Cérebro de 90 anos aos 42

Margot Godinho Saito teve diagnóstico de demência frontotemporal, doença que mudou totalmente sua vida

Luiza Vidal De VivaBem, em São Paulo

Um pico de estresse levou Margot Godinho Saito, 42, a procurar uma psicóloga. Na época, ela estava com 38 anos e achou que era por causa do trabalho como analista de logística. Mas a psicóloga levantou a suspeita de que, talvez, algo maior pudesse estar acontecendo.

A especialista estava certa. Após vários exames e consultas com diversos médicos, Margot descobriu ter demência frontotemporal, também conhecida pela sigla DFT.

Diferentemente do Alzheimer, esse tipo de demência não afeta predominantemente a memória. A doença provoca principalmente uma alteração no comportamento —é como se a pessoa mudasse de personalidade. A idade também é um diferencial: a DFT atinge uma parcela muita ativa da população, geralmente com idade entre 45 e 65 anos, enquanto o risco do Alzheimer aparecer aumenta a partir dos 65.

"Por conta da doença, os médicos disseram que parte do meu cérebro parece com o de uma pessoa de 90 anos", diz Margot. De acordo com os especialistas, essa analogia utilizada ocorre porque a demência frontotemporal causa atrofia nas regiões frontais e temporais do cérebro, reduzindo o volume do órgão —algo que acontece de forma natural e progressiva a partir dos 70 anos.

Não há cura para a DFT, os remédios servem apenas para controlar os sintomas, que variam (e explicamos mais adiante). Mesmo assim, é possível ter qualidade de vida, e é exatamente isso que Margot busca.

Diagnóstico errado é uma realidade

A demência frontotemporal é um grupo de doenças neurodegenerativas e progressivas que atingem o cérebro. Em comum, os três tipos (explicados mais abaixo) envolvem uma atrofia nas regiões frontais e temporais do órgão. Pode ocorrer um tipo predominante que, na evolução da doença, progride para outro tipo de DFT. Ou seja, o paciente começa com mudanças comportamentais e depois passa a apresentar dificuldades na fala, ou vice-versa.

A origem pode ser genética. Isso quer dizer que, caso algum familiar tenha a doença, há maior risco de a pessoa desenvolver o problema —mas isso não é uma regra. O que se sabe é que, no cérebro, ocorre um acúmulo anormal de três proteínas: Tau (a mais abundante), FUS e TDP-43. Tudo isso acaba sendo tóxico para os neurônios, que vão morrendo, atrofiando e causam os sintomas da doença.

O diagnóstico é clínico e conta com o auxílio de exames de imagem. Por ter sintomas semelhantes a algumas doenças psiquiátricas, como depressão e bipolaridade, pode resultar num diagnóstico tardio ou até mesmo errado.

Não há um remédio específico para a DFT, tampouco cura. O que dá para tratar são os sintomas que aparecem. É difícil determinar o "tempo de vida", pois costuma variar. Em média, os médicos citam de oito a dez anos. Caso a demência esteja associada à ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), a sobrevida cai para três a cinco anos.

Os tipos de demência frontotemporal

Cada uma das variantes atinge uma região dentro dos lobos frontais ou temporais

Variante comportamental

Geralmente, as primeiras alterações que acontecem são nas emoções e no comportamento. O paciente fica sem filtro e se comporta de forma inadequada e constrangedora. Alguns exemplos: xinga as pessoas na rua, mexe com estranhos, frauda documentos, engana amigos e familiares, associa-se a criminosos ou prostitutas, fica hiperssexualizado. Além de apresentar atitudes irresponsáveis, fica indiferente a tudo e torna-se incapaz de entender e se colocar no lugar do outro.

Variante semântica da afasia progressiva primária

Nesta condição, a pessoa perde a capacidade de compreender as palavras e o nome de alguns objetos. Ela esquece, por exemplo, o que é uma vassoura ou um martelo. O indivíduo desaprende a falar, troca as palavras e diz frases sem sentido algum.

Variante não fluente (ou agramática) da afasia progressiva primária

A pessoa tem dificuldade de se expressar por meio da linguagem. Ela entende o que está ouvindo, mas apresenta uma fala "travada". Por fim, a ação torna-se tão difícil que o paciente fica mudo --isso já em quadros avançados.

A DFT é, talvez, a demência que mais traz transtorno na vida da pessoa e da família. Mexe muito com o comportamento e as emoções. Gera um desgaste no trabalho e em casa. Famílias se separam muito antes de saber que aquilo era uma doença.

Breno Barbosa, neurologista do Hospital das Clínicas da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco)

Carine Wallauer/UOL

'Não tenho filtro social'

Uma das características mais marcantes da DFT é a perda do filtro social. Por isso, é muito comum que os pacientes apresentem comportamentos completamente inadequados.

