Todos iguais?

Diversidade entra no radar das montadoras, mas realidade mostra poucas oportunidades a mulheres e negros

Vitor Matsubara Do UOL, em São Paulo Pedro Danthas/Volkswagen

Faz muito tempo que a indústria automotiva é um dos setores com maior presença masculina na economia brasileira. Desde a abertura das primeiras fábricas até os dias de hoje, os homens respondem pela maioria dos empregados em montadoras de automóveis e fornecedores no geral.

É claro que o cenário não é mais o mesmo de cinco décadas atrás, mas estamos muito longe do ideal. Hoje, apenas 19,7% dos funcionários são mulheres. A situação fica ainda pior nos cargos de liderança: há apenas uma mulher no comando de uma montadora no país.

Se a situação atinge o público feminino, imagine como sofrem outros grupos. Não há negros na presidência e a presença nos conselhos das empresas é de apenas 2%.

O UOL Carros conversou com diversos setores da indústria e contou com a ajuda de levantamento publicado em 2020 pela "Automotive Business", com participação de 89 empresas que integram a cadeia automotiva, para traçar um raio-x da diversidade na produção de veículos no Brasil.

Pedro Danthas/Volkswagen
Keiny Andrade/UOL

Elas no comando

São as mulheres que respondem pelas decisões de compra de automóveis no país. Mesmo assim, a presença delas dentro do setor ainda é tímida. E, em cargos de liderança, dá para contar nos dedos de uma mão - e não só no Brasil.

Mary Barra é a única executiva no comando global de uma fabricante de automóveis - no caso, a General Motors. Por aqui, Ana Theresa Borsari, CEO da Peugeot, é presença solitária no comando de uma montadora no país.

"A gente tem que olhar a diversidade além da questão simplesmente do sexo, do gênero, mas, principalmente, na questão de pensar de forma diferente. Pessoas mais conservadoras com pessoas mais audaciosas, pessoas mais modernas com pessoas mais clássicas. E essa riqueza de olhar, de maneira de enxergar as coisas é que traz benefício para o negócio", disse Borsari, em entrevista a UOL Carros.

A situação não é diferente nas fábricas. Uma das raras exceções é Juliana Coelho, que, desde julho de 2020, comanda as operações da planta de Goiana (PE), uma das maiores e mais tecnológicas fábricas do grupo FCA no mundo.

"Avançamos muito na FCA durante os últimos anos e temos cada vez mais entendimento da importância da diversidade e da inclusão. Historicamente, a indústria automotiva tem predominância do gênero masculino, mas fico feliz em fazer parte desse movimento atual. Entendo que estamos rompendo vários paradigmas sobre isso e todos podem somar", afirmou a engenheira.

Outro problema apontado é a diferença salarial entre homens e mulheres. De acordo com Giovanna Riato, editora da AB e co-líder da rede AB Diversidade, a disparidade chega a ser de 34% para pessoas de gêneros diferentes que ocupam um mesmo cargo. E elas não são as únicas a sofrerem com as injustiças.

"A entrada de profissionais negros é muito baixa, e a ascensão profissional é muito pior. Esse grupo não consegue chegar minimamente em cargos de supervisão e gerência. Estamos falando de empresas que querem vender para todo mundo, mas quem desenha a estratégia dessas empresas segue um perfil parecido de homens brancos e engenheiros", alerta.

Racismo está nas empresas

Mário Rogério Silva, sociólogo e diretor do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), aponta uma "norma" velada na maioria das empresas: o racismo institucional.

"Essa regra existe na maioria das organizações, mas é muito difícil enfrentá-la porque ela não é explícita. Ninguém verbaliza que o salário do negro vai ser diferente ou que ele não chegará a um cargo de alta liderança".

"É um hábito que quando alguém chega de terno ele precisa ser cumprimentado como doutor e se um negro chega com a mesma roupa ele é motorista" - Mario Rogério Silva, sociólogo

Silva usa os resultados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) para apontar a desigualdade racial no setor. Eles apontam que pessoas brancas estão três vezes mais inseridas na indústria do que as negras. Ainda mostram que apenas 37,4% dos negros empregados na indústria ganham mais do que cinco salários mínimos, contra 52,9% dos brancos.

A situação piora no caso das mulheres negras, já que somente 22,9% delas recebem mais do que cinco salários mínimos. Entre as mulheres brancas, o volume é de 49,3%.

Divulgação

Carro de mulher?

Telma Blasquez é a mente por trás da área de Color & Trim da Volkswagen. Após entrar na empresa aos 14 anos por um curso do Senai, ela cursou mecânica por três anos. "Meu foco era trabalhar com publicidade, mas meu instrutor me indicou para o design. Comecei a estagiar como modeladora e peguei gosto pela coisa".

