aí você entra em outras discussões. Se colocamos um carro de entrada com preço mais acessível a um patamar de segurança menor que de outros carros, ainda é mais seguro do que uma moto".

Carlos Zarlenga, sobre a importância dada ao consumidor à segurança dos carros

O Onix já teve três estrelas, depois zero, aí novamente três e agora cinco. Amanhã aparece outro protocolo e o carro cai para duas estrelas. E tudo bem. Desde sua concepção e do lançamento em 2013, o Onix sempre foi pensado para o patamar de segurança da época. Já o novo Onix foi pensado para o atual patamar"

Carlos Zarlenga, sobre a nota 'zero' recebida pela primeira geração do Onix em teste do Latin NCap em 2017

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Ter bom carro é mais importante que motorização

A entrevista com Zarlenga foi realizada durante o lançamento do Chevrolet Bolt, grande aposta da montadora para entrar com força no mercado de elétricos. O executivo vê o novo produto como o início de uma série de novos carros que devem chegar nos próximos anos e que apontam como o futuro da indústria automotiva.

"O ano que vem já vem vários elétricos mais e vamos ter quase 25 elétricos em poucos anos, três, quatro anos. Então, o portfólio vai crescer rapidamente", disse Zarlenga.

O preço elevado dos modelos elétricos não são vistos pelo mandatário da GM como obstáculo para o volume de vendas. Zarlenga aposta que o aumento de opções de elétricos no mercado e de postos de recarga contribuam para a popularização dos veículos com este tipo de motorização e nega que tal investimento seja feito apenas pensando em posicionamento de marca.

"Não temos uma projeção de vendas fechada, porque quero me surpreender, quero ver quanto ele consegue vender. O que eu, sim, tenho é a concepção do produto. A motorização não é a razão de venda, mas o carro em si mesmo. Porque tem dez airbags, a melhor performance que você tem nessa faixa de preço, 0 a 100 km/h em 7s, o consumo é bem baixo, a tela 10 polegadas, toda a conectividade... É um produto que vai muito além de ser elétrico", defendeu.

Não quero que as pessoas comprem o Bolt porque ele é elétrico. Quero que as pessoas comprem porque ele é um grande carro e elétrico

Carlos Zarlenga, sobre a entrada da GM no mercado de carros elétricos

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Planos para o futuro não passam por fusão

A recente fusão entre FCA Fiat Chrysler e PSA-Peugeot Citroën movimentou o fim de ano da indústria automotiva mundial. Caso o acordo realmente seja firmado, o novo conglomerado será o quarta maior da indústria do setor no mundo, superando exatamente a General Motors.

Porém, poucos lembram que a FCA procurou a GM quatro anos antes de se acertar com a PSA. A proposta (posteriormente recusada) foi feita pelo então CEO, Sergio Marchionne, diretamente à Mary Barra, CEO da General Motors.

"Também fomos chamados para fusões. Uma das propostas, aliás, foi muito pública. Porém, já faz um tempo que estabelecemos um planejamento claro de eletrificação e estamos fazendo os investimentos para isso. Haverá mais investimentos em novas tecnologias do que em tecnologias tradicionais nos próximos anos. Então acho que as fusões que estamos vendo no mercado provam que nossa estratégia de investir bem antes (em relação a alguns rivais) estava certa", comentou Zarlenga.

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Ainda é cedo para avaliar impacto dos autônomos

A GM é uma das fabricantes que mais investem em estudos de condução autônoma. Desde 2016 a fabricante é dona da Cruise Automation, empresa especializada no desenvolvimento deste tipo de tecnologia.

"Até pouco tempo atrás estávamos fazendo demonstrações da tecnologia autônoma, mas o tempo passou e hoje todo mundo precisa desenvolver tecnologias que ainda não existem. Nosso caminho está bem definido, já que nosso objetivo era chegar até a tecnologia. Vamos ver o que acontece, mas será bem interessante", afirmou.

"Posso dizer, inclusive, que temos tecnologia autônoma nível 1 em um carro de entrada no Brasil (o sistema de assistência a estacionamento do Chevrolet Onix), algo que ninguém mais tem. O ponto real é quando você vai conseguir ter um carro completamente autônomo à venda no mercado. Aí a GM tem uma grande vantagem".

Zarlenga acredita que ainda é cedo para dizer se as pessoas estariam dispostas a abraçar o carro autônomo, mas não descarta que a maioria abandone de vez os automóveis convencionais: "Ainda não podemos responder essa pergunta hoje. Precisamos esperar o serviço estar disponível e esperar que as pessoas experimentem antes de tirar qualquer conclusão".

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Locação não deve ser foco das montadoras

As discussões sobre o futuro dos automóveis ganharam força nos últimos anos, principalmente com o surgimento de novas formas de mobilidade e novos usos dos carros através de autônomos e serviços de carsharing.

Algumas montadoras, como a Toyota e recentemente a CAOA, passaram contar com o serviço de locação de carros para os clientes. A própria GM já fez testes junto a funcionários de todas as suas fábricas no país. Zarlenga acredita no sucesso deste modelo de negócio, mas não o vê como a galinha dos ovos de ouro para a indústria.

"Vou falar minha opinião, e não a da GM. O modelo de negócio que vem para o futuro sempre gera discussões. Basicamente existem dois modelos de compartilhamento. Um deles é o peer sharing, no qual você pode alugar seu carro para quem quiser utilizá-lo - uma forma de obter receita no tempo em que seu automóvel ficaria parado. Outro modelo de negócio é o carsharing, no qual eu, GM, tenho uma frota gigantesca espalhada por toda a cidade. Você abre o aplicativo, reserva o carro, faz o pagamento e eu te entrego o serviço", explicou.

"É a melhor saída para quem quer um serviço que funcione. Mas é o melhor modelo de negócio? Pode ser para o cliente, mas acho que é mais ainda para quem já está no negócio, como as locadoras. Acho até que pode ser viável para nós (montadoras), mas não vejo esse cenário como completamente favorável", conclui.

Nunca deixarei de ter um carro porque sou fanático por eles. Mas posso ter meu carro e usar um desses serviços no dia-a-dia. Vamos construir o produto e entregar o serviço e a experiência para o cliente, e só aí a gente vê o que fazer".

Carlos Zarlenga, sobre o futuro do mercado automotivo

Em 2007 não existia iPhone, não tinha smartphone e nem dava para acessar Youtube no seu telefone. Lembra das mensagens de texto nos telefones? Olha como as coisas mudaram rápido. O futuro vai ser superinteressante e reserva uma mudança sensacional".

Carlos Zarlenga, sobre as mudanças de mercado nos próximos anos

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