'Estava com passagem comprada para me mudar de país e descobri um câncer'

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Marcella Teixeira Maia, 26, estava com passagem comprada para se mudar do Rio para Portugal. Ela já tinha pedido demissão do emprego e aguardava apenas o visto para realizar o sonho de morar no exterior. Mas uma febre insistente a levou ao hospital, onde foi diagnosticada com um tipo de leucemia mieloide aguda.
Ela teve de dar um passo atrás e recalcular a rota. Hoje, segue fazendo tratamento contra a doença e esperançosa de que, quando tudo terminar, poderá finalmente embarcar para a tão sonhada aventura. A VivaBem, Marcella contou sua história.
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'Já estava com passagem comprada'
"Tinha passado o último ano inteiro praticamente planejando essa mudança. Íamos eu e meu marido. Pesquisamos, fomos atrás do visto e já estava com tudo pronto, até a passagem comprada para morar em Portugal.
Cheguei a fazer algumas entrevistas de emprego, mas a maioria pede que você já esteja no país para contratar. Então, acreditava que conseguiria ter mais chances quando estivesse lá.
Saí do meu emprego como business analyst com isso em mente. Foi uma decisão difícil, mas foi o que precisava ser feito naquele momento. Foi um passo de coragem.
Meu visto chegou no dia 8 de abril deste ano. Naquela semana, tinha ido a um chá de bebê e peguei chuva e vento. Achei que tinha ficado resfriada e comecei a ter uma febre de 37,5ºC que persistiu por três dias. Decidi ir ao hospital porque, no dia 24 de abril, estaria embarcando para Portugal.
Fui ao médico despretensiosamente, falei que estava só com febre alta e, como estávamos tendo muitos casos de dengue, ele pediu para eu fazer um exame de sangue e testar para a doença. Quando saiu o resultado, deu negativo, mas ele estranhou porque tinha plaquetas e leucócitos baixos e aquilo não estava compatível com minha aparência, que estava saudável.
Ele achou que pudesse ser um erro e repetiu o exame, mas deu o mesmo resultado e disse que teria de me internar, já que não era um reflexo de uma doença autoimune.
Ali, ele falou que uma das hipóteses poderia ser câncer. Fiquei meio estatelada, em choque.
Não chorei nem nada, só mandei mensagem para o meu marido avisando que estava no hospital. Não o deixaram me visitar porque eu estava com plaquetas baixas e o risco de uma infecção era muito alto. Eu pensei: 'caraca, está de sacanagem'.
Ao todo, foram 40 dias internada. Fizeram vários exames para entender o que acontecia, e só fui saber às vésperas da viagem, no dia 17 de abril, por meio de um resultado de punção na lombar. Era leucemia mieloide aguda M3.
'Sintomas passaram despercebidos'
Hoje, sei que tive sintomas que passaram despercebidos. Tive algumas marcas roxas na pele um mês antes. Na época, achei que poderia ser o estresse de ter saído do trabalho, aguardar o visto. Era um roxo que eu olhava e pensava que poderia ter batido em algum lugar, mas apertava e não sentia dor.
Foi um teste mental receber esse diagnóstico. Precisou de muita resiliência e de tentar entender o que estava acontecendo. Em uma semana eu estava saindo do país, na outra estava com câncer. Tive de colocar na minha cabeça que aquilo era uma fase, mesmo que difícil. E que não poderia desistir das coisas que planejei.
Ainda tinha acesso ao plano de saúde pelo meu marido, então comecei logo o tratamento —e ainda estou fazendo.
É longo e um pouco moroso, porque são 4 semanas diretas de medicamento e depois 4 semanas sem. Vou todos os dias para o hospital durante um mês e, no outro, fico fora. A expectativa é de que tudo termine em dezembro.
Fiquei meio perdida porque é uma rotina nova. E isso não é algo que todo mundo comenta, principalmente quando se tem 26 anos.
Eu chego ao hospital às 7h e saio às 13h todos os dias por um mês. À tarde, tem risco de passar mal pelo medicamento, ficar indisposta, com cansaço. São dias e dias.
No começo, me cobrei muito. Achava que tinha de trabalhar, fazer alguma coisa. Não sabia como seguir. Meu marido foi o meu chão e alicerce. Ele sempre falou que era o momento de eu me preocupar apenas em me cuidar. Ainda estou trabalhando isso.
Sempre fui uma pessoa muito ativa no trabalho —chegava e dava o meu máximo. É a primeira vez que eu literalmente não estou fazendo nada. Então, tem dias que são extremamente frustrantes.
A autocobrança às vezes machuca, mas tento voltar para o eixo, pensar que é uma fase que vai passar. Diariamente vejo muitas pessoas que desistem antes mesmo de o tratamento começar. Como vou passar por isso só depende de mim. E tento atravessar da melhor forma possível, dentro do que eu consigo.
Às vezes, a força vem de mim mesma. Às vezes do meu marido. E outras vezes de uma pessoa que senta ao meu lado durante a quimioterapia.
Não desisti do meu plano de morar em Portugal. É um sonho e mais do que nunca tenho de realizar.
Às vezes queremos muito algo, mas acabamos procrastinando por outras coisas. Deixamos de sair de um emprego que muitas vezes não nos faz bem porque é ele que nos mantém, por exemplo. E, com isso, vamos procrastinando os nossos sonhos com a falsa sensação de que estamos de alguma forma nos beneficiando. Mas, na verdade, não estamos.
Na minha cabeça, eu nunca teria um câncer aos 26 anos. Sempre fui ativa, mantinha alimentação saudável, fazia natação e até participava de provas no mar. Quem olhava para o meu estilo de vida nunca falaria que eu estaria doente aos 26.
Agora, mais do que nunca, pretendo não procrastinar mais meus sonhos. Tenho esse desejo de morar fora e tenho de realizar enquanto estiver aqui. Vou esperar essa fase do tratamento acabar, entender como vão ser os próximos passos em relação à leucemia e, a partir do momento que eu souber [como me cuidar], com certeza pegarei o primeiro avião."
Entenda o diagnóstico