Às vezes, as pessoas pensam antes de falar algo para não magoar alguém. Sem a medicação, eu falo o que vier na cabeça, sem pensar. É natural da doença.

Além disso, Margot fica mais agressiva sem os remédios —são 16 no total, tomados diariamente. Ela pode agredir alguém verbal e fisicamente, e pior: fazer algum mal a si mesma. "Posso tirar a minha própria vida ou me mutilar, como já aconteceu."

A carioca explica ainda que tem muitos problemas com a motricidade do corpo, ou seja, a força dos movimentos, e dificuldades na fala. Às vezes, não consegue articular palavras e pensamentos.

Por todas as complicações que a doença causa, ela ficou impossibilitada de morar com a filha de 15 anos que, atualmente, está com o pai. Os dois tomam as decisões em conjunto, mas é o ex-marido quem fica mais presente na rotina da menina. Aos finais de semana, mãe e filha se encontram.

O que a DFT causa?

  • ALTERAÇÕES COMPORTAMENTAIS

    Perda de filtro social; comportamento social inapropriado; perda de empatia e outras habilidades interpessoais, como ter sensibilidade aos sentimentos dos outros; falta de julgamento; perda de inibição; apatia (falta de interesse), que pode ser confundida com depressão; comportamento compulsivo repetitivo; declínio na higiene pessoal; mudanças nos hábitos alimentares; querer compulsivamente colocar as coisas na boca e hiperssexualização.

  • PROBLEMAS NA FALA E NA LINGUAGEM

    Dificuldade crescente em usar e compreender a linguagem escrita e falada; não conseguir nomear objetos; não lembrar o significado das palavras e cometer erros na construção de frases, trocando sílabas.

  • PROBLEMAS MOTORES

    Tremor; rigidez; espasmos musculares; má coordenação e dificuldade para engolir.

Carine Wallauer/UOL

'Minha vida virou de cabeça para baixo'

Não é comum que o diagnóstico aconteça cedo, como no caso de Margot, que ocorreu aos 38 anos. Atrelada à precoce demência frontotemporal, ela também descobriu que sofreu dois AVCs isquêmicos no cérebro, que ocorre quando há o entupimento de um vaso que fornece sangue ao cérebro.

"Os médicos não entendem por que eu ainda ando e falo", conta. "Tem dias que acordo muito violenta ou dependente. Mas, quando os remédios funcionam bem, consigo conversar naturalmente."

Antes do diagnóstico, Margot conta que era totalmente independente, morava sozinha e conseguia participar mais ativamente da vida da filha, mas as coisas mudaram.

Sou dependente da minha mãe, voltei a morar com ela por causa disso. Também não vou mais conseguir trabalhar. Minha vida virou de cabeça para baixo

Quem ajuda a complementar a renda de Margot, além da mãe aposentada, é uma prima, que dá cerca de R$ 1.200 para os remédios que seguram os sintomas —como agressividade, depressão e essa perda de filtro social.

Além disso, as amigas da carioca se uniram para criar para ela uma loja no Instragram de semijoias e pratas. Assim, Margot consegue trabalhar de casa, no ritmo dela.

O paciente muitas vezes gasta mais dinheiro, passa a sair com mulheres mais jovens, e isso é interpretado como uma crise de meia-idade. Ou ele fica deprimido e não quer mais trabalhar. A pessoa tende a procurar um psiquiatra e chega tardiamente a um neurologista. Quando alguém 'deixa de ser quem era antes', é importante que a população saiba que pode ser uma doença no cérebro.

Leonel Takada, neurologista do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo)

Os desafios da demência frontotemporal

Carine Wallauer/UOL

'Já organizei meu velório e todos vão receber uma carta'

No geral, as demências têm sintomas diferentes, mas com "finais" muito parecidos. O cérebro vai atrofiando cada vez mais e, com o tempo, a pessoa fica mais doente e "ausente" da realidade.

Muita gente diz que vive o dia como se fosse o último, mas para mim é diferente (pois isso é uma realidade). Tenho um diagnóstico com base na ciência. Não tem o que discutir e o que posso fazer com esse pouco tempo é vivê-lo com qualidade. A fé e o milagre ainda existem dentro de mim.

Com a criação da loja no Instagram, a carioca conta que "voltou a sonhar". Também encontrou forças com a ajuda do psicólogo Sebastião Ferreira, a quem ela recorre em momentos mais críticos: "Ele sempre me ajuda a enxergar o sentido na vida e da vida."

Mesmo assim, Margot já organizou todos os processos para quando sua hora chegar. Tem a roupa para o velório e escolheu como será o ritual todo. "Cada pessoa que está na minha vida vai receber uma carta que escrevi num caderno."

Como legado, também fez um livro sobre sua vida, chamado "Sal da Terra e Luz do Mundo": "Mesmo sendo uma doença sem cura e degenerativa, sabendo que a demência pode se acentuar, eu luto com todas minhas forças."

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