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O Brasil atingiu a triste marca de 100 mil mortes por covid-19. São milhares de famílias que perderam um ente querido: pai, mãe, filho, filha, marido, mulher, irmão, irmã. Vítimas de uma pandemia que por aqui parece estar longe de terminar...

Enquanto países que conseguiram baixar o número de mortes temem uma segunda onda da doença —que pode ocorrer com a reabertura das economias, fim das quarentenas e, em alguns casos, chegada do outono a partir de setembro —, a realidade do Brasil é bem diferente e a "primeira onda" sequer parece ter acabado, já que a curva segue estacionada em um alto patamar, com mais de mil óbitos por dia.

A covid-19, que inicialmente foi comparada com uma gripe forte, já tem a terceira maior taxa de mortalidade no Brasil (46,3 para cada 100 mil habitantes), atrás apenas de doenças isquêmicas do coração e de doenças cerebrovasculares. Em pouco mais de sete meses de pesquisas desde a descoberta do novo coronavírus, os cientistas ainda não conhecem completamente a doença e seguem fazendo descobertas a cada dia.

Se nenhuma atitude for tomada e continuarmos seguindo as nossas vidas como se a pandemia tivesse acabado ou se estabilizado, caminhamos para o dobro de mortes em menos de três meses. Para ajudar você a se proteger do problema e tentar evitar que outras 100 mil mortes aconteçam —ou ao menos fazer que elas demorem o máximo possível para ocorrer —, mostramos a seguir quais medidas de prevenção foram eficazes até aqui, o que já se sabe (e não se sabe) sobre os tratamentos, as sequelas da doença, em que pé estão as vacinas, como elas devem ser distribuídas e as perspectivas de futuro.

Todos os planos de abertura no Brasil foram feitos visando a recuperação econômica, mas em prejuízo da população. É um genocídio anunciado. Boa parte das mortes que têm sido observadas nos estados está relacionada ao plano de reabertura.

Domingos Alves, físico e professor do Departamento de Medicina Social da FMRP-USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo)

Poderia ter sido pior?

Sim, pelo menos é o que parece. Apesar de a contaminação ainda estar acontecendo no país, o número de casos chegar a quase 3 milhões e a taxa de mortalidade ser de 46,3 para cada 100 mil habitantes, estudos mostram que muitas medidas tomadas por aqui ajudaram a "segurar" a curva de mortes.

Em abril, o prestigiado Imperial College London publicou o Relatório 12 tratando do impacto global da covid-19. O relatório não menciona diretamente o Brasil no texto principal, mas um de seus anexos é uma tabela com projeções de diferentes cenários para diversos países, incluindo o nosso. O College estimava que, se o Brasil fizesse uma quarentena ordenada e começasse na hora certa, poderíamos chegar ao final da pandemia —seja lá quando for isso — com 44,2 mil mortos.

Já se o país deixasse o Sars-CoV-2 rolar solto —sem distanciamento social, sem quarentena, sem nada — o total de mortes, ao fim da pandemia, deveria ficar entre 1,08 milhão e 1,15 milhão. Com distanciamento social e quarentenas de qualquer jeito, as estimativas variam de 450 mil a 900 mil mortes.

Uma projeção feita por professores da área de estatísticas econômicas da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e divulgada no final de julho aponta que até 118 mil vidas podem ter sido poupadas no Brasil por causa das medidas de isolamento social. A estimativa aponta que a cada 1% de aumento no isolamento social houve uma redução na taxa de crescimento do vírus de até 37%.

O mesmo aconteceu na Europa, veja bem: por lá, as medidas de isolamento podem ter evitado mais de 3,1 milhões de mortes, indicaram pesquisadores do Imperial College London em estudo publicado na Nature. Um segundo estudo realizado por cientistas nos EUA estimou que as políticas de quarentena implementadas em China, Coreia do Sul, Itália, França, Irã e EUA impediram ou retardaram cerca de 530 milhões de casos de covid-19. Ou seja, ficar em casa vale a pena.

As máscaras também ajudam a salvar vidas. Um estudo da USP (Universidade de São Paulo) de São Carlos apontou que o isolamento social combinado com o uso de máscaras diminuiu em 15% o contágio do vírus em São Paulo e em 25% em Brasília no início da epidemia no país.

