Filhos devem gratidão aos pais? Como equilibrar essa relação?

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A gratidão é muito valorizada e costuma estar ligada à felicidade e ao fortalecimento dos vínculos. Mas, entre pais e filhos, pode ter lados delