O homem que abrigou Lula

Líder metalúrgico temeu tragédia em São Bernardo do Campo e diz que ex-presidente não será solto logo

Guilherme Azevedo e Wellington Ramalhoso Do UOL, em São Paulo
Simon Plestenjak/UOL

A responsabilidade assustadora

Wagner Santana, 56, é um sucessor de Lula. Conhecido como Wagnão, preside o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o mesmo que o petista comandou entre 1975 e 1981. Quando soube que o juiz Sergio Moro havia determinado a prisão do antecessor, ligou para oferecer as dependências do sindicato como abrigo. Também abriu as portas do prédio situado no centro de São Bernardo por duas noites e dois dias para que militantes pudessem manifestar apoio a Lula.

Wagnão reservou o segundo andar para o ex-presidente, sua família e outros líderes políticos, enquanto os outros quatro pavimentos eram tomados pela militância. É exatamente nesse segundo andar que ele recebe a reportagem. Estamos na sala da presidência do sindicato, onde Lula passou a maior parte das 48 horas anteriores à prisão, e em torno da mesa em que o ex-presidente se reuniu com a família na tarde do último dia 7, antes de deixar o prédio para se entregar à Polícia Federal.

Foi este o momento mais tenso daqueles dois dias, conta Wagnão. Na avaliação do sindicalista, "aconteceria uma tragédia" caso a polícia decidisse ir ao sindicato para deter Lula.

Antes de sentarmos à mesa retangular, conversamos sobre tempos menos bicudos e não tão distantes em que assembleias da categoria eram acompanhadas de perto por repórteres de veículos tradicionais de São Paulo e da região do ABC. Atualmente, é raro um jornalista cobrir uma assembleia. "Estamos fora de moda", brinca Wagnão a respeito dos metalúrgicos.

Comentamos que o jornalismo também parece estar às turras com a moda. Veículos que cobriam as pautas sindicais fizeram cortes em suas Redações ou simplesmente fecharam as portas.

No setor metalúrgico na região do ABC, os postos de trabalho caíram de 85,5 mil em 2015 para 71 mil em 2017. Os sindicalizados representam cerca de 40% desta base. Apesar dos cortes, a região ainda produz a maior parte dos caminhões e ônibus e cerca de 25% dos carros fabricados no país.

Wagnão começou a trabalhar no setor em 1984. No chão de fábrica da Volkswagen, chamava a atenção pela altura e pela formação escolar. Com 1,78 m e ensino médio completo, estava acima da média dos colegas nos dois quesitos na época. Tornou-se diretor sindical no fim dos anos 90 e assumiu a presidência do sindicato no ano passado.

"É difícil sentar nessa cadeira. A responsabilidade de ser presidente desse sindicato, com a história desse sindicato, é assustadora. Demora para cair a ficha. É um sindicato que tem um peso, um nome, pela história, pela figura que é o próprio Luiz Inácio", diz Wagnão, um paulista filho de pernambucano.

Ele defende a inocência do ex-presidente da República, ressalta a força eleitoral de Lula, mas não espera que a Justiça venha a tomar decisões favoráveis ao petista.

Francisco Proer/Reuters Francisco Proer/Reuters

O abrigo a Lula antes da prisão

"Não houve negociação [para trazer Lula para o sindicato]. Nós estávamos aqui [no sindicato] reunidos, discutindo justamente o que fazer diante da iminente ordem de prisão. Aguardávamos uma ordem de prisão que viesse três, quatro dias depois, não com aquela celeridade, com aquela brevidade que acabou acontecendo. Eu falei 'vem para cá' assim que a gente soube da ordem de prisão, na quinta-feira (5).

Liguei para o Lula e disse:'O sindicato está aqui à disposição, aqui a gente conversa'.

"Talvez nem precisasse da ligação. Seria uma coisa natural dele. É o ambiente em que ele se sente bem, o ambiente em que ele cresceu para o mundo e para a política, onde ele se sentiria acolhido. Foi espontâneo tanto o convite como ele vir para cá. Não houve nada planejado."

"Aí que as coisas foram sendo preparadas, reservamos o segundo andar para Lula e a família. Fomos improvisando, as pessoas foram se voluntariando. Dormi no chão. Teve gente dormindo em sofá, em cadeira, em colchonetes que fomos comprar. O térreo e o subsolo estavam tomados de gente. Onde tinha tomada para carregar o celular você via uns dez dormindo em volta. O terceiro andar também estava aberto."