Outro estudo recente da Universidade de Cambridge traz novas evidências de que a proteção facial pode ser crucial para evitar uma nova onda de infecções. A pesquisa afirma que os lockdowns sozinhos não serão suficientes para impedir futuras ondas de contágio, a não ser que sejam combinados com o uso massivo de máscaras.

Para o estudo de epidemias, os especialistas usam a taxa de reprodução do vírus, ou Rt, que indica quantas pessoas podem ser contaminadas por quem já está infectado. Para uma pandemia ser contida, o Rt deve ser menor que 1. Os modelos mostraram que, se uma pessoa usa máscara sempre que sai em público, isso é duas vezes mais eficaz para reduzir o Rt do que quando alguém usa a máscara só depois que tem sintomas. Eles também indicaram que, se pelo menos metade da população usa máscara rotineiramente, o Rt é reduzido para menos de 1. Ou seja, saiu de casa, use máscara.

Remédios: o que sabemos até agora

É como os cientistas costumam dizer: o conhecimento sobre o vírus vem sendo construído no dia a dia e enquanto as pessoas morrem, por isso é tão desafiante combater a covid-19 de forma efetiva. Ao longo dos últimos meses, aconteceu um vai e vem de informações sobre inúmeros medicamentos que, em princípio, pareciam promissores e depois foram desacreditados pela ciência. É o caso da cloroquina e da hidroxicloroquina. Esperança de "cura" no início da pandemia, a substância tornou-se motivo de acirrados embates políticos, tanto aqui quanto nos EUA.

Inicialmente, a hidroxicloroquina foi escalada para o projeto Solidarity, da OMS (Organização Mundial da Saúde), que está conduzindo estudos clínicos com potenciais tratamentos para a covid-19 em diversos países. No entanto, a organização anunciou em julho que, seguindo recomendação do conselho diretivo do projeto, os testes com a droga foram definitivamente descontinuados. As pesquisas mostraram que a substância aumenta os riscos de arritmia cardíaca (mesmo que raramente) e de alteração do tecido cardíaco. Recentemente, um dos maiores estudos brasileiros também mostrou que a hidroxicloroquina não é eficiente contra o coronavírus.

Já o uso de corticoides teve resultados promissores no tratamento da covid-19. Um relatório preliminar de um grande estudo coordenado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, demonstrou que a dexametasona aumenta a sobrevida de pacientes infectados pelo coronavírus em estado grave, que necessitam de oxigênio suplementar ou ventilação mecânica. A redução de mortes foi de 35% para pacientes que precisavam de tratamento com respiradores e 20% para os que precisavam de suporte de oxigênio.

Corticoides agem reduzindo a grande inflamação provocada pelo sistema de defesa do nosso organismo —que é gerada para tentar frear o coronavírus, mas acaba danificando células dos nossos órgãos e está associada a várias complicações da covid-19. A reação forte do sistema imune pode ser fatal, então, médicos começaram a testar esteroides e anti-inflamatórios em pacientes e tiveram bons resultados.

Mas vale lembrar que não há evidências da eficácia dos corticoides no tratamento das formas leves ou moderadas da doença, nem como forma de preveni-la. A necessidade de uso e a escolha do corticoide devem ser definidas exclusivamente pelos médicos.

Outro tratamento promissor é o uso de plasma de pacientes recuperados (plasma convalescente ou plasma hiperimune), que parece proporcionar benefício no combate à infecção pelo coronavírus, mas estudos clínicos randomizados com grupo controle que comprovem seu benefício e segurança ainda estão em andamento.

O uso de corticoide em casos graves realmente mudou o prognóstico. Embora não possua dados exatos, tenho percebido na prática uma melhora dos pacientes, que acabam sendo retirados da intubação mais cedo. Com o uso do corticoide, mais pacientes melhoraram e foram extubados. Ou seja, com a melhora clínica, precisam menos de suporte ventilatório, ou precisam por menos tempo.

Frederico Jorge Ribeiro, coordenador de UTI do HSE (Hospital dos Servidores do Estado), no Recife

As sequelas causadas pelo vírus

Um dos pontos que mais intriga os médicos são as sequelas diversas causadas pela covid-19 em pacientes que se recuperaram da doença. Já é comprovado que elas podem durar vários meses.

