Uma viagem pela saúde mental

Estudos avançam no Brasil e no mundo para descobrir se psicodélicos podem tratar depressão, vícios e traumas

Carlos Minuano Colaboração para o VivaBem

Por causa do vício, a família do sociólogo e poeta cordelista Zerivan de Oliveira estava desestruturada. Na época, sua filha estava com 5 anos e o casamento ia mal, a separação parecia inevitável. "Ninguém aguentava mais", lembra ele.

Com o excesso de álcool e cocaína veio também a depressão. Nesse momento conturbado, aos 28 anos, ele encontrou uma igreja do Santo Daime, culto religioso que usa ritualisticamente a bebida psicodélica ayahuasca.

A primeira experiência foi tensa, recorda Zerivan. As lembranças são de sensações horríveis, vômito e mal-estar. Mas também de uma voz misteriosa que, segundo ele, apontou um novo caminho para sua vida.

Depois, levou esposa, filha e, após cinco anos, assumiu a direção dos trabalhos do grupo, localizado na zona rural de Cascavel, no Ceará. "Eu me identifiquei, me tocou profundamente", diz.

Para Zerivan, graças ao ritual do Santo Daime, há 20 anos vício e depressão são coisas do passado. Porém, ele percebeu que para outros com dramas semelhantes o chá das visões não surtia o mesmo efeito —pesquisas mais recentes mostram que a substância tem efeito antidepressivo, mas faltam estudos clínicos mais abrangentes e com um número maior de pacientes para comprovar isso.

O sociólogo também percebeu que, para muitos, os espaços religiosos que usavam a ayahuasca pareciam impor uma barreira à terapia. Após participar de um evento sobre ciência psicodélica na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), animado e inspirado nos avanços desse campo de estudo, ele criou o Centro Aya. O local, em funcionamento há três anos, além do uso ritual da ayahuasca, oferece acolhimento terapêutico.

Ciência e espiritualidade de mãos dadas

O trabalho do Centro Aya, no Ceará, chamou a atenção do neurocientista Draulio Barros de Araújo, professor do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).

Diferentemente de suas pesquisas anteriores, nas quais a substância foi administrada a pacientes em laboratório, o novo estudo, previsto para iniciar este ano, levará a ciência para as comunidades ayahuasqueiras, em parceria com grupos religiosos e espaços de terapias holísticas.

Por meio de um aplicativo para smartphone, as pessoas responderão às avaliações da pesquisa após as sessões com ayahuasca. O centro holístico cearense é um dos parceiros já confirmados na nova pesquisa.

No Brasil, uma resolução de 2010 do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) restringe o uso da bebida psicodélica para rituais religiosos. Mas o documento resguarda a utilização com fins terapêuticos, se a eficiência for comprovada "por meio de pesquisas científicas".

Sabe-se que trabalhos terapêuticos se espalham pelo país. Os atendimentos focam principalmente no tratamento da dependência química, mas há também projetos sérios com reabilitação de presidiários e acolhimento de pessoas em situação de rua.

"A expansão desse circuito é impulsionada pelo avanço dos estudos com o chá", acredita o pesquisador. Para ele, a avaliação científica desses modelos pode criar uma margem de segurança aos trabalhos, se comprovados os benefícios.

O que são os psicodélicos?

São bebidas e substâncias produzidas a partir de plantas, cogumelos ou até sinteticamente (em laboratório). Cientistas mostraram que drogas como DMT (dimetiltriptamina), LSD, mescalina e psilocibina atuam no cérebro, ligando-se a receptores específicos de serotonina (substância responsável pelo bem-estar, entre outras funções). Sua ação sobre esses receptores resulta em efeitos alucinógenos e em alterações na percepção.

Estudos apontam que os psicodélicos "amortecem" regiões cerebrais responsáveis por nosso "piloto automático", ou seja, por coisas que fazemos sem prestar muita atenção, como pedalar ou dirigir. Acredita-se que essa área do cérebro pode se tornar muito rígida quando as pessoas têm ansiedade e depressão e que, ao silenciá-la, as drogas psicodélicas parecem permitir diferentes interconexões no cérebro, resultando em um senso de perspectiva alterado e maior flexibilidade psicológica. Pesquisadores acreditam que isso pode ser positivo no tratamento de transtornos mentais (explicamos melhor mais abaixo).

No entanto, é preciso cuidado. Apesar de alguns estudos já terem confirmado o efeito antidepressivo de algumas substâncias, eles ainda estão na fase de testes e ainda não há comprovação científica robusta de que as terapias funcionam.

Além disso, há riscos: se utilizados em doses exageradas, sem orientação e acompanhamento de especialistas, os psicodélicos podem gerar problemas como ansiedade, medo, surtos psicóticos, vômito, mal-estar e até arritmia cardíaca —alteração dos batimentos do coração, tornando-os mais acelerados ou lentos, o que pode provocar tontura, desmaio e até uma parada cardíaca.

Estado alterado da consciência auxilia no tratamento

Não é de hoje que drogas psicodélicas são estudadas para tratar distúrbios mentais. Mas, por questões políticas, abusos e fartas doses de desinformação, foram proibidas e perseguidas por décadas.

Para a surpresa dos mais conservadores, essas controversas substâncias voltaram a ser estudadas e podem se tornar tratamentos revolucionários para depressão, ansiedade, vícios, traumas e outras doenças.