"Chegou uma hora que faltou água e achamos que era conspiração, que tinham cortado a água. Colocamos deputados para correr trás, para tentar investigar o que estava acontecendo, e não era [corte]. Simplesmente [a Sabesp] não vencia a quantidade de pessoas que estava utilizando recursos no sindicato. E a gente encomendou carros-pipa [para abastecer o local]. A cada hora e meia, duas horas chegava um carro-pipa, dada a quantidade de pessoas."

"Definimos o local onde Lula iria dormir por questão de comodidade. E também de improviso. O único lugar que temos com chuveiro é lá no subsolo, que é o vestiário dos trabalhadores. Ao lado dele, tem um refeitório que também tem uma área de descanso e lazer. Os trabalhadores fazem a refeição e depois descansam em uma sala onde tem uma TV e sofá", conta. (A foto abaixo mostra o local onde Lula dormiu.)

"A minha postura de anfitrião era muito mais com os outros, com quem era de fora e não conhecia a casa, do que com ele. Ele conhece a casa inteira, se vira bem aqui."

"Decidi manter o sindicato aberto da hora em que ele chegou até o momento em que ele deixou o sindicato [para se entregar]. Cada militante que estava aqui queria protegê-lo, demonstrar carinho e solidariedade. E o sindicato não poderia negar esse direito [a essas pessoas]. Foi um momento histórico. Foi um momento tão representativo e significativo quanto o dia posse dele na Presidência em 2003."

O que mais me preocupou foi a ameaça concreta de um atrito com a polícia pela resistência da militância no final. Teve gente que resistiu, apesar da orientação dele e nossa, deitou na frente do portão, jogou madeira no portão tentando impedir que ele saísse. Sei que a polícia tem seus meios e suas obrigações.

"Tenho certeza de que aconteceria uma tragédia pelo instinto de defesa da polícia e a estrutura que ela tem. Bombas de gás e balas de borracha não seriam suficientes para deter aquele povo [os militantes]. Eles [os policiais] estavam preparados, estavam monitorando por obrigação e se preparando para essa possibilidade [de ir ao sindicato deter Lula]", diz Wagnão.

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Lula ficará preso por muito tempo?

É duro trabalhar com essa hipótese, mas ela é uma hipótese muito concreta. Acabou a época da inocência, né? Em alguns momentos, alguns dos nossos companheiros acreditaram na possibilidade da justiça sendo feita ou na possibilidade de que alguns artifícios judiciários pudessem salvá-lo da cadeia. E a esperança foi rareando.

Apesar de demonstrar pessimismo e prever um período longo de prisão para Lula, Wagnão comemora a força eleitoral do ex-presidente, citando a pesquisa Datafolha divulgada no último dia 15. Mesmo preso, o petista mantém a liderança nas intenções de voto.

"Estremeceram as bases eleitorais de Lula? Não. Qual o segundo candidato mais votado? É quem o Lula indicar. Qual o terceiro candidato? É a abstenção [na verdade, a soma de votos em branco e nulos] porque Lula não está [na disputa]."

J.F.Diorio/Estadão Conteúdo J.F.Diorio/Estadão Conteúdo

Barrado, mas com foto na urna

Wagnão diz acreditar na inocência de Lula, mas não crê que o ex-presidente obterá decisões favoráveis na Justiça.

Por tudo o que tem acontecido até agora, só acredito num destino que a Justiça dará a ele: barrar [a candidatura] de todas as formas que puder. Se fizeram isso até agora, não tem por que permitirem [a candidatura].

Se parece não haver horizonte para a autorização da candidatura -- condenado em segunda instância, Lula seria barrado pela Lei da Ficha Limpa --, Wagnão, como vários líderes do PT, se recusa a falar publicamente sobre a possibilidade de o partido lançar outro candidato ou apoiar um presidenciável de outra legenda.

"Lula, Lula, Lula. Vamos insistir com Lula. Queremos a foto [dele] lá na urna."

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"Lula não errou, tríplex é mequetrefe"

Wagnão argumenta que Leo Pinheiro, dono da construtora OAS, tentou tirar proveito da amizade com o ex-presidente no caso do apartamento tríplex (foto abaixo) situado em Guarujá, no litoral paulista. O empresário foi o responsável pela delação que sustentou a condenação do petista por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Para o sindicalista, Lula não recebeu vantagens nem cometeu erros nas relações pessoais com empresários. "Quem traiu são aqueles que estão lá delatando, dizendo que deu apartamento mequetrefe. Agora as fotos revelaram o que é o apartamento. Não quero aquilo nem de graça."

