'Muita humilhação': ambulantes mostram lado B do rico Carnaval de Salvador

O Carnaval de Salvador, que este ano deve movimentar R$ 2 bilhões e atrair mais de 1 milhão de turistas, segundo estimativa da prefeitura, simboliza sofrimento para importantes personagens dos bastidores da festa. O UOL conversou com mais de dez ambulantes do circuito Barra-Ondina, o principal da cidade, que apontaram condições humilhantes.

Dormindo na rua para guardar lugar

Os ambulantes dormem nas calçadas para garantir seus lugares de venda nos circuitos. É normal que eles permaneçam no local por mais de uma semana com opções precárias de higiene e sem alimentação gratuita.

Ângela Gomes, 53, chegou à avenida Oceânica há dois meses. É assim há 40 anos, desde que ela começou a trabalhar como ambulante no Carnaval de Salvador com 13 anos de idade. A prefeitura não permite que o chão seja marcado e, para não ficarem sem um ponto fixo, vendedores passam a "morar" no local bem antes do Carnaval.

Foliões cospem e urinam nas áreas em que ambulantes descansam. Em dias de chuva, alguns vendedores preferem dormir sentados para não molhar plásticos, papelões ou cobertas usadas para improvisar camas. Quem não possui uma lona utiliza o guarda-sol da barraca para não se molhar durante a madrugada.

Os ambulantes gastam R$ 15 em marmitas e R$ 7 para tomar banho em estabelecimentos próximos. Como muitos vendedores estão acompanhados de parceiros ou familiares, os gastos se multiplicam. Compras também envolvem pelo menos três sacos de gelo por noite —cada um é vendido por R$ 20,00— e locação de tomadas para carregar celulares.

A prefeitura informa que disponibiliza dois equipamentos perto do Barra-Ondina com 24 chuveiros (12 femininos e 12 masculinos). Um fica a 2 km do Farol da Barra, o outro a 8 km, e eles só funcionam das 7h às 17h. Levando em conta que são 4.100 ambulantes cadastrados, as filas para o banho de manhã são gigantes, segundo informaram funcionários. Existem outros 7 pontos, porém bem mais distantes do circuito.

Outra situação recorrente relatada pelos ambulantes são os incidentes com funcionários da Limpurb (Empresa de Limpeza Urbana de Salvador). Frequentemente, funcionários molham os ambulantes durante a limpeza do circuito com mangueiras de pressão. Eles relataram já terem perdido documentos e produtos em decorrência do procedimento.

A prefeitura afirmou ter feito "investimentos robustos" para garantir apoio à classe. Segundo nota enviada ao UOL, foi implementado o credenciamento via internet, o que acabou com as filas, a taxa de credenciamento ficou isenta, foram distribuídos materiais e oferecidos treinamentos. Além disso, foi oferecido acolhimento para os filhos dos trabalhadores, de forma que eles não precisem ficar nos circuitos da festa, completou a nota. Em conversa com jornalistas, o prefeito Bruno Reis (União Brasil) disse que 2024 foi o ano em que mais dedicou atenção aos ambulantes. Segundo ele, mais de 10 mil profissionais, entre vendedores e catadores de lixo, receberam cursos de capacitação antes do Carnaval. Ele também disse ter investido em quatro pontos para distribuição de refeições aos que estão trabalhando no Carnaval. Segundo a reportagem apurou, essa alimentação é oferecida apenas aos catadores de lixo.

Ambulantes dormem nas ruas durante Carnaval de Salvador
Ambulantes dormem nas ruas durante Carnaval de Salvador Imagem: Weslley Neto/UOL
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Insegurança

A reportagem presenciou a agressão a um ambulante na avenida Oceânia. Dois homens atacaram o vendedor pelas costas durante a passagem do Pipoco de Léo Santana na terça-feira (6). A polícia ainda investiga os autores e o motivo.

Preocupação com segurança é constante entre vendedores. Cada ambulante dorme ao lado de sua caixa de isopor com a preocupação de evitar roubos de gelo, banquinhos, bebidas e outros itens.

Eu durmo com medo. Já roubaram minha coberta, meu travesseiro e meu sombreiro. Eles (prefeitura) vão fazer o quê?
Maria Helena Teles

Equipe da Prefeitura realiza limpeza na avenida Oceânica.
Equipe da Prefeitura realiza limpeza na avenida Oceânica. Imagem: Weslley Neto/UOL

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Claudia Corrêa, 51, é uma das vendedoras ambulantes que dormem nas ruas de Salvador
Claudia Corrêa, 51, é uma das vendedoras ambulantes que dormem nas ruas de Salvador Imagem: Weslley Neto/UOL

Discussões entre próprios ambulantes também são constantes, segundo os vendedores ouvidos pelo UOL. Os espaços no circuito, tentativas de furtos e e a própria convivência estão entre os motivos.

