Eu x Mundo

Até para ficar bem sozinhos precisamos nos valer dos outros: entenda melhor por quê

Priscilla Aiulo Haikal Colaboração para o VivaBem

Diante da perda da normalidade coletiva com a pandemia do coronavírus, presenciamos as mais diversas atitudes de colaboração e ajuda ao próximo. Teve quem fez doação, quem ajudou a distribuir cestas básicas, quem fez música na sacada e quem passou a ler como forma de companhia para idosos. O senso de solidariedade parecia uma boa resposta para tempos tão difíceis.

Quase com a mesma rapidez que o vírus tomou o mundo, esse importante movimento de aproximação perdeu força e protagonismo. Começaram a circular dezenas de vídeos de pessoas reunidas e sem máscara, que pareciam ignorar a existência do problema e a recomendação de evitar aglomerações para não contribuir com a disseminação da doença.

Mas o que faz com que o sentimento de cooperação e colaboração se fragilize tão rápido? Ainda que sejamos todos parte de uma mesma sociedade, por que pode ser tão difícil o despertar para essa noção de interdependência? Como equilibrar os desejos e interesses individuais com as demandas coletivas?

Unidos venceremos

Assim como outras espécies, a vida em coletivo é uma característica inerente ao ser humano. Ainda não há registros de pessoas que vivem de forma diferente a não ser em grupos minimamente organizados. A estrutura pode variar, sendo mais ou menos definida, mas é fator fundamental para que os integrantes consigam se alimentar, proteger, comunicar, reproduzir e sobreviver.

A própria origem da palavra coletividade pressupõe a união de pessoas desempenhando uma mesma tarefa, já que vem do termo "colligere", que em latim significa "colher junto". Somos essencialmente sociais desde as épocas mais ancestrais da existência humana. Superamos limitações e conquistamos avanços graças às nossas interações.

Por isso que a própria constituição do "eu" é tida como a internalização ativa das relações com os "outros". Cada um é a síntese das interações humanas que participa. O indivíduo aprende a se relacionar consigo mesmo à medida que descobre como lidar com as pessoas do seu convívio.

E integrar coletividades ao longo da vida não é simplesmente estar num agregado de pessoas. Significa entrar em contato com hábitos, costumes e práticas culturais que vêm se transformando durante várias gerações e são resultado de dezenas de relações anteriores. Seja a fala, a escrita, a xícara em que tomamos café ou até a nanotecnologia dos celulares, tudo está envolto em criações, saberes e conquistas daqueles que, assim como nós, compõem sociedade.

Iguais, mas diferentes

A formação e o desenvolvimento humano são processos que estão intimamente ligados com as condições sociais de cada um e as determinações históricas do tempo em que vivemos. A constituição da subjetividade tem relação direta com os discursos, as crenças e os valores compartilhados conforme socializamos. São elementos representativos que produzem identificações e interferem em práticas e escolhas pessoais.

A ideia de sermos alguém separado e diferente do outro é tipicamente ocidental. Parte de uma noção que ganha força com o fim da Idade Média e o início da Moderna. Com a dissolução e degradação do sistema feudal, surgem novas formas de organização que dão origem à modernidade e ao capitalismo. Boa parte da população migra para as cidades, onde não possuem mais os vínculos coletivos fortes como tinham nos feudos.

Com essa grande mudança, as pessoas começam a se ver como indivíduos, uma unidade e um ser em si mesmo, com características próprias e um mundo interno que é diferente dos outros. Mas para atingir essa percepção e reconhecer suas particularidades, é fundamental interagir com o próximo. A individuação ocorre desde a infância na comparação com nossos primeiros cuidadores e segue de modo não linear ao longo dos anos, numa dinâmica que não se completa totalmente.

A partir de uma perspectiva psicológica, é uma tarefa bastante complexa e trabalhosa que demanda variados recursos emocionais. Por isso as experiências de alteridade e coletividade são fundamentais não só para alcançar o entendimento de que existem diferenças de identidade, mas aceitar que são muitos os fatores que estabelecem essas distinções.

Nas atividades coletivas nós exteriorizamos traços de nossa individualidade e incorporamos ao nosso ser aspectos da individualidade de cada pessoa que age conosco. A nossa personalidade é forjada no convívio com os outros, por isso a riqueza da vida humana depende fundamentalmente do conteúdo e sentido dessas relações.

Cada um por si

Não são poucos os percalços que passamos para nos identificarmos como indivíduos e nos constituirmos como sujeitos da própria existência. Envolve uma série de frustrações, aprendizados, construções e desconstruções. Além de nos diferenciarmos a partir dos outros, esse entendimento muitas vezes exige que a gente se desfaça de uma série de certezas para sermos tolerantes e compreensivos com aquilo que nos distancia.

Tarefa nada fácil, ainda mais para quem no processo de individuação foi bastante influenciado por ideias egoístas, pontos de vista individualistas e autocentrados no próprio mundo. Na atualidade, são noções intimamente relacionadas com o espírito de competição disseminado em diversos meios e organizações, baseado principalmente na meritocracia, tido como o melhor impulso para o desenvolvimento da sociedade e para a realização pessoal.