Um estudo feito na Alemanha e publicado pelo periódico científico Jama mostra sequelas cardíacas importantes. Cem pacientes foram analisados e 78% deles apresentaram algum tipo de anomalia no coração mais de dois meses depois de se recuperarem da covid-19. Boa parte (67%) teve uma forma branda da doença e sequer foi hospitalizada. Mas em 60% dos casos foi detectada uma inflamação no coração cerca de 70 dias depois. Os pacientes não apresentaram sintomas externos, e as deficiências no coração foram detectadas apenas com ressonância magnética e exames de sangue.

Problemas respiratórios também estão entre as sequelas analisadas por alguns cientistas. No começo de julho, o Jama publicou outra pesquisa com 143 recuperados na Itália. Dois meses depois da doença, apenas 12,6% dos pacientes disseram estar sem sintoma algum. Os outros 87,4% reclamaram de pelo menos algum problema. Entre os sintomas relatados, estão:

  • Fadiga (53,1%)
  • Falta de ar (43,4%)
  • Dor nas juntas (27,3%)
  • Dor no peito (21,7%)

Para 44,1%, houve uma piora na qualidade de vida. A fadiga parece ser um dos sintomas mais recorrentes. Uma das condições estudadas se chama encefalomielite miálgica, que é popularmente conhecida como fadiga crônica. Há anos cientistas estudam se essa fadiga crônica está relacionada com infecções virais. A observância desses casos em ex-pacientes de covid-19 reforçaria essa tese.

Em relação aos rins, estudos apontam presença excessiva de proteínas na urina, um sinal de nefrite (inflamação nos órgãos). Além disso, os recuperados podem apresentar insuficiência renal, a perda de capacidade dos rins de remover e equilibrar fluidos no organismo, em diferentes graus. Mesmo após a alta, se os danos forem extensos, alguns pacientes podem necessitar de hemodiálise para o resto da vida.

Mesmo entre os assintomáticos, isto é, quem teve coronavírus e não apresentou sintomas da doença, as complicações posteriores podem aparecer, como problemas respiratórios ou inflamação cardíaca. Mas ainda não há estudos suficientes sobre esses casos. Cientistas também pesquisam sobre o efeito que o coronavírus pode ter no cérebro, como inflamação, e na maior incidência de coágulos do sangue, que podem causar derrames.

Imunidade e reinfecção ainda são mistérios

Infelizmente, ainda há muita coisa sobre a covid-19 das quais os especialistas não têm certeza absoluta. O primeiro ponto é a imunidade de rebanho, que é alcançada quando há uma porcentagem de pessoas imunizadas, não importando se foram contaminadas ou se tomaram vacina, mas nenhum cientista ainda se arrisca a cravar o "número mágico". Um estudo publicado em julho no periódico medRxiv (ainda sem revisão por pares) estima que a imunidade de rebanho pode ser alcançada em uma determinada região se 20% da população for infectada.

Aqui no Brasil, temos o Epicovid19-BR, estudo coordenado pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas) que estima o número de casos de infecção por coronavírus no país. O levantamento já teve três fases. A pesquisa documentou que, em um mês, a prevalência dobrou na população: os percentuais passaram de 1,9%, na primeira etapa, para 3,1%, na segunda, e alcançaram 3,8%, na última etapa —ou seja, ainda está longe dos 20% necessários para se alcançar a imunidade de rebanho, se é que ela existe.

Os pesquisadores ainda identificaram a existência de "várias epidemias" em curso simultâneo no país, com diferenças entre as regiões brasileiras. Enquanto, no Norte, 10% da população, em média, têm ou já teve coronavírus, no Sul, esse percentual está em torno de 1%.

Uma pesquisa epidemiológica feita pela Prefeitura de São Paulo estima que 1,16 milhão de pessoas já foram infectadas pelo novo coronavírus na capital paulista. Esse número indica que a prevalência do vírus é de 9,5% da população paulistana (os dados foram divulgados no fim de junho). Em números absolutos, a capital paulista é onde se concentra o maior número de casos de coronavírus do país.

É possível ter covid-19 duas vezes?

A duração da imunidade é outra questão que não está completamente fechada. Fazer o teste sorológico e ter um resultado positivo para os anticorpos não é garantia de muita coisa, já que o exame rápido procura por um anticorpo que funcionaria contra determinada proteína do vírus. E existem várias proteínas: algumas ficam na superfície e outras na parte de dentro, protegidas pela membrana.