Cientistas avançam no entendimento de como elas agem. "Há modificações nos processos fisiológicos e mentais", diz Renato Filev, pesquisador da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador científico da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas.

Segundo o especialista, isso possibilita reflexões sobre questões da vida em um estado alterado de consciência, ou seja, por uma perspectiva que não seria possível no padrão ordinário de percepção —o problema visto por novos ângulos. "Há um aumento de conexões sinápticas, formação de novos neurônios, alteração da percepção sensorial, das funções cognitivas de memória e aprendizagem", detalha Filev.

O pesquisador da Unifesp está à frente de um novo ensaio clínico com psilocibina (extraída dos cogumelos psicodélicos), que será realizado a partir de 2022 em parceria com universidades e pesquisadores de várias regiões do país.

"O foco será avaliar a viabilidade e a segurança desse tipo de terapia para pessoas que apresentam abuso de substâncias, como álcool e tabaco."

Estudos ainda estão em andamento

Um exemplo da solidez do avanço da ciência psicodélica no Brasil é o estudo clínico pioneiro com ibogaína, que será realizado no IPq (Instituto de Psiquiatria) da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

Serão avaliadas a segurança e a eficácia da substância no tratamento de dependência de crack e cocaína. Prevista para iniciar em janeiro de 2022, a pesquisa deve atender 80 pacientes que passaram por outros tratamentos sem resultados satisfatórios.

O psiquiatra do IPq André Brooking Negrão, responsável pelo estudo, explica que um dos objetivos é testar o potencial da ibogaína "para reduzir ou eliminar a fissura (vontade descontrolada)", que leva o dependente a recair no vício, mesmo após períodos de abstinência.

No Brasil, o uso terapêutico da ibogaína não é proibido nem regulamentado. Mas a importação da substância, com indicação médica, é autorizada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

As pesquisas sobre ibogaína, ainda escassas, são importantes, porque falta segurança em tratamentos, ressalta Rafael Guimarães dos Santos, neurocientista da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, que também fará estudo com a droga.

O risco de arritmias cardíacas exige infraestrutura hospitalar e equipe médica, e muitas clínicas não dispõem disso, diz o pesquisador. Ele ainda pede cuidado: se propagar uma ideia de eficácia já comprovada dos psicodélicos em geral, isso pode induzir à automedicação e ser perigoso, avisa o neurocientista. "Estudos são promissores, mas preliminares."

Psicodélicos no tratamento da fobia social e de transtornos causados pela pandemia

Pouco diagnosticada e com tratamentos limitados, a timidez e o medo de falar em público estão no radar de pesquisadores psicodélicos. Um estudo conduzido pelo neurocientista Rafael Guimarães dos Santos, da USP de Ribeirão Preto, indica que a fobia social pode ser tratada com ayahuasca.

São pessoas com níveis altos de ansiedade em situações específicas, observa o pesquisador, como falar em público, comer com outras pessoas na mesa, interagir com chefes ou até se relacionar amorosamente.

A pesquisa avaliou cerca de 20 pacientes. Após uma sessão com ayahuasca, os participantes eram filmados durante uma simulação de fala em público. Os resultados, publicados em um artigo na revista especializada Journal of Clinical Psychopharmacology, apontaram uma melhora significativa da autopercepção e do desempenho.

Apesar do número reduzido de voluntários, não foi fácil, admite Guimarães. "Imagina convidar alguém com medo de socializar-se para beber um alucinógeno em um laboratório."

Os efeitos da pandemia também estão na mira de cientistas. Boa notícia para pacientes com transtornos mentais associados à covid-19 e que poderão ser tratados por meio de psicoterapia assistida com psicodélicos.

O Instituto Phaneros, liderado pelo neurocientista Eduardo Schenberg, obteve autorização para seis protocolos de pesquisa com MDMA e psilocibina, que devem atender cerca de 270 pessoas a partir do começo de 2022, ao longo de dois anos.

Corrida psicodélica

Novas pesquisas estão mudando o entendimento sobre os psicodélicos. Milhares de artigos científicos nos últimos anos mostram que, se utilizados em doses corretas, não são substâncias nocivas e que podem revolucionar, principalmente, o campo da saúde mental.

Centros de pesquisas se multiplicam pelo mundo, investidores estão apostando alto no setor e há uma corrida por patentes de substâncias psicodélicas.

"Há um enorme 'boom', centenas de novas empresas chegando", afirma Bia Labate, doutora em antropologia social e diretora-executiva do Instituto Chacruna de Plantas Psicodélicas Medicinais, sediado na Califórnia (EUA). Apesar de empolgante, ela reconhece que o momento pede cautela.

"Patentes podem ser fontes legítimas de proteção de inovações, mas há também abusos, tentativas de monopolizar substâncias e técnicas", pondera a pesquisadora. "É possível que as terapias psicodélicas sejam dirigidas para uma minoria e uma elite."

Por aqui, o flerte entre mercado e pesquisas deve receber um impulso extra. Criada este ano, a Scirama, startup focada no potencial terapêutico dos psicodélicos, prevê um edital para novos estudos.

O objetivo é atuar na lacuna de desenvolvimento tecnológico em universidades, explica a diretora-executiva da startup, Clarice Pires. "Vamos estabelecer arranjos produtivos com o meio acadêmico, onde está borbulhando o conhecimento sobre o tema, e levar isso para a sociedade através de parcerias com a indústria", diz.

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