"Não tenho dúvida de que esse camarada [Leo Pinheiro] tenha chegado nele [Lula], batido nas costas e falado: 'Lula, quero que você compre esse apartamento'. É normal para esses caras (...) agradar um presidente da República. E faz lá uma reforminha."

O Lula deve ter olhado aquilo lá e deve ter saído no carro xingando o camarada. [Com a voz imitando Lula] 'Como é que o cara tem a ousadia de me oferecer um treco desse aqui?' E saiu xingando.

"E o cara deve ter feito isso para se beneficiar. Porque cada apartamentinho que ele venderia ali depois só para dizer que o presidente mora na meia cobertura... Deve ter muita gente querendo ou que quisesse se beneficiar de ter uma amizade prestigiada com o presidente. Mas ele [Lula] sempre disse o seguinte: 'Sei quem quer se aproveitar de mim e sei quem são meus amigos?'. Isso ele sempre disse para a gente.'"

Na opinião de Wagnão, o governo de Lula representou a conciliação de classes e foi coerente com a trajetória do Sindicato dos Metalúrgicos. "Lula aprendeu a fazer política aqui no sindicato. Esse sindicato é, por origem, um negociador. O sindicato tem esse papel. Não somos uma força armada que tem por papel fazer revolução. Nós negociamos entre os interesses patronais e os trabalhadores. Esse é o papel de quem passa pela direção do sindicato."

"Ele levou isso para o resto da vida dele e nunca propôs um governo de cisão com o status quo. O governo dele foi um governo de conciliação de interesses. Portanto, se aproximar do empresário e satisfazer os interesses da classe trabalhadora. Transformar empresas nacionais em multinacionais é conciliar interesses da sociedade brasileira como um todo, o papel de negociador que enxerga o Brasil como um todo."

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Eleições com ódio e polarização

Vamos assistir a uma eleição extremamente polarizada, uma eleição em que a política dará lugar ao ódio, ao desprezo, à intolerância, em que o debate político das ideias continuará na lata de lixo.

"O meu candidato [Lula] tem autoridade [para promover o diálogo e apaziguar a sociedade], mas ele não está em condições de fazer isso porque ele é um dos rotulados, o colocaram como um dos oponentes, ele não dialoga com o outro lado que está radicalizado, assim como eu não tenho capacidade de ouvir [Jair] Bolsonaro [PSL] e Aécio Neves [PSDB], que declarou guerra em 2014 dizendo que Dilma não governaria e rejeitando o resultado das urnas."

"Não adianta uma terceira via que a mídia construa. Liderança nasce, ela é ou não. Não adianta tentar inventar um líder. Todos os líderes inventados tiveram um voo curto, de galinha. Liderança precisa ter alicerce, estrutura, partido político. Não consigo enxergar hoje quem dialogue com o todo."

Simon Plestenjak/UOL Simon Plestenjak/UOL

Bancada sindicalista

Wagnão diz que os metalúrgicos estão bem organizados para as eleições. "A CUT (Central Única dos Trabalhadores) deve investir em candidaturas [a deputado federal] identificadas com a pauta dos trabalhadores representados por ela. Teremos candidaturas de sindicalistas em todos os estados. Dentro e fora do PT."

O movimento sindical perdeu muito espaço dentro do Parlamento. A gente precisa de atuação mais forte.

"O debate sobre Previdência, sobre o processo de terceirização, sobre a reforma trabalhista comprovou isso. Houve pouco debate, pouca competência das lideranças mesmo de esquerda em discutir sob a ótica dos trabalhadores, apesar da afinidade desses representantes com a nossa pauta."

Continua: "É uma questão de dar mais organicidade, de ter uma bancada um pouco mais articulada com a central e o movimento sindical".

Luis Macedo/Câmara dos Deputados Luis Macedo/Câmara dos Deputados

Em transformação

"Tivemos que fazer muita luta nas décadas de 1970 e 1980 para conquistar um espaço e construir um modelo de sindicato, que primeiro teve que se impor pela força ou se fazer respeitar. Alguns companheiros que foram daquela direção brincam: 'Vocês são pelegos, naquela época que era bom, a gente fazia 40 dias de greve, 50 dias de greve, hoje vocês não fazem mais'. Os patrões nem recebiam a pauta, não davam a mínima por ela. Decretava-se uma greve, aí depois de cinco, seis, sete reuniões chegava-se a um acordo ou não. De tanto fazer isso, os caras deixaram de duvidar da nossa capacidade de fazer greve."

