Anos 1970

Qual a importância do jornal Lampião da Esquina para a comunidade LGBTQI+?

Por Diana Carvalho

"Mais tesão, menos encucação". "Esquadrão mata-bicha". "Masturbação, o prazer da maioria". Essas manchetes foram escritas em plena ditadura militar, desafiando a censura, a repressão e o conservadorismo da época. Foi assim que Lampião da Esquina ficou conhecido como o "primeiro jornal gay" da história no Brasil.
Edição de dezembro de 1980 abordava o "tabu" da masturbação
Reprodução/Lampiao da Esquina
O jornal não se limitava a temas relacionados à sexualidade. Pautas sobre identidade e questões sociais tinham espaço em suas edições, contrapondo a cobertura da imprensa tradicional, que tratava a comunidade gay de maneira pejorativa e a resumia ao noticiário policial.
Edição de 1979 já discutia o aborto e a presença de mulheres na política
Reprodução/Lampiao da Esquina
Lançado no Rio de Janeiro em 1978, Lampião da Esquina discutia em suas páginas a homofobia, o racismo e até questões ambientais. O conselho editorial era formado por onze jornalistas, entre eles os escritores Aguinaldo Silva (foto), João Silvério Trevisan e Caio Fernando Abreu.
Reprodução/Resistir É Preciso

O que nos interessa é destruir a imagem-padrão que se faz do homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara a sua preferência sexual como uma espécie de maldição. (...) o que nós queremos é resgatar essa condição que todas as sociedades construídas em bases machistas lhes negou: o fato de que os homossexuais são seres humanos e que, portanto, têm todo o direito de lutar por sua plena realização".

Trecho do editorial que marca o lançamento do Lampião de Esquina
Reprodução/Lampião da Esquina
Artistas como Ney Matogrosso, Leci Brandão, Edy Star e a cartunista Laerte eram presenças constantes no Lampião.
Reprodução/Lampiao da Esquina
Apesar do aval de boa parte da classe artística, o jornal enfrentou no início preconceito e dificuldades de comercialização. Jornaleiros se recusavam a vendê-lo. Após quatro meses de negociação, enfim, perceberam que se tratava de um jornalismo sério e o Lampião passou a ser exposto em todas as bancas, com tiragem de 25 mil exemplares.
Reprodução/Lampião da Esquina
Um político a aparecer nas páginas do Lampião foi o ex-presidente Lula, que foi entrevistado pelo jornal e foto de capa.
O ex-presidente Lula deu entrevista ao Lampião em edição de junho de 1979
Reprodução/LampiaodeEsquina/GrupoDignidade
Questionado sobre homossexualidade na classe operária, a resposta de Lula foi: "Não conheço". Na foto do ex-presidente deitado, usando camisa e shorts, a seguinte legenda: "Lula: além de tudo um símbolo sexual?"
Reprodução/LampiaodeEsquina/GrupoDignidade
Apesar de explorar o humor e o pajubá (gírias gays) em sua linguagem, o tom crítico em Lampião era afiado ao falar sobre violação de direitos humanos e homofobia, em uma época em que a perseguição policial contra gays e travestis era frequente nas ruas.
Em 1980, fotos da perseguição policial a travestis na noite paulistana
Reprodução/Lampiao da Esquina
Chamada de "Operação Limpeza", a ação truculenta de policiais foi inúmeras vezes denunciada no Lampião e acontecia sob às ordens do então delegado José Wilson Richetti, que ficou conhecido por comandar rondas que agiam violentamente contra a população LGBTQI+ no centro de São Paulo, nos anos 1980.
Reprodução/midicult

Estou limpando a cidade com prisões de travestis e vou continuar fazendo isso. Que protestam e me queimem em praça pública. Não vai adiantar nada"

Declaração do delegado José Wilson Richetti ao Lampião da Esquina
A combinação denúncias e temas sobre liberdade sexual fez com que o Lampião chamasse atenção de órgãos repressivos, como o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que tentaram, por diversas vezes, impedir a circulação do jornal. A equipe de escritores e jornalistas, incluindo Trevisan, chegou a responder inquérito criminal, correndo risco de prisão por ferir a "moral e os bons costumes".
Reprodução/Facebook

Na época em que Lampião existiu, tratava-se do único canal que a comunidade LGBTQI+ tinha em nível nacional. Fomos interrogados e fotografados na Polícia Federal. Além disso, o nome do Lampião foi incluído numa lista de grupos paramilitares que ameaçavam explodir bancas que vendessem os jornais citados"

João Silvério Trevisan,
co-fundador do Lampião da Esquina
Reprodução/Lampião da Esquina
Apesar do clima repressor, o Lampião da Esquina se tornou referência de imprensa alternativa, resistindo não só às pressões do regime militar, como impulsionando a criação do movimento LGBTQI+ no Brasil ao discutir questões de gênero e preconceito. O jornal circulou até o ano de 1981 e teve mais de 150 edições publicadas.
Em 2016, chegou a ganhar um documentário homônimo, produzido pela cineasta Lívia Perez, que resgata a história de resistência do tabloide com depoimentos de jornalistas, escritores e artistas que marcaram presença em suas páginas
Reprodução/Lampiao da Esquina
Reprodução/Lampião da Esquina

Mas o que Virgulino Ferreira da Silva tem a ver com um jornal gay?

Em entrevista ao diretor Ricardo Carvalho, Aguinaldo Silva explica que a publicação iria se chamar apenas Esquina, no entanto, com o nome já registrado, decidiram então inserir a palavra Lampião, sem qualquer referência ao cangaceiro -- e sim ao objeto luminoso. Até que, durante a produção do logotipo, pensaram: Por que não?
Benjamin Abrahão/IMS
Reprodução/Resistir É Preciso
Publicado em 28 de junho de 2020.
Reportagem: Diana Carvalho | Edição: Adriana Terra