O hormônio da noite

Além de regular o sono, a melatonina é sinalizadora de saúde. Entenda a importância dela para o seu corpo

Renata Turbiani Colaboração para VivaBem

Melatonina. Talvez, você a conheça como "hormônio do sono" —e ela realmente tem como função sinalizar ao organismo que a noite chegou e o corpo deve se "preparar" para dormir. Mas as atribuições da substância vão muito além.

Fabricada principalmente no cérebro, pela glândula pineal, a melatonina interfere diretamente no funcionamento do metabolismo, está relacionada com a quantidade de alimentos que você consome, o gasto calórico diário, o estoque de energia (em forma de gordura) e, consequentemente, o controle do peso.

O hormônio ainda protege contra doenças cardiovasculares (como hipertensão e arritmia) e, segundo Gabriel Natan Pires, pesquisador do Instituto do Sono, "tem propriedades anti-inflamatórias fantásticas e é um potente antioxidante, atuando no combate aos radicais livres que agridem o organismo" —ação que ajuda a inibir o envelhecimento precoce e o crescimento de tumores.

A seguir, explicamos melhor o que é a melatonina e por que você precisa dela tanto para uma boa noite de sono quanto para uma vida mais saudável.

O que é a melatonina

A melatonina está presente em todas as espécies vivas —sim, até em plantas e bactérias. "Nos seres humanos, ela ajuda no sono, mas sua função principal não é nos fazer dormir e, sim, sincronizar internamente o ritmo circadiano e regular o nosso relógio biológico. Ela é um marcador de claro e escuro", explica Bruno Halpern, endocrinologista.

Ao ser secretado, o hormônio manda um sinal ao organismo avisando que já está escuro, para o corpo iniciar adaptações fisiológicas e descansar, incluindo diminuir a pressão arterial e a produção de insulina, baixar a temperatura corporal e mobilizar os estoques energéticos.

José Cipolla-Neto, professor de fisiologia do ICB-USP, comenta que em cerca de 75% da população o início da síntese se dá por volta de 20h, sendo que em pessoas vespertinas começa mais tarde e, nas matutinas, mais cedo.

Outro aspecto importante é que, além da glândula pineal, alguns órgãos fabricam a substância, como estômago, esôfago e intestino. Neles, o uso é apenas local e em pequenas quantidades, mas a ciência ainda não esclareceu quais são exatamente as funções —no intestino, por exemplo, parece que atua na regulação dos movimentos peristálticos, para expelir as fezes.

Recentemente, por conta da pandemia, um estudo realizado pela USP mostrou que a melatonina também é produzida no pulmão e, lá, atuaria como barreira contra o coronavírus (Sars-CoV-2). Só é preciso deixar claro que mais estudos são necessários e que ainda não há qualquer indicação de seu uso no tratamento ou prevenção da covid-19.

Além de ajudar a dormir ela...

Inibe o crescimento de tumores mamários

Estudo realizado por pesquisadores da Famerp (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto) e do Hospital Henry Ford (EUA) demonstrou que o hormônio pode atuar no câncer de mama, reduzindo o crescimento de tumores e a proliferação das células cancerígenas. Essa capacidade estaria relacionada ao seu efeito antioxidante e de controle da formação de novos vasos sanguíneos.

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Previne enxaquecas

Uma pesquisa assinada pelo neurologista André Leite Gonçalves --e apresentada à Unifesp-- constatou que a melatonina é mais eficaz no tratamento preventivo da enxaqueca e melhor tolerada do que a amitriptilina, antidepressivo com propriedades analgésicas bastante utilizado por quem sofre de fortes dores de cabeça. A explicação é que o hormônio tem várias ações dentro do sistema nervoso central, que podem ser responsáveis pelo seu papel analgésico nas cefaleias.

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Protege o coração

Após revisar dados de 162 ensaios clínicos, cientistas da USP e da Universidade Anhembi Morumbi concluíram que a substância pode proteger o coração contra arritmias, doença arterial coronariana, hipertensão e outros distúrbios cardiovasculares. Isso porque ela age sobre a pressão arterial e a frequência cardíaca, e tanto de maneira periférica (nos vasos e no órgão) quanto central (no hipotálamo e em outras estruturas do sistema nervoso central).

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Falta de melatonina é prejudicial ao organismo

Se a presença da melatonina só traz benefícios, mesmo que alguns ainda careçam de mais análises, a sua falta é prejudicial ao organismo. Em primeiro lugar porque desregula o ritmo circadiano, afetando os períodos de vigília e sono. Por exemplo, deixa a pessoa com sonolência quando deveria estar desperta e acordada quando deveria dormir.