"[Depois] A gente começou a imaginar que precisaria construir um sindicalismo diferente, que a gente chama de sindicato cidadão. Um sindicato que se preocupe com as questões internas, intramuros, mas que também lute fora da fábrica por outros direitos, direito à saúde, à educação, ao lazer, a tudo aquilo que faz da pessoa um cidadão de fato."

"É quando essas empresas [instaladas no ABC] saem para outros cantos que a gente começa a rediscutir e a capacitar nosso povo para um processo de negociação coletiva. Não dá para ficar aqui só dizendo que a gente precisa ganhar mais e ter todas as condições de trabalho, e as empresas simplesmente deslocando suas produções, suas plantas para outros locais."

A gente sabia que era irreversível essa questão das empresas se deslocarem, de construir outras unidades, outros polos de produção. Se você não entra nessa discussão, você perde a fábrica. Estrategicamente, optamos por fazer esse debate. E, se nós não o fizéssemos, talvez a gente não tivesse mais nenhuma indústria automobilística no ABC.

"Foi difícil para nós. Enfrentamos um debate interno muito forte, resistência, fomos chamados de pelegos, acusados de conciliar com o capital, de capitular para o capitalismo e para as empresas. Não. Sabemos como as empresas estão. Sabemos o que existe aí fora."

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Novo perfil do metalúrgico

"Houve um erro das empresas e acho que a maioria delas reconhece isso. Diferentemente da época que entrei, que eu era quase uma exceção dentro da fábrica [por ter ensino médio completo], as fábricas começaram a contratar trabalhadores vindos da universidade, com outro tipo de formação", afirma Wagnão.

Botaram esse cara na linha [de produção] com a promessa de que ele poderia exercer outras atividades e que ele ficaria ali pouco tempo.

"Passam seis meses, um ano, e esse trabalhador começa a perceber que continua apertador de parafuso. Aí a esperança que ele tinha começa a virar desesperança. Não há o sentimento de pertencimento. Diferentemente daquele camarada que veio da roça e que achou o emprego da vida dele, esse trabalhador entra com outra concepção. Ali para ele é transição. A única esperança é sair [da empresa]."

Com isso, muda o que o empregado quer do próprio sindicato, avalia ele. "Os acordos de longo prazo não interessam [a ele]. Não interessa o sindicato propor um acordo [de Participação nos Lucros e Resultados] de cinco anos. Ou ele vira chefe ou ele está fora. Ele quer coisas de curto prazo."

"Então nós tivemos um conflito muito forte cinco, dez anos atrás. Essas pessoas acabam optando por sair da empresa. E as empresas começam a repensar essa forma de contratação. Em vez do cara solteiro, recém-saído da universidade, ela começa a contratar o camarada com seis anos, sete anos trabalhando com autopeças, casado, com filho, com o sonho de trabalhar na montadora."

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Inovação, indústria 4.0 e (des)emprego

As empresas brasileiras investem 0,5% do seu faturamento em pesquisa e desenvolvimento. Deveria ser muito mais do que isso. A empresa brasileira gosta de mamar na vaca do estado. Eles passam dois anos discutindo de onde vai sair o recurso do estado para o investimento deles em tecnologia. Até hoje estão fazendo essa discussão.

"Hoje ninguém discute seriamente indústria 4.0 [no Brasil]. Estamos falando de internet, que as coisas se relacionam por meio de um chip numa peça, num componente, na linha de montagem. Estamos preparados para fazer esse debate todo? A Europa está, os Estados Unidos estão fazendo essa discussão. O Brasil está pouco preocupado. Isso já devia estar acontecendo."

"A gente percebe o desespero de cientistas que não têm recursos. Não é chororô, é a reclamação legítima dos nossos cientistas nos laboratórios de universidade dizendo que não têm recurso nenhum para investir em pesquisa. E pesquisa leva anos."

"Em um país como o Brasil que está falando em redução por 20 anos em saúde, educação, corte de gastos, o que vai acontecer com os trabalhadores que sobrarão nas indústrias digitalizadas, em que não haverá emprego para todos? No Brasil que eu conheço, vão ser mandados para o meio da rua. Será mais gente morando na rua, competindo por emprego, se submetendo a ganhar metade ou menos do salário porque está desesperado."

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