Hiperplasia adrenal congênita: condição genética provoca puberdade precoce

A hiperplasia adrenal congênita (HAC) é um conjunto de doenças genéticas raras que afetam o funcionamento das glândulas adrenais —duas pequenas glândulas que ficam acima dos rins e produzem hormônios importantes para o organismo, como o cortisol.

Essas doenças são hereditárias, ou seja, passam de pais para filhos e ocorrem quando o organismo não consegue produzir corretamente enzimas essenciais para a fabricação do cortisol, o que pode gerar desequilíbrios hormonais com consequências graves à saúde.

A forma mais comum de HAC é causada pela deficiência da enzima 21-hidroxilase e é causado por alterações no gene CYP21A2. A gravidade dos sintomas varia conforme o grau de deficiência da enzima.

No Brasil, a segunda forma mais frequente é a deficiência de 11-beta-hidroxilase, associada ao gene CYP11B1, que também leva à produção excessiva de andrógenos (hormônios sexuais masculinos) e pode causar hipertensão.

A deficiência de 17-alfa-hidroxilase, por sua vez, é uma forma muito mais rara da condição. Ela representa menos de 1% dos casos de hiperplasia adrenal congênita (HAC) no mundo.

Sintomas podem ser leves ou graves

A forma mais comum da hiperplasia adrenal congênita (HAC) acontece quando há deficiência da enzima 21-hidroxilase (21OH). A gravidade dos sintomas varia conforme o quanto essa enzima funciona. Eles aparecem principalmente por três motivos: falta de cortisol, falta de aldosterona (hormônio que regula o sal e a água no corpo) e excesso de hormônios sexuais masculinos (andrógenos).

HAC por deficiência da 21OH:

Formas clássicas (mais graves)

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1. Perdedora de sal (PS): representa 70% a 75% dos casos graves.

  • Bebês perdem muito sal e água pela urina, o que pode causar desidratação severa, vômitos, perda de peso, pressão baixa e risco de morte;
  • A crise geralmente ocorre entre o 8º e 15º dia de vida;
  • Meninas podem nascer com genitália diferente do esperado (ambiguidade genital) devido ao excesso de andrógenos;
  • Meninos e meninas podem apresentar sinais de puberdade precoce, como crescimento acelerado, pelos e acne ainda na infância.
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2. Virilizante simples (VS): tem menor gravidade, mas ainda há excesso de hormônios sexuais masculinos.

  • Pode causar alterações no órgão genital de meninas ainda na barriga da mãe;
  • Após o nascimento, meninos e meninas podem apresentar pelos pubianos precoces, acne e crescimento rápido, levando à baixa estatura final.

Forma não clássica (mais leve): deficiência parcial da 21OH, com sintomas leves e de início tardio.

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  • Os sintomas aparecem mais tarde, na infância ou adolescência;
  • Não oferece risco à vida, mas pode causar excesso de pelos, acne, engrossamento da voz, menstruação irregular e dificuldade para engravidar em mulheres.

A forma clássica de HAC por deficiência de 21-hidroxilase afeta cerca de um a cada 10 mil a 18 mil recém-nascidos no Brasil. Já a forma não clássica é mais frequente (pode afetar até um em cada 100 pessoas), especialmente entre certas populações do Mediterrâneo, Estados Unidos e Europa.

No Brasil, ainda não há dados precisos, mas a forma não clássica é considerada subdiagnosticada, pois muitas vezes é confundida com outras condições, como síndrome dos ovários policísticos (SOP) ou distúrbios menstruais comuns.

HAC por deficiência de 11-beta-hidroxilase ou HAC por 11OH

Outra forma importante de HAC, embora menos comum (5% a 15% dos casos), é causada pela deficiência da enzima 11-beta-hidroxilase. Ela também leva ao excesso de andrógenos, o que pode gerar:

  • Genitália ambígua em meninas;
  • Aumento do pênis em meninos (macrogenitossomia);
  • Puberdade precoce em ambos os sexos (aumento de pelos).
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No entanto, seu principal diferencial é a presença de hipertensão arterial desde os primeiros anos de vida, causada pelo acúmulo de uma substância chamada desoxicorticosterona (DOC). Essa substância tem ação semelhante à aldosterona e leva à retenção de sódio e aumento da pressão arterial. Mas essa forma de HAC não causa perda de sal, ao contrário da forma clássica perdedora de sal da 21OH.

Atenção: todo bebê com genitália diferente do esperado e sem testículos visíveis deve ser avaliado ainda na maternidade para investigar HAC o quanto antes, já que o diagnóstico precoce pode evitar complicações graves.

Qual é o principal sinal indicativo

Em recém-nascidas, o sinal mais comum é a genitália com aparência masculina, causada pelo excesso de hormônios masculinos durante a gestação —isso é típico das formas mais graves da doença.

Nos meninos, o diagnóstico é mais difícil ao nascer, já que os genitais geralmente parecem normais. Nesses casos, a HAC costuma ser descoberta dias depois, quando o bebê apresenta uma crise grave de desidratação por perda de sal e água e passa por exames. Em outros casos, os sinais aparecem mais tarde, na infância, com sintomas como puberdade precoce, pelos, acne e crescimento acelerado.

Como é feito o diagnóstico

1. Teste de triagem neonatal (teste do pezinho ampliado)

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  • É realizado, em geral, até 48 horas após o nascimento do bebê;
  • No caso da HAC, esse teste mede o nível da 17OH-progesterona (17OHP) no sangue, que é coletado através de gotinhas no papel de filtro;
  • Se estiver muito alto, pode indicar a doença e o bebê é chamado para exames confirmatórios.

Alguns serviços de saúde também solicitam exames como ureia, creatinina, glicemia e gasometria, principalmente quando o teste do pezinho atrasou. Esses exames ajudam a verificar se o bebê já apresenta sinais graves, como desidratação, baixa de açúcar no sangue e desequilíbrios no organismo.

2. Dosagem de hormônios no sangue (exames confirmatórios):
Após um teste de triagem alterado, são feitos exames no soro (sangue) para verificar com mais precisão:

  • 17OH-progesterona (17OHP): geralmente muito alta na HAC clássica;
  • Androstenediona: outro hormônio masculino que costuma estar aumentado;
  • Testosterona: pode estar elevada, principalmente em meninas com virilização (com características físicas masculinas);
  • Cortisol: pode estar baixo (porque é o hormônio que o corpo não consegue produzir direito);
  • Sódio e potássio: importantes para avaliar se o bebê está perdendo sal.
  • Renina: usada para ajustar a dose de medicamentos que ajudam a equilibrar os sais no corpo.

3. Exames adicionais em alguns casos:

  • Cariótipo (exame genético): para confirmar o sexo genético (XX ou XY), principalmente em bebês com genitália ambígua;
  • Teste molecular (biologia molecular): pesquisa mutações no gene CYP21A2, que causa a maioria dos casos de HAC. Útil em casos leves ou duvidosos;
  • Ultrassonografia pélvica: ajuda a identificar órgãos internos (como útero e ovários) em bebês com genitália diferente do esperado.
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O que esperar do tratamento

O tratamento da hiperplasia adrenal congênita (HAC) tem como objetivo repor os hormônios que o corpo não consegue produzir corretamente (como o cortisol e a aldosterona) e controlar o excesso de hormônios sexuais masculinos. Isso permite que o crescimento e o desenvolvimento na infância ocorram de forma mais saudável e dentro do esperado. Mas não há cura para essa condição.

  • Glicocorticoides (para repor o cortisol): é o tratamento da forma clássica. São usados medicamentos como hidrocortisona ou cortisona. Em situações de estresse (como febre, cirurgias ou infecções), os responsáveis devem estar orientados a ajustar as doses do corticoide para evitar crises.
  • Mineralocorticoides (para repor a aldosterona): nos casos em que há perda de sal (forma perdedora de sal), é necessário usar fludrocortisona, com a dose ajustada conforme o crescimento da criança. O bebê pode precisar de suplementação de sódio por meio de sal diluído em água.
  • Dexametasona (em casos específicos): pode ser indicada em adolescentes e adultos com a forma não clássica, ajudando a reduzir o excesso de hormônios masculinos, como pelos em excesso e menstruação irregular, ao suprimir a produção de ACTH - hormônio que estimula as glândulas adrenais (ou suprarrenais) a produzirem cortisol. Quando há deficiência de cortisol, o ACTH se eleva, levando à produção aumentada de andrógenos.

Importante: apenas o médico pode avaliar cada caso e definir o melhor tratamento. Por isso, nunca inicie, interrompa ou modifique a medicação sem orientação profissional.