Vale destacar que a individualidade nada tem a ver com uma postura individualista. O individualismo é forma consciente (ou não) de se colocar como o centro e a finalidade última de suas ações e de seus valores éticos. O pleno desenvolvimento da individualidade requer o movimento constante de se voltar e reconhecer o outro, e internalizar o fato de que somos todos integrantes de um grande coletivo que é a humanidade —uma percepção bem comum entre os ocidentais, inclusive.

Se houve um bom legado da Copa do Mundo de 2014 no Brasil foi o exemplo dos torcedores do Japão que recolheram o próprio lixo produzido nos estádios. A prática também chamou atenção no Mundial da Rússia, quatro anos depois, e inspirou torcedores brasileiros e senegaleses a imitarem a ação.

A iniciativa tem explicação nos valores culturais japoneses, de que o grupo é mais forte que o indivíduo, e que cada um pode contribuir para a harmonia do coletivo, que está acima das necessidades individuais.

Tanto o egoísmo quanto a solidariedade são invenções humanas. Somos nós os responsáveis por criar ideias, teorias e argumentos em defesa desses valores, que hoje são aceitos e naturalizados nas várias formas do sujeito. Da mesma maneira que alguns defendem o esforço individual para ser bem-sucedido, outros acreditam que a cooperação é o caminho para uma realidade melhor.

Viva a comunidade alternativa

  • A semente do bem

    Conhecidos por seus estilos de vida tradicionais e costumes conservadores, os Amish são um grupo religioso cristão que quase não usam tecnologia. As comunidades se concentram na Pensilvânia e são compostas por descendentes de alemães e suíços. Possuem vestimentas típicas (não usam joias ou acessórios), as crianças estudam em escolas exclusivas, e as casas e roupas seguem o mesmo padrão de simplicidade

  • Paz, amor e sustentabilidade

    Comunidades ou assentamentos que têm como pilar o respeito ao meio ambiente, as ecovilas são moradia daqueles que se unem em busca de relações mais cooperativas e solidárias, por meio de práticas de baixo impacto ambiental. Baseados em conceitos da permacultura e agroecologia, os moradores integram as atividades humanas com a natureza de um jeito sustentável, a partir de medidas ecologicamente eficientes

  • Como viemos ao mundo

    Seguindo preceitos da filosofia naturista, que tem como base a conexão do homem com a natureza e a prática da nudez social, um grupo de aposentados vive sem roupas no condomínio-resort Lake Como (EUA). A proposta estimula a aceitação do próprio corpo e a satisfação com o que somos. Não são permitidas roupas sensuais e nem comportamentos provocativos. No Brasil, foi celebrado no ano passado o primeiro casamento naturista católico do país, e há ainda o exemplo da Colina do Sol, considerada a maior vila naturista do Hemisfério Sul

  • Obras em construção

    O desenvolvimento das comunidades artísticas visa abrir um campo de experimentação para artistas que muitas vezes não possuem tempo ou condições para se dedicarem às produções. Estimula a liberdade criativa, ao terem a chance de se desligarem das práticas cotidianas para imergir em estudos, pesquisas, trocas de experiências com outros e despertar para novas reflexões que interferem diretamente nos processos de criação

  • Encontro com si mesmo

    Os retiros espirituais são espaços muito buscados por aqueles que desejam se afastar da rotina cheia de telas e compromisso, e precisam de um tempo de descanso para se dedicar ao silêncio, recolhimento e autoconhecimento --mesmo que só por um final de semana. Normalmente oferecem práticas de ioga, meditação e atividades de contato com a natureza, para que os visitantes consigam uma maior integração entre corpo, mente e espírito

É impossível ser feliz sozinho?

Por mais que uma pessoa possa se considerar autônoma, soberana e independente, ela nunca será autossuficiente. Até para conseguir atingir essa percepção em relação a si mesmo, foi necessário o contato com outros humanos que forneceram alimento, abrigo e instrução, e deram condições para o desenvolvimento da capacidade de comunicação e de raciocínio complexo.

Esse princípio também se aplica à felicidade. Quem tem a capacidade de julgar seu estado emocional, já foi socializado e está imerso em alguma cultura. Como aquelas que nos ensinam a valorizar e admitir a importância da solidão. Ou seja, a coletividade é vital para o desenvolvimento da individualidade, de modo que o ser humano atinja o bem-estar inclusive sozinho.

Por vezes, é possível que sejam internalizadas atitudes egoístas nesse processo. O que não significa que não possamos desenvolver autoconsciência e autocrítica em relação a essas posturas. A superação do individualismo é possível a partir da ampliação do repertório de subjetividades, com acesso a discursos e representações mais plurais, equânimes e inclusivas.

Todos nós podemos mobilizar ações coletivas para melhorar a forma de organização da sociedade, especialmente se tomarmos a dignidade do próximo como um valor fundamental. Deixar de lado a competitividade e a anulação, e cultivar a cooperação e respeito às diversidades, de modo que cada um, de maneira livre e consciente, possa construir um sentido pessoal para sua existência, já é uma grande contribuição individual.

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