Quem cuida delas?

Ainda responsabilizadas pela esfera doméstica, mulheres em triplas jornadas enfrentam sobrecarga mental

Lívia Inácio Colaboração para o VivaBem Cristxine

A mulher multitarefa é uma figura clássica na cultura contemporânea. A "heroína" alia casa, carreira e filhos sem deixar a peteca cair, mas essa sobrecarga disfarçada de elogio tem convencido cada vez menos.

Relegadas por séculos à vida doméstica, trabalhadoras ampliaram sua presença no mercado, mas acumularam o expediente não remunerado do lar e todo o estresse decorrente das jornadas duplas, triplas e até quádruplas (trabalhar, cuidar da casa, dos filhos e estudar). Dados de 2016 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que 53% dos homens se ocupam de afazeres domésticos, frente a 90% das mulheres. Entre eles, a média de dedicação semanal a essas atividades é de 10,8 horas. Já elas dedicam 24,4 horas —ou seja, mais que o dobro.

Quem paga a conta desse equilibrismo árduo é a saúde mental. Cobradas por tarefas intermináveis em casa e tendo que conciliá-las à vida corporativa, as mulheres chegam a uma exaustão inevitável, que pode levar à ansiedade, depressão e até à ideação suicida.

A pandemia, com o home office e as aulas remotas, acentuou a estafa mental. Segundo um estudo da USP (Universidade de São Paulo), as mulheres foram as mais afetadas emocionalmente pela crise sanitária. A difícil conciliação entre casa e trabalho pode estar entre os motivos da dor psíquica.

O cenário é agravado pelo índice de violência doméstica e a vulnerabilidade econômica de mulheres negras e periféricas. Sobretudo, das que criam filhos sozinhas.

Até quando elas seguirão carregando o mundo nas costas?

Por que as mulheres são responsabilizadas pelo cuidado

Cuidar da família e da casa é uma tarefa importante. O problema é que durante muito tempo esse foi o único papel atribuído às mulheres —e com alguns agravantes. A dedicação ao lar, assim como hoje, não era remunerada. Isso dificultava qualquer liberdade financeira e aumentava a vulnerabilidade à violência doméstica.

Um segundo ponto era a ausência de uma interface com a esfera pública. Mulheres precisavam ser civilmente amparadas por seus pais ou maridos sob diferentes perspectivas. No Brasil, por exemplo, até 1962, as casadas não podiam trabalhar sem a autorização dos esposos.

Essa realidade pode até parecer distante para alguns, mas colocada em perspectiva é recente e respinga na forma como o trabalho ainda hoje é dividido. A médica Júlia Morelli Rosas, diretora da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), tem viva na memória a imagem da avó triste, que era tachada de chata, dramática e rabugenta, mas que estava exausta de ter que cuidar de tudo.

Um dia fui conversar com ela para entender o motivo de tantos conflitos com meu avô e ela explicou que estava cansada de ser a empregada de todo mundo. Hoje consigo entender o que ela enfrentava"

Júlia Morelli Rosas, por telefone, minutos antes de preparar o filho para a aula.

Ela entra no mercado de trabalho, mas sem deixar a casa

Conforme explica a professora Carmem Leitão, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da UFC (Universidade Federal do Ceará), essa divisão sempre sustentou o modelo de produção capitalista, que ancora nossa economia. Os maridos saíam para trabalhar, enquanto as esposas seguravam as pontas no âmbito privado. Sem direito a férias, nem remuneração.

Foi após a Revolução Industrial, principalmente no pós-guerra, com a morte de homens em campos de batalha, que as mulheres passaram a ocupar postos no chão de fábrica, por necessidade. A trabalhadora, além de mal remunerada, era submetida a longas jornadas, estava sujeita a diferentes formas de assédio e ainda era privada de direitos civis, como o de votar.

Gerações de ativistas lutaram muito por mudanças frente a isso. E com sucessos. Mas uma barreira ainda a ser superada é a velha ideia de que a mulher tem que dar conta de tudo porque é versátil e cuidadora por natureza. O que a história mostra é que essa condição é social e impacta profundamente na qualidade de vida de quem precisa se virar em mil para não sentir que fracassou.

Duplas e triplas jornadas geram culpa e abalam saúde mental

Cuidando sozinha dos dois filhos, Amanda Gonçalves, 31, tinha uma rotina apertada. O pai das crianças pagava R$ 300 de pensão e a cozinheira trabalhava para suprir o que fosse necessário. O ápice da exaustão veio em 2019, quando ela foi proibida de vender seus produtos na mesa de café da manhã que mantinha em frente a uma universidade, em Curitiba.

Na luta para seguir como autônoma e sustentar as crianças, Amanda entrou em depressão e tentou suicídio duas vezes. Três amigas cientes da situação a levaram ao médico e criaram um grupo no WhatsApp para monitorá-la. A cozinheira conta ter enfrentado uma culpa latente que ronda a maioria das mulheres. "Sempre tem alguém que aponta o dedo para a gente. Mas me cansei disso e hoje até me permito deixar a casa bagunçada", diz. "Muitas vezes, temos que ouvir o julgamento alheio e matar a dor no peito".

Mirian Czaikowski, 34, sentia algo parecido em forma de cobrança interna. Há seis anos, quando decidiu fazer faculdade, era mãe, trabalhava fora e, embora tivesse o suporte do marido, que assumiu a maior parte das tarefas domésticas, sentia-se insuficiente por não cumprir "o que se espera de uma mulher": dona de casa perfeita, mãe e esposa impecável, aluna e profissional exemplar.