Além disso, faz com que o sistema imunológico não atue de forma tão potente como quando se tem a produção adequada, o que favorece o surgimento de infecções.

Estudos também têm indicado que a redução ou ausência dessa substância leva o organismo a um desequilíbrio entre o armazenamento e o consumo energético, com possibilidade de desencadear doenças metabólicas, como obesidade e diabetes.

Uma pesquisa conduzida pelo IBC-USP constatou que, muito além de regular o sono, a melatonina controla a ingestão alimentar, o gasto de energia (e seu acúmulo no tecido adiposo), a síntese e a ação da insulina nas células e é um importante agente anti-hipertensivo.

Outro levantamento sobre o tema foi desenvolvido no Hospital Brigham and Women, da Universidade de Harvard (EUA). Os pesquisadores, ao analisarem 370 mulheres com diabetes tipo 2 e 370 sadias, descobriram que quantidades baixas do hormônio à noite dobram o risco de desenvolver a patologia em comparação com níveis elevados.

O que diminui ou inibe a produção de melatonina

  • Exposição à luz durante a noite

    Mesmo em pequena intensidade e, sobretudo, a luz azul oriunda de aparelhos eletrônicos, como computadores, celulares, tablets e televisões. O que acontece é que os sinais luminosos entram pela retina e confundem o corpo, fazendo-o pensar que é dia.

  • Envelhecimento

    A partir dos 30 anos tem-se uma redução da capacidade de produção da melatonina. Aos 60, estima-se que o organismo "fabrique" cerca de ¼ da quantidade de quando era jovem. Esse é um processo natural da idade, assim como o enfraquecimento dos ossos e a perda de massa muscular.

  • Uso de betabloqueadores

    Classe de fármacos utilizada mais comumente no tratamento da hipertensão arterial, mas também de arritmias e insuficiência cardíaca. Estudos apontam que esses medicamentos inibem a estimulação dos receptores relacionados à melatonina.

  • Hiperglicemia

    É a elevação da glicose no sangue e pode ou não ser causada por doenças subjacentes (como diabetes e resistência à insulina). Essa condição altera o funcionamento de algumas enzimas na glândula pineal responsáveis pela síntese do hormônio.

  • Outra causas

    Apesar de menos comuns, há ainda outras situações que podem interferir na produção, porém mais estudos são necessários. São elas: tumor na glândula pineal, AVC e síndrome de Smith-Magenis.

Papel da melatonina no sono

  • 1

    Já é noite

    A melatonina é a responsável por avisar o corpo que a noite chegou e, portanto, se aproxima o momento de dormir

  • 2

    Vem pra cama!

    Uma de suas funções é induzir o sono, ou seja, provocar a passagem da vigília para o repouso, e mantê-lo enquanto está circulando pela corrente sanguínea.

  • 3

    Acelera...

    O hormônio incita a sensação de sonolência e faz com que o dormir "aconteça" mais rapidamente --estima-se que antecipe o seu início em cerca de 10 ou 15 minutos.

  • 4

    Não faz milagre

    Apesar disso, nem sempre melhora a qualidade do sono ou o torna mais profundo.

  • 5

    Escuridão

    Para que a substância seja secretada, não pode haver luminosidade, pois sua secreção é sensível à luz.

Melatonina ajuda a emagrecer?

Ainda não é possível cravar que a substância faz perder peso, mas há algumas observações importantes

Ter um ciclo de atividades e sono funcionando de forma adequada é fundamental para um metabolismo saudável, e isso está totalmente ligado à melatonina.

Estudos indicam que a substância é importante para o controle da ingestão alimentar e do gasto energético do organismo --quando o balanço final entre eles é positivo (você consome mais calorias do que gasta), ganhamos peso. Além disso, a melatonina tem influência no armazenamento de energia no corpo, que é estocada em forma de gordura (no tecido adiposo e no fígado).

É comprovado que dormir bem promove a regulação de hormônios importantes para o emagrecimento ou manutenção do peso, como GH (hormônio do crescimento, que também estimula a transformação de gordura em energia), grelina (hormônio do apetite) e leptina (hormônio da saciedade).

O sono de qualidade ainda diminui os níveis de cortisol no sangue, considerado o hormônio do estresse, capaz de aumentar o apetite e a produção de glicose e dificultar a queima de gordura.

