fizeram história

Advogado autodidata, Luiz Gama libertou centenas de escravizados 

Por Juliana Domingos de Lima 

Crédito: Wikimedia Commons

 Vista da cidade de Salvador no século 19

Sua mãe, a quem nunca mais viu, seria Luiza Mahin, ex-escravizada e líder da Revolta dos Malês. Gama chegou escravizado a São Paulo e não só conseguiu reaver sua liberdade como lutou para estendê-la a muitos, nas décadas que antecederam a abolição.

Abolicionista, jurista e escritor, Luiz Gama é um dos grandes personagens brasileiros do século 19. Nascido livre em Salvador, em 1830, foi vendido como escravizado aos dez anos pelo pai, um homem branco de ascendência portuguesa, para quitar dívidas de jogo. 

Crédito : Rafael Castro y Ordoñez/Domínio Público

A primeira lei que proibiu o tráfico de escravizados no Brasil foi promulgada em 1831. Ela declarava livres todos os africanos trazidos ao país a partir daquele momento.

 A lei não “pegou”, mas foi uma das bases legais para abolicionistas como Luiz Gama atuarem nos tribunais em favor da liberdade de indivíduos escravizados ilegalmente. Mesmo sem diploma, ele tinha um grande conhecimento jurídico e pôde exercer a função de advogado, algo legal na época.

Crédito: Wikimedia Commons

Crédito: Wikimedia Commons

Outra forma de libertar escravizados colocada em prática por Gama foi facilitar a compra de alforrias. Ele dava suporte para que cativos negociassem sua liberdade com os senhores, contribuía com recursos próprios e incentivava doações para este fim em espaços como a loja maçônica da qual fazia parte

Além do boca a boca, seus serviços jurídicos eram divulgados em notas que Gama publicava nos jornais. Com o tempo, ficaram tão conhecidos que atraíam escravizados de outras cidades, como Jundiaí, Campinas e até do Rio de Janeiro.

Crédito: Coleção Militao Augusto de Azevedo/Museu Paulista da USP

Busto em homenagem a Luiz Gama no Largo do Arouche, em São Paulo

A luta pela abolição acontecia em muitas frentes, e a participação de Gama não ficou restrita aos tribunais. Jornalista e poeta, ele publicou artigos na imprensa, fundou jornais, escreveu livros e discursou em praça pública pela abolição. 

Era respeitado e estimado por escravizados e figurões da época, como Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, transitando nos diferentes estratos da sociedade brasileira. Afirmava com orgulho sua identidade negra, algo que não era comum no período.

Crédito: Wikimedia Commons 

Luiz Gama
em artigo na imprensa, defendendo a liberdade dos negros escravizados.

São livres! Repetiremos perante o país inteiro, enquanto a peita [corrupção] e a degradação impunemente ousarem afirmar o contrário

Ele já havia obtido, em 2015, o registro profissional honorário da Ordem dos Advogados do Brasil. São reconhecimentos que, mesmo póstumos, têm um simbolismo importante para tornar figuras como ele mais conhecidas pelos brasileiros.

Em 2021, Gama ganhou sua primeira cinebiografia: “Doutor Gama”, filme do diretor Jeferson De que estreou nos cinemas em agosto. Também recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela USP. 

Crédito: Divulgação

Mas ainda é pouco. A Ecoa, a pós-doutoranda em História pela Unifesp Renata Ribeiro Francisco diz que as homenagens a Luiz Gama e sua presença nos livros didáticos não são proporcionais à importância histórica que ele tem: “Via de regra, não se encontram personagens como ele nos livros didáticos. E, quando está lá, é sempre um resumo rápido, que não contempla sua dimensão e complexidade. Como se dedica apenas cinco linhas para se referir a alguém com toda essa narrativa ampla de luta?”

Crédito: Arquivo pessoal

Gama não testemunhou a abolição da escravidão no Brasil — morreu em 24 de agosto de 1882, seis anos antes da Lei Áurea. Mas sua luta e de outros abolicionistas foram centrais para que ela se concretizasse. Segundo Wallace Corbo, professor de direito constitucional da FGV Direito Rio, esse legado serve de inspiração ainda hoje para transformar a sociedade.

Crédito: Domínio Público

"O ativismo do Luiz Gama mostra a necessidade de nos valermos do nosso conhecimento ou buscarmos o conhecimento necessário para corroer, da forma que está ao nosso alcance, as amarras da nossa sociedade. Ele nos ensinou a não encontrar nos obstáculos profundos da sociedade a impossibilidade de agir, a usar os instrumentos que temos para promover uma transformação social mais profunda. Ainda que nós não vejamos essa grande transformação, essa atuação certamente impacta vidas, como foi o caso dele"

Wallace Corbo
Professor da FGV Direito Rio

Crédito: Arquivo pessoal

Edição: Fred Di Giacomo

Reportagem: Juliana Domingos de Lima

Publicado em 28 de agosto de 2021.