Cabe aos pais e cuidadores estarem atentos aos sinais de alerta e saberem como agir em emergências. É fundamental que a criança utilize uma identificação (como pulseira, colar ou cartão) informando que faz uso contínuo de corticoides —o que pode ser decisivo em atendimentos médicos de urgência.

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Acompanhamento dos bebês com HAC

O cuidado deve ser feito por uma equipe especializada, com endocrinologista pediatra e outros profissionais.

Nos primeiros dois meses:

  • Consultas semanais (principalmente nos casos com perda de sal);
  • Avaliação do crescimento, peso e sinais de excesso ou falta de hormônios;
  • Exames de sangue para verificar sódio, potássio, 17-hidroxiprogesterona (17OHP), androstenediona e testosterona (em meninas).

Com o tempo, a frequência das consultas diminui, seguindo a idade da criança e as recomendações médicas.

O exame de atividade de renina plasmática (ARP) ajuda a verificar se a dose do remédio está adequada. Renina muito baixa pode indicar excesso de medicação, afetando o crescimento e a pressão.

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A partir dos dois anos, é feita uma radiografia anual da mão e do punho esquerdo para acompanhar o ritmo do crescimento ósseo.

Cirurgia para correção da genitália

Quando a menina nasce com genitália virilizada (mais parecida com a masculina), pode ser indicada uma cirurgia chamada genitoplastia feminizante, geralmente feita antes dos dois anos.

Objetivos do procedimento:

  • Ajustar a aparência e a função da genitália para o padrão feminino;
  • Permitir passagem normal da urina e menstruação no futuro;
  • Preservar a sensibilidade da região.

O que é feito na genitália:

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  • Redução do clitóris aumentado, mantendo a parte sensível;
  • Remoção de tecido excedente que dá aparência de pênis;
  • Abertura e alargamento do canal urinário/vaginal (seio urogenital) para evitar complicações futuras.

Em diagnósticos mais tardios, a cirurgia só é indicada após avaliação psicológica, respeitando a identidade de gênero da criança.

Importância do apoio psicológico

O acompanhamento com psicólogo é essencial em casos de HAC, pois ajuda o paciente e a família a lidar com o diagnóstico, seguir o tratamento e enfrentar dúvidas sobre identidade de gênero. Esse suporte emocional é importante para o bem-estar físico e mental, garantindo mais qualidade de vida.

Outras consequências também são tratáveis

1. Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP) - diagnóstico diferencial

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Mulheres com a forma não clássica da HAC podem apresentar sintomas muito parecidos com a SOP, como:

  • Irregularidade menstrual;
  • Excesso de pelos (hirsutismo);
  • Acne persistente;
  • Dificuldade para engravidar.

No entanto, apesar da semelhança clínica, a causa é diferente: na HAC, o excesso de andrógenos (hormônios masculinos) vem da glândula adrenal, enquanto na SOP, vem dos ovários.

Por isso, é fundamental fazer exames específicos (como 17OHP e androstenediona) para diferenciar as duas condições, pois o tratamento pode ser diferente.

2. Acne intensa e hirsutismo

O excesso de andrógenos também leva a:

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  • Aumento da oleosidade da pele;
  • Acne resistente a tratamentos comuns;
  • Crescimento excessivo de pelos em áreas como rosto, peito, abdômen e costas.

Esses efeitos impactam a qualidade de vida e a autoestima, e muitas vezes são tratados com medicamentos antiandrogênicos, como acetato de ciproterona ou espironolactona, além do controle hormonal com glicocorticoides.

3. Hipertensão arterial

Na forma de HAC causada por deficiência da enzima 11-beta-hidroxilase, o organismo começa a acumular desoxicorticosterona (DOC), um hormônio com efeito mineralocorticoide (semelhante à aldosterona). Isso leva à retenção de sódio e água, resultando em:

  • Pressão alta desde a infância ou adolescência;
  • Risco aumentado de problemas cardíacos e renais no futuro.

O tratamento nesse caso também envolve o uso de glicocorticoides para suprimir a produção de ACTH e reduzir os níveis de DOC, ajudando a controlar a pressão arterial.

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Fontes: Osmario Salles, endocrinologista do Hospital Aliança, da Rede D'Or, de Salvador; Priscila Prata Cursi, médica intensivista pediátrica e coordenadora da UTI pediátrica do HNipo (Hospital Nipo-Brasileiro), em São Paulo; Thiago Rodrigues Cavole, médico geneticista do laboratório DLE do Grupo Fleury.

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