Isso gerava uma exaustão mental imensa, com crises de insônia e ansiedade. "Eu queria controlar até a forma como meu esposo picava o frango. Afinal, aprendi que, como mulher, devia ser autoridade na cozinha e não podia deixar a comida mais ou menos", diz.

Apenas com terapia Miriam conseguiu aceitar que não era obrigada a dar conta de tudo . "De vez em quando a autocobrança ainda me pega. Mas tenho aprendido a ser mais leve e generosa comigo".

8 formas de cuidar de si

  • Tenha uma rede de apoio

    Busque estar entre pessoas que a compreendam, seja porque acompanham sua realidade, seja porque enfrentam desafios parecidos com os seus.

  • Procure ajuda profissional

    Na unidade de saúde mais próxima de sua casa, há sempre uma equipe de atenção primária preparada para ouvi-la e, se necessário, encaminhar você ao atendimento mais adequado ao seu caso. Sessões de psicanálise e psicoterapia também são bem-vindas.

  • Diga não

    Não acumule tarefas que você não tem condições de assumir. Saiba dizer não quando necessário.

  • Cuide de você

    Coloque um tempo na sua rotina para se cuidar e fazer algo que realmente goste. Dê a si mesma o direito de ficar sozinha e apresente esses limites a quem vive com você.

  • Não se cobre tanto

    Permita-se errar e aprender com os tropeços.

  • Não se prenda aos afazeres domésticos

    É bom ter uma casa arrumada, uma louça lavada, mas não viva em função dessas tarefas. A vida é muito curta para sofrer tanto por elas.

  • Peça ajuda

    Saiba pedir auxilio a quem está do seu lado, mas aceite a forma do outro trabalhar. Nem todo mundo vai lavar a louça da maneira como você lava e a necessidade de querer controlar tudo é exaustiva.

  • Escute seu corpo

    A sobrecarga mental pode estar camuflada em sintomas físicos, como dores de cabeça e de estômago. Portanto, busque entender o que seu corpo quer dizer e encare com carinho os alertas que ele apresenta.

Como reduzir a sobrecarga mental

Encontrar leveza e alívio passa por procurar ajuda e impor limites ao excesso de tarefas. A psiquiatra Raquel Heep, professora da UP (Universidade Positivo), lembra que "a vontade de desaparecer" é comum entre mulheres que estão à beira do colapso. "Esse desejo de largar tudo está ligado a uma necessidade latente de descansar. Então, é hora de olhar para si."

Quando não se ouve esse sinal do corpo, a estafa mental pode ganhar contornos mais graves, impulsionando a ideação suicida, um anseio persistente pela morte. O tratamento, segundo a especialista, é buscar um médico o quanto, antes a fim de encontrar um equilíbrio que é biológico, mas também psicológico e social, conforme orienta a OMS (Organização Mundial da Saúde).

A médica Rosylane Rocha, presidente da ANMT (Associação Nacional de Medicina do Trabalho), acrescenta que, na prática laboral, sintomas como fadiga, cefaleia, irritabilidade e prejuízo da atenção também são alertas importantes.

Júlia Pundeck Loureiro, psicóloga que atua no Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, em Curitiba, pondera ainda que, paralelamente a esse caminhar da mulher, os homens precisam dar passos adiante, questionando o padrão vigente de masculinidade, que é tóxico e nocivo para toda a sociedade.

Mulheres pobres estão mais expostas

Embora seja importante reconhecer os próprios limites e buscar ajuda profissional, essa rota é especialmente difícil para mulheres em situação de vulnerabilidade, conforme lembra Lívia Martins Salomão Brodbeck, coordenadora do Nudem (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher), no Paraná.

A sobrecarga de tarefas muitas vezes se soma a casos de violência, desemprego e acesso limitado a serviços como a psicoterapia. "Desde 2019, temos presenciado um desfinanciamento da estrutura de apoio à saúde mental na atenção primária. Um retrocesso lamentável", diz Rosas.

No que tange à insegurança, Laura Soares*, 28, é um bom exemplo. A confeiteira trabalha como autônoma, cuida sozinha da casa e da filha e ainda precisa se preocupar em se proteger do ex-marido —que não pode se aproximar da mulher por conta de uma medida protetiva. "Minha cabeça está sempre a mil, não consigo sequer encontrar minhas amigas para conversar".

A cabeleireira, diarista e líder comunitária Andreia Soares de Lima, 45, ativa na comunidade do Parolin, em Curitiba, acrescenta uma situação angustiante entre as mães solo nesse momento de pandemia. É comum que elas alterem o horário em que as crianças dormem para reduzir a quantidade de refeições em casa. "Com as aulas remotas, não se pode mais contar com a merenda escolar", relata.

"No meio de tudo isso, a mulherada se apoia. Uma cuida do filho da outra em troca de uma diária. Conversamos na fila do mercado, falamos mal dos preços. E assim vamos vivendo", diz Andreia.

Entre a luta e a exaustão mental, a mulher negra, que busca amparar suas irmãs com o que consegue fazer, destaca já ter entendido, apesar de tudo, que não é uma heroína e só quer um mundo mais justo e com qualidade de vida. "Não aceito mais ser lida como guerreira. Chega de levar esse peso. A gente não aguenta mais".

*O nome é fictício para preservar a segurança da entrevistada, que está sob medida protetiva.

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