Dieta saudável é aliada da melatonina

A melatonina é fabricada na glândula pineal a partir da vitamina B3 (niacina) e do triptofano, um aminoácido essencial utilizado pelo cérebro. Nosso organismo não produz a substância e a sua fonte são os alimentos, por isso ter uma dieta saudável é importante. O triptofano está presente em carnes vermelhas, frango, peixes, ovos, abacate, leite e derivados, feijão.

E a própria melatonina pode estar presente no que comemos. Em 2019, pesquisadores da Unifesp publicaram o estudo "Influência das fontes dietéticas de melatonina na qualidade do sono: uma revisão" e seus resultados apontaram para a potencial adequação de fontes alimentares com a substância como adjuvantes na prevenção e tratamento de distúrbios do sono.

Apesar disso, Maria Fernanda Naufel, doutora em nutrição e uma das autoras do trabalho, afirma que mais análises têm de ser feitas para melhor conhecer os aspectos relevantes para o seu uso, inclusive saber as quantidades indicadas e o horário certo para consumo.

"No nosso estudo, os dois alimentos que mais se destacaram foram a cereja azeda, na forma de suco ou concentrada, e o leite de vaca, fermentado, tradicional e ordenhado à noite. No caso desse último, conhecido como 'leite do sono', ele é retirado no período noturno utilizando luz infravermelha para não prejudicar a produção da melatonina pelo animal. Isso faz com que a quantidade do hormônio na bebida seja quase duas vezes maior do que no leite comum."

Outras fontes de melatonina indicadas pela nutricionista são:

Quando é preciso suplementar?

Por conta de uma de suas funções ser a indução ao sono, muita gente que tem problemas para dormir acredita que a melatonina possa ser a salvadora da pátria. Mas não é bem assim. "Como todo e qualquer hormônio, não dá para brincar de tomar. Há algumas condições em que o uso pode ser indicado, mas é preciso analisar cada uma com cuidado e ver se há mesmo a necessidade. A reposição tem de ser comandada e orientada por um médico", observa Cipolla-Neto.

De acordo com Pires, do Instituto do Sono, o composto sintético da substância não pode ser encarado como uma cura para a insônia, mas tem se mostrado eficaz em certos distúrbios do sono. "Um deles é o jet lag (alteração no ritmo circadiano causada por viagens aéreas com grandes diferenças de fuso horário). Outro é a síndrome do atraso de fase, que faz a pessoa dormir e acordar mais tarde", aponta.

Mais uma possível indicação é nos casos de jet lag social, quando há interrupções frequentes na regularidade dos padrões de sono (por exemplo, dormir muito mais tarde do que o habitual ou acordar mais cedo do que o organismo "deseja") capazes de provocar desalinhamento entre o relógio interno e o horário externo.

A suplementação de melatonina também é indicada para idosos que apresentam dificuldade para dormir —o hormônio começa a ser secretado aos dois meses de vida, atinge seu pico antes da adolescência e sua produção reduz com o passar dos anos—, deficientes visuais, já que a não percepção da luminosidade prejudica a liberação do hormônio e portadores do transtorno do espectro autista, pois muitos têm problemas relacionadas ao sono.

Os riscos do uso sem prescrição e acompanhamento

Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, a melatonina é vendida —como suplemento alimentar— livremente em farmácias e até em supermercados. No Brasil, no entanto, a substância não tem registro como medicamento nem como vitamina pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), podendo apenas ser manipulada e obrigatoriamente com prescrição médica.

Na visão de Cipolla-Neto, isso não deveria mudar: "A melatonina é um hormônio e tem de haver normas de administração muito bem controladas. Seu consumo não pode ser algo trivial, pois há consequências se for administrada de forma errada e sem necessidade. A pessoa não pode pensar 'Hoje eu não consegui dormir, então vou tomar melatonina'. Está errado. Ao fazer isso, ela vai bagunçar seu ritmo circadiano diário, a sua fisiologia".

Quando o suplemento é ingerido sem indicação médica, em excesso e em horários inadequados, o composto sintético da substância pode favorecer o surgimento de doenças, como o diabetes, ou agravar problemas de saúde já existentes.

"Se não for tomado exclusivamente à noite, na hora certa, e se a quantidade consumida for muito grande, o hormônio continuará na circulação durante o dia. Isso não é aconselhável, pois pode bagunçar e prejudicar os sistemas cardiovascular e metabólico", complementa o especialista.

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