Ainda não sabemos quanto tempo depois do contágio o corpo começa a produzir anticorpos contra a proteína S, qual quantidade precisa ser produzida para barrar ou por quanto tempo o organismo vai continuar produzindo o anticorpo. Se ele produz agora, não sabemos se no ano que vem, se houver uma nova onda do coronavírus, ainda terá a proteção Orlando Ferreira, professor e pesquisador da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Outra incerteza é se uma pessoa já infectada poderia se reinfectar, só que ainda não há estudos grandes o suficiente —ou um número de casos suficientemente comprovado — que atestem que alguém pode ou não pegar covid-19 mais de uma vez. Um estudo feito em macacos aponta que após a infecção primária, quatro animais testados não foram infectados novamente com o coronavírus.

Só que um estudo recente da USP confirmou um caso de reinfecção em uma técnica de enfermagem num intervalo de apenas 50 dias entre o primeiro e o segundo diagnóstico positivo para a covid-19. A análise permite confirmar a condição rara, que até agora só tinha sido relatada em um caso clínico parecido nos EUA.

Não é só uma "gripezinha": mortalidade da covid-19 é alta

Atualmente, a covid-19 ocupa a 3ª posição entre as doenças com maior taxa de mortalidade no Brasil (46,3 para cada 100 mil habitantes), atrás apenas de doença isquêmica do coração —causada pela privação de fluxo sanguíneo pelas artérias coronárias, tal como o infarto — e doença cerebrovascular, como o AVC (acidente vascular cerebral).

Necessariamente esses dados estão errados, pois a taxa de outras doenças considera o número total de óbitos em um ano e a de covid-19 em quatro meses. Se você dividir a taxa das outras doenças por 12 e a de covid-19 por quatro, obtendo uma 'média mensal', vai ver que a covid-19 matou muito mais. É um absurdo. Domingos Alves, professor da FMRP-USP

A principal causa que levou o Brasil a ter esta taxa de mortalidade, segundo o especialista, foi a falta de prioridade do governo com a saúde pública. "O governo federal ainda está tentando falar para a população brasileira que nós temos uma 'gripezinha'. Existe um negacionismo institucionalizado, que é a principal causa do que estamos observando aqui. Esse negacionismo não é só ideológico, ele é sistemático, bloqueando qualquer logística em prol do controle da pandemia", afirma.

Comparando a taxa de mortalidade da covid-19 (46,3) com doenças populares e conhecidas, dá para ter uma noção mais exata de como ela é alta. Todas juntas, as chamadas doenças das vias aéreas inferiores, tais como pneumonia, bronquite e gripe, têm uma taxa de mortalidade de 40.

Diabetes, Alzheimer, cirrose, Aids, Parkinson, dengue e diversos tipos de câncer também apresentam taxa de mortalidade menor do que a da covid-19.

Nós fomos um dos únicos países do mundo que começou um plano de reabertura sem ter reduzido o número de casos, com a curva de crescimento de casos e de óbitos aumentando. E ela continua crescendo até hoje. Isso impacta na taxa de mortalidade, Domingos Alves, professor da FMRP-USP

Em que pé estão as vacinas?

Há quem diga que não dá para viver um dia no tal "novo normal" sem pensar nela. De fato, entre tantas incertezas sobre a duração da proteção causada pelos anticorpos e a possibilidade da imunidade de rebanho não funcionar, a vacina é a aposta mais segura para que a humanidade ganhe sua "liberdade" de volta.

E embora cada dia fiquemos mais impacientes para voltar a exibir nossos narizes sem máscara na rua, o processo para tentar criar uma imunização capaz de acabar com a pandemia do novo coronavírus é o mais rápido da história. São anos de pesquisa espremidos em alguns poucos meses —e já há mais de 170 vacinas candidatas a vencer o vírus, seis delas em estágio de pesquisa bastante avançado.

Temos a vacina. E agora?

Mesmo que a ciência vença todas as barreiras e crie uma vacina em tempo recorde, há ainda o entrave da distribuição. Primeiro, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deve aprovar o uso, mas acredita-se que os prazos regulatórios terão a mesma agilidade que os estudos clínicos, já que estamos falando de uma emergência sanitária sem precedentes.

E depois, como produzir milhões de doses —ou bilhões, se estivermos falando da população mundial — de forma rápida o suficiente para imunizar tanta gente?