Já se vão 26 anos na montadora de São Bernardo. Neste período, Telma diz que muita coisa mudou. "Acho que, de uns tempos para cá, a voz das mulheres vem ganhando força, não só dentro da VW, mas no mercado em geral. As mulheres estão mais empoderadas e tem mais poder de compra".

Apesar de considerar opiniões femininas no desenvolvimento de um veículo, Telma afirma categoricamente que não existe um carro feito para o público masculino ou feminino.

"Costumo dizer que não existe mais gênero no universo automotivo. No passado, muita gente dizia que a cor X era mais para mulher ou homem. A gente não entende que mulheres vão gostar de detalhes rosas ou algo assim. No meu ponto de vista a gente busca atributos como praticidade e segurança. A escolha das mulheres não é tão emocional".

A opinião de Telma é compartilhada por profissionais de outras empresas.

"A gente desenvolve um botão de volume de um rádio de forma que unhas compridas não atrapalhem o manuseio. E não se trata de ser uma solução pensada para o homem ou a mulher. Se eu toco guitarra, vou ter um par de unhas mais compridas que facilitem o manuseio", diz Maurício Greco, diretor de marketing da Ford.

Marlon Costa/Futura Press/Folhapress Marlon Costa/Futura Press/Folhapress

Como montadoras tratam a diversidade

As fabricantes de automóveis dizem entender a importância da diversidade no dia-a-dia. Mas as ações ainda são tímidas. As quatro maiores montadoras do país afirmam manter departamentos exclusivos para abordar o tema e prestar apoio aos funcionários.

Após contratar uma consultoria especializada, a Ford estabeleceu o Comitê de Diversidade, formado por funcionários de várias áreas e hierarquias.

Marcellus Puig, vice-presidente de Recursos Humanos da Volkswagen do Brasil e Região SAM, diz que a igualdade de gêneros é prioridade no planejamento de carreira dos funcionários. A fabricante também possui metas para aumentar a participação feminina. Na planta de São Carlos, por exemplo, existe um funcionário transsexual na linha de montagem.

Já a General Motors desponta como referência no setor pelo Guia Exame de Diversidade pelo segundo ano consecutivo. Segundo Christian Cetera, diretor de RH da empresa, 25% dos funcionários da GM no Brasil são mulheres.

"Não queremos simplesmente pensar nas mulheres como gênero, e sim pela importância delas. Hoje, nossa planta de Joinville, que é uma das mais novas, tem 40% da força de trabalho feminina. Realizamos uma espécie de treinamento para conseguirmos destruir esses vieses inconscientes, que muitas vezes nos impedem a inclusão e muitas vezes está instalada na cabeça da gente", diz Cetera.

No caso da FCA, o grupo iniciou ações de diversidade e inclusão no fim de 2019. A partir daí nasceu um comitê formado para desenvolver políticas internas em relação a gênero, raça, orientação sexual e PCDs.

"Essas ações se relacionam, entre algumas frentes, com o desenvolvimento de talentos que fazem parte de grupos minorizados para assumir funções de liderança, partindo de um grande levantamento demográfico e ações afirmativas para promoção de carreira", diz Erica Baldini, diretora de RH da FCA para América Latina.

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Só homem branco compra carro?

Apesar do discurso socialmente engajado, a indústria automotiva ainda está longe de ser um exemplo de diversidade. E isso transparece na forma como as marcas falam com o consumidor.

"A comunicação das montadoras está muito longe de tratar a diversidade da forma como ela merece. Falta ainda uma comunicação efetiva com mulheres negras, enquanto ainda existe uma ou outra ação voltada a homens negros. No caso de deficientes é ainda pior: parece que a pessoa é totalmente proibida de ter acesso a um automóvel", diz Fabio Mariano Borges, professor da ESPM-SP.

Especialista na aplicação de Pesquisa Etnográfica no Marketing para estudos de comportamento do consumidor, Borges lembra que o público LGBTQIA+ também não é retratado nas peças publicitárias. Ele cita que apenas a Renault divulgou um comercial em 2016 no qual um personagem revela ser gay.

Para a consultora de diversidade Liliane Rocha, CEO da Gestão Kairós, a indústria precisa urgentemente dar atenção a outros grupos que consomem veículos.

"O setor automotivo ainda não entendeu que mulher negra compra carro. LGBTQIA+ e pessoas com deficiência também compram e nunca vemos esses grupos retratados nas propagandas. A sensação que tenho é que o setor acordou para o poder de compra da mulher branca, mas para outros grupos não".

Borges cita alguns bons exemplos a serem seguidos. "O setor de cosméticos é o que melhor trabalha isso. A comunicação era muito padronizada ao seguir os padrões de beleza, mas hoje as empresas promovem bastante diversidade, com pessoas gordas, negras e LGBT".

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