Reclamações também envolvem tratamento por parte da fiscalização. Segundo Vitor Pena, 25, a forma "truculenta" usada em abordagens gera constantes discussões com os ambulantes. A fiscalização ocorre para garantir a segurança de ambulantes e dos foliões, de maneira ordeira e focada em conscientização, segundo prefeitura. "os fiscais visam coibir, por exemplo, comercialização de materiais de vidro, que podem causar acidentes."

Ambulantes dormem nas ruas durante Carnaval de Salvador
Ambulantes dormem nas ruas durante Carnaval de Salvador Imagem: Weslley Neto/UOL

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Os outros ambulantes querem dar de pau. Ninguém respeita ninguém por aqui.
Claudia Corrêa

Nem sempre a gente aceita perder. Passamos por muitas humilhações.
Vitor Pena

Sem o ambulante, não tem festa. [...] Nós merecemos valor e respeito.
Angela Gomes

Quem decide preços?

Os preços das bebidas para o consumidor são padronizados há pelo menos cinco anos e definidos pela organização do Carnaval. Os ambulantes pagavam R$ 200 pela licença para vender no Carnaval. A taxa não foi cobrada neste ano. Os trabalhadores conseguiram resgatar a credencial pela internet sem custos, evitando filas formadas nos anos anteriores.

Ambulantes dormem nas ruas durante Carnaval de Salvador
Ambulantes dormem nas ruas durante Carnaval de Salvador Imagem: Weslley Neto/UOL
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Todos os itens vendidos são envelopados com identificação do patrocinador. "Se estamos usando uma caixa ou balde para nosso banho, com uma cor diferente da vermelha, a fiscalização quer tirar da gente devido ao patrocinador. Não tem necessidade", reclama Vitor.

Tenho o vírus HIV. Estou aqui lutando porque eu preciso do dinheiro. Eu não sou aposentada. Ninguém me dá nada.
Maria Helena Teles

Decisão polêmica

A Prefeitura de Salvador construiu uma passarela para receber os vendedores durante a passagem dos trios elétricos em um trecho do circuito Barra-Ondina, o que irritou ambulantes. A ideia foi apresentada com intuito de facilitar passagem dos trios.

Passarela construída para ambulantes na Barra, em Salvador.
Passarela construída para ambulantes na Barra, em Salvador. Imagem: Weslley Neto/UOL
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Segundo os trabalhadores o espaço não é seguro e está distante dos foliões. Eles se recusam a ocupar a estrutura, alegando que ela não suportará o peso das caixas.

Fizeram isso para morrer um bocado e se livrarem da gente. Eu que não vou ficar lá. Não estou a fim de morrer. Eu tenho cinco filhos e cinco netos, todos precisam de mim.
Ângela Gomes

A prefeitura diz em nota ao UOL que a passarela foi projetada para garantir conforto e segurança. "Pensado por um corpo técnico formado por engenheiros e especialistas para assegurar a segurança do equipamento, seguindo os mesmos padrões de engenharia de outras estruturas do Carnaval, a exemplo dos camarotes." Afirma ainda que vai garantir mais espaço no circuito e mais segurança para os ambulantes, pois manterá as mercadorias em "espaço seguro".

Porém, na manhã de quarta (7), a equipe técnica do Ministério Público da Bahia realizou uma inspeção e identificou problemas estruturais como utilização de pregos na fixação dos compensados de acabamento, o que traz sérios riscos de corte dos pés dos ambulantes, segundo o engenheiro Alexandre Matos. Também foi identificada falta de rigidez nos guarda-corpos das escadas e da estrutura, além do vazamento de alguns espelhos das escadas.

O MP então recomendou a não utilização da passarela. Horas depois, a prefeitura divulgou ter realizado os ajustes. O posicionamento publicado pela TV Bahia, afiliada da Globo, não cita recomendação do MP-BA.

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A passarela foi liberada para uso na sexta (9). Ainda assim, pouquíssimos ambulantes aderiram até o sábado (10).

Eu queria que o Bruno Reis trabalhasse aqui por dois dias, para ele conhecer a situação. Ele diz ser tão da favela, mas precisa sentir o que a gente passa na pele. É fácil dizer que é da favela quando se dorme em um apartamento com ar-condicionado.
Vitor Pena

UOL procurou a Brahma, patrocinadora do Carnaval de Salvador, a Empresa de Limpeza Urbana de Salvador, a Secretaria Municipal de Ordem Pública e a Secretaria de Cultura de Salvador, mas não obteve resposta. A reportagem será atualizada caso haja manifestação.

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