Não há laboratório no mundo que tenha o poder de criar bilhões de vacina tão rapidamente, para atender todo mundo Flávio Fonseca, virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas e pesquisador do Departamento de Microbiologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

A produção fica ainda mais complicada se pensarmos que algumas candidatas, como a chinesa batizada de Coronavac, que está sendo criada em parceria com o Instituto Butatan (SP), deve oferecer a imunidade apenas quando o indivíduo toma duas ou até três doses.

Por isso, de acordo com Fonseca, é mais do que natural que o Programa Nacional de Imunizações decida por uma distribuição feita de forma escalonada. O acordo do governo federal com a Universidade de Oxford, no Reino Unido, a embaixada britânica e o laboratório AstraZeneca já prevê a produção de 30 milhões em território brasileiro caso a vacina seja efetiva. "Essa primeira leva deve ser destinada a profissionais de saúde, trabalhadores de serviços essenciais e pessoas do grupo de risco", prevê o virologista.

Uma vez que o imunizante se mostrar comprovadamente seguro e eficaz, o Brasil deve adquirir materiais para a fabricação de outras 70 milhões de doses —atingindo um número de doses suficiente para cerca de metade do país.

Essa é a política que deve ser adotada no mundo todo, independente de qual vacina for, considerando a improbabilidade que os laboratórios consigam produzir as doses que se esperam. Dentro desse cenário, não teríamos uma vacina para atender a toda a população brasileira antes do final de 2021

Flávio Fonseca, virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas e pesquisador do Departamento de Microbiologia da UFMG

O preço da imunização

Talvez o dinheiro não compre felicidade, mas ele certamente pode comprar milhares de doses de uma vacina. O governo dos EUA deu um bom exemplo disso: em julho, a maior potência econômica do mundo comprou, da empresa farmacêutica Pfizer e do laboratório Biontech, toda a produção de uma vacina que sequer existe ainda —mas que se for comprovadamente eficaz, certamente reforçará a hegemonia do país norte-americano, e pode até contribuir para a reeleição do presidente Donald Trump.

"É uma questão ética muito discutida, essa de que o dinheiro pode garantir um lugar melhor na fila. Nós mesmos fizemos isso. O governo federal está pagando pelas parcerias com recursos, dinheiro e com um campo para teste de vacina. Em troca, mudamos nossa colocação na fila de espera", aponta Fonseca.

E uma vez que o país consiga a produção, seremos capazes de ofertar as doses publicamente? Segundo os especialistas, dependerá de uma série de fatores. "A perspectiva inicial, levando em consideração todas as maiores candidatas ao sucesso, é que a vacina seja gratuita para os grupos de risco", explica a médica Melissa Palmieri, especialista em vigilância em saúde pelo Ministério da Saúde.

Em paralelo, deve haver ações da iniciativa COVAX Facility, um grupo de mais de 150 países projetado pela OMS, Gavi Alliance e CEPI (Coalition for Epidemic Preparedness Innovations) para garantir acesso justo e equitativo às vacinas em todo o mundo. A ideia é amenizar a influência de países com poder econômico ou acordo por testes, como é o caso do Brasil, e sanar a crise em países menos privilegiados.

Uma vez que as primeiras necessidades forem cumpridas, é provável que a vacina comece a ser vendida no mercado privado. "Como apenas cerca de 20% dos casos evoluem para estágios graves, é possível que a vacinação gratuita não esteja disponível para todos os brasileiros", indica Palmieri.

A especialista faz uma comparação com a vacina da gripe: no Brasil, ela só é ofertada sem custo aos que têm mais chance de sofrer internação ou morrer, como idosos, gestantes, crianças pequenas e pessoas com comorbidades. Os demais, se quiserem receber a imunização, precisam pagar.

"Isso não é necessariamente algo ruim. Não faria sentido investir tanto para vacinar quem não é do grupo de risco se o governo pode colocar dinheiro em outra estratégia, como tratamentos contra o câncer", aponta a médica.

Outra questão que influencia esse "jogo de xadrez" é o retorno que as farmacêuticas podem esperar por tanto investimento em pesquisas e testes.

É natural que as empresas busquem lucro [com a venda de vacinas], seja por meio da compra por governos, seja no mercado privado. Não dá para negar que há interesses econômicos e políticos envolvidos nessa corrida.

Flávio Fonseca, virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas e pesquisador do Departamento de Microbiologia da UFMG

E o futuro?