A leucemia mieloide aguda subtipo M3 é atualmente chamada de leucemia promielocítica aguda (LPA). Esse câncer se origina na medula óssea por meio de uma mutação genética que provoca uma fusão anormal entre dois genes. Essa fusão impede que as células precursoras dos glóbulos brancos amadureçam corretamente, fazendo com que se acumulem na medula óssea e no sangue.
É como se a 'linha de produção' do sangue travasse em uma das etapas: a fábrica continua funcionando, mas os produtos saem inacabados e se acumulando na esteira de produção. Os sintomas refletem essa falha, com anemia, plaquetopenia (plaquetas baixas), manchas roxas, sangramentos, menstruação intensa e infecções recorrentes. Em alguns casos, há dor de cabeça, visão turva ou confusão mental, quando as células doentes atingem o sistema nervoso central.
Gabriel Werberich, oncologista da Afya
Ela é considerada uma emergência médica. A LPA pode causar alterações graves na coagulação do sangue, podendo levar o paciente a ter sangramentos potencialmente fatais ainda no início da doença.
A LPA representa entre 10% a 15% dos subtipos totais de leucemia mieloide aguda. Ela pode surgir em adultos jovens, com uma média de 40 anos. Casos de pessoas em torno dos 20 anos são muito raros, segundo os especialistas.
Apesar de rara nessa faixa etária, quando ocorre, o prognóstico costuma ser melhor, porque o organismo mais jovem tolera melhor o tratamento e as complicações.
Breno Gusmao, onco-hematologista da BP
Fatores como exposição a produtos químicos (benzeno, solventes), tratamentos prévios com quimioterapia ou radioterapia, e tabagismo podem aumentar o risco. Mas, na grande maioria dos pacientes, não se identifica uma causa específica -- é algo que acontece de forma espontânea.
Breno Gusmao, onco-hematologista da BP
A mutação responsável acontece por acaso durante a divisão celular, sem um motivo evidente. Em alguns relatos de caso, pode haver relação com exposição prévia a quimioterapia para outro tipo de câncer, mas na maioria das vezes não há causa identificável. Podemos comparar esse processo a um erro de digitação que acontece quando o DNA é copiado: a cada vez que uma célula se multiplica, há bilhões de letras sendo copiadas. Um pequeno erro nessa cópia, em um ponto específico, pode alterar o comportamento da célula e dar origem à doença.
Gabriel Werberich, oncologista da Afya
Principal forma de diagnóstico é pela punção da medula óssea. Ela é realizada no osso do quadril e permite retirar uma amostra do tecido para análise microscópica.
Não se trata de um diagnóstico difícil, mas de um diagnóstico complexo, que exige a combinação de diferentes exames especializados.
Gabriel Werberich, oncologista da Afya
O tratamento para LPA é bastante avançado. Atualmente, segundo os especialistas, a LPA é uma das leucemias com as maiores chances de cura. O tratamento é basicamente feito por meio de medicamentos. Geralmente, a doença não requer transplante de medula óssea.
O tratamento combina medicamentos que fazem as células doentes 'amadurecerem' e voltarem ao seu ciclo normal. Em alguns casos, pode haver necessidade de quimioterapia adicional.
Breno Gusmao, onco-hematologista da BP
Até os anos 1990, era uma das leucemias mais graves, com alto risco de morte precoce. Hoje, graças à descoberta de medicamentos que agem diretamente sobre o defeito genético, as taxas de cura ultrapassam 80% a 90% em centros especializados.
Gabriel Werberich, oncologista da Afya



























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