Não gosta de comida saudável? Boa notícia: é possível treinar o seu paladar

As papilas gustativas, localizadas na língua, abrigam células sensoriais que permitem identificar os cinco sabores básicos: doce, salgado, azedo, amargo e umami. Este último pode ser descrito como "saboroso" ou "delicioso" e está presente em alimentos ricos em aminoácidos, como carnes, queijos curados, tomates e cogumelos.

"Elas (as papilas) se renovam a cada 10 a 14 dias, permitindo que o paladar se ajuste ao longo da vida", afirma o otorrinolaringologista Cícero Matsuyama, do Hospital Cema, em São Paulo. Em outras palavras, isso significa que há sempre espaço para adaptação —mesmo que em ritmos diferentes para cada pessoa.

Influência da genética e da adaptação

O gosto por determinados sabores não se resume a uma simples escolha pessoal, mas já nasce, em parte, conosco. A nutricionista funcional e esportiva Thaís Barca, da Clínica CliNutri (SP), explica que existe uma influência genética no paladar.

"Cada pessoa já vem ao mundo com maior ou menor predisposição para certas percepções, como sentir o amargor de forma mais intensa."

Apesar disso, o paladar é altamente moldável. A repetição desempenha papel central nesse processo: o que inicialmente parece desagradável pode se tornar prazeroso. O café é um exemplo clássico.

"Para muitos, o primeiro gole é amargo demais, mas, ao insistir no consumo, o cérebro se acostuma ao sabor. Com a exposição contínua, chega até a soar estranho quando se adiciona açúcar", diz a nutricionista. Esse fenômeno é chamado de sensibilização do paladar —a adaptação progressiva a gostos ou texturas antes rejeitados.

Papel do cérebro e da neuroplasticidade

Treinar o paladar, porém, vai muito além da boca: envolve também o cérebro. O neurologista Daniel Abreu, do Hospital São Rafael, da Rede D'Or, em Salvador, comenta: "Quando reduzimos o consumo de alimentos muito açucarados, gordurosos ou salgados, o cérebro passa por um processo de recalibração, e os sabores mais sutis começam a ser percebidos com maior intensidade e prazer".

Esse ajuste está ligado à neuroplasticidade — a capacidade de adaptação do cérebro. "Com o tempo, ele pode formar novas conexões que associam prazer a alimentos mais saudáveis, enquanto as antigas, ligadas a ultraprocessados, perdem força", informa Abreu. O médico lembra ainda que fatores como genética, microbiota intestinal, histórico com a comida e até a qualidade do sono influenciam esse processo.

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"O ato de comer também está totalmente ligado a fatores emocionais e culturais, além do hábito", destaca Thaís Barca. Desde cedo, aprendemos a associar certos alimentos a prazer/recompensa e conforto —como o sorvete após tomar uma vacina ou a macarronada da avó aos domingos. Essas conexões, embora dificultem a substituição de alguns alimentos, também mostram que é possível ressignificar o prazer.

Hábitos como fumar dificultam a mudança do paladar
Hábitos como fumar dificultam a mudança do paladar Imagem: iStock

Nem sempre a mudança é fácil

Segundo Matsuyama, algumas condições podem dificultar, retardar ou adiar a mudança, como envelhecimento, alterações hormonais (caso da gravidez), doenças como diabetes, insuficiência renal ou câncer de cabeça e pescoço em tratamento com químio ou radioterapia.

O uso de medicamentos (como antibióticos, antidepressivos e anti-hipertensivos) também pode interferir, assim como hábitos nocivos, como fumar ou exagerar no álcool.

Outro desafio está na natureza dos ultraprocessados, projetados para hiperestimular o sistema de recompensa do cérebro, liberando grandes doses de dopamina, o neurotransmissor do prazer e da motivação. "Essa resposta exagerada é semelhante, em alguns aspectos, à observada em vícios comportamentais", observa Abreu. Daí a importância da constância: quanto mais o cérebro aprende a associar prazer a alimentos naturais, mais fácil se torna manter hábitos saudáveis.

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Estratégias para treinar o paladar

Reduzir açúcar, sal ou gordura não é tarefa simples, mas pequenas mudanças graduais podem trazer grandes resultados. "Uma das estratégias mais básicas é simplesmente diminuir aos poucos. Comece retirando cerca de 50% do açúcar de adição, por exemplo, e vá reduzindo gradualmente", orienta Thaís Barca.

Além da redução progressiva, outros recursos podem ajudar:

  • Apostar em temperos naturais: ervas, especiarias, alho, cebola, limão, que realçam o sabor sem exigir tanto sal;
  • Variar o modo de preparo: alimentos ganham sabores diferentes dependendo da técnica culinária;
  • Criar rituais prazerosos: pode transformar a relação com a comida. Trocar sobremesas por frutas bem preparadas ou adaptar receitas familiares para versões mais leves permite manter tradições sem abrir mão da saúde;
  • Praticar atenção plena ao comer: ajuda a valorizar cores, aromas e apresentação. "A gente come com os olhos primeiro... essa salivação inicial já ajuda o cérebro a perceber o alimento como mais saboroso", destaca Barca;
  • Cuidar melhor do olfato: "Quando reduzimos aditivos (sal, açúcar, gordura), o olfato passa a ter papel ainda mais central, ajudando a perceber aromas sutis de frutas, verduras, especiarias e preparações naturais. É por isso que resfriados ou obstruções nasais fazem os alimentos parecerem 'sem gosto' e merecem ser tratados", reforça Matsuyama.

Outro ponto fundamental é a repetição. "Em cerca de três a seis semanas de exposição contínua a um sabor, já é possível notar mudanças significativas na percepção do gosto", informa Barca. Em média, em apenas um mês, alimentos que antes pareciam sem graça passam a ser percebidos como mais saborosos.

No fim das contas, treinar o paladar é menos sobre abrir mão do prazer e mais sobre redescobri-lo em novas formas. O processo exige paciência, constância e curiosidade, mas mostra que o cérebro e as papilas gustativas têm grande capacidade de adaptação. Com pequenas mudanças, é possível não apenas acostumar-se a sabores mais naturais, como também aprender a apreciá-los de verdade —transformando a alimentação saudável em uma escolha prazerosa e duradoura.

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