Em boletim de 31 de julho, a Rede de Pesquisa Solidária afirma que a pandemia continua grave. Na opinião dos pesquisadores, as políticas públicas adotadas pelos governantes brasileiros falharam, em algumas regiões. A flexibilização foi precipitada e houve pouca adesão da sociedade ao distanciamento social.

Os estados adotaram políticas moderadas para aumentar o distanciamento físico em março. Porém, apesar do crescimento da pandemia, ao invés de ampliarem as medidas, entre maio e julho, 25 estados relaxaram gradativamente as medidas de distanciamento físico, mesmo com a tendência nacional de crescimento acentuado nas mortes.

O que tem acontecido, sistematicamente, principalmente nos governos das capitais, é um apagão entre o que os cientistas têm falado e o que os gestores têm feito. E quando os cientistas e os comitês acabam por não concordar com esses prefeitos e com esses governadores, eles mudam a equipe Domingos Alves, professor da FMRP-USP.

Os dados de testagem confirmam que a maioria dos estados optou pela aplicação de testes sorológicos, que não são os mais indicados para o controle da pandemia. Isso porque eles detectam anticorpos, mas não são capazes de detectar o vírus. Dependendo de quando forem feitos, uma pessoa infectada pode ter um resultado falso negativo. Segundo orientações da OMS e do CDC (Centro de Controle de Doenças) dos EUA, o controle da pandemia depende diretamente da massificação de testes como o RT-PCR, que indica que a pessoa está contaminada e, portanto, deve tomar medidas para controle da doença —como manter-se isolada por cerca de 20 dias.

As políticas públicas adotadas pelos estados ainda apresentam falhas na integração das estratégias baseadas em programas de testagem em massa e na identificação dos infectados e seus contatos. Também houve uma queda gradual do nível de permanência da população em casa. A mobilidade em julho tem níveis semelhantes aos de meados de março.

Para os especialistas, a omissão do governo federal na elaboração de uma estratégia nacional continua na raiz da desarticulação das respostas dos estados e no comportamento da sociedade.

O que dá para fazer agora

Para os pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária, há políticas que ainda podem ser adotadas para melhorar a resposta da sociedade à pandemia.

  • Aumentar a disponibilidade e realização de testes RT-PCR ,que permitem identificar pessoas doentes;
  • Adotar medidas que favoreçam o rastreamento, a identificação e o isolamento de contatos e de pessoas infectadas;
  • Dar transparência e divulgar para a sociedade dados sobre a evolução da pandemia em tempo real, incluindo a incidência da média móvel de novos casos diários identificados por testes RT-PCR e sorológico separadamente;
  • Ampliar a fiscalização das medidas de distanciamento físico e implementar a retomada das políticas de rigidez para aumentar o isolamento em estados com dados indicativos de risco elevado.

Outro ponto importante a ser abordado é o retorno das aulas presenciais nas escolas. Essa, segundo os especialistas, é uma medida que tende a aumentar ainda mais os casos de covid-19 e, mais do que isso, coloca em risco a vida de milhares de crianças e jovens, e, consequentemente, a de seus familiares.

"Os estados que promoverem a abertura das escolas nesse cenário que estamos vivendo vão dobrar ou triplicar o número de casos e de óbitos em, no máximo, três semanas", alerta o professor da FMRP-USP. "E vai começar a ser observado uma coisa que, até o momento, não foi observado no Brasil: o aumento do número de óbitos de crianças. Hoje nós temos em torno de uns 300 a 400 óbitos em crianças no Brasil. Com a abertura das escolas, isso vai saltar para em torno de 17 mil", prevê o especialista.

No cenário crítico em que estamos, se nenhuma atitude for tomada e continuarmos seguindo nossas vidas como se a pandemia tivesse acabado ou estabilizado, caminhamos para o dobro de mortes em menos de três meses.

Se a situação de abertura que está sendo observada no país continuar do jeito que está, nós vamos progredir de uma maneira sustentada para 200 mil óbitos no começo de outubro Domingos Alves.

A Rede de Pesquisa Solidária foi formada para aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas do governo federal, dos governos estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas. O alvo é melhorar o debate e o trabalho de gestores públicos, autoridades, congressistas, imprensa, comunidade acadêmica, empresários e a todo e qualquer interessado em debater as diretrizes e ações concretas que têm impacto na vida da população. A rede é multidisciplinar, multi-institucional e está em contato com centros de excelência no exterior, como a Universidade de Oxford (Reino Unido) e a Texas A&M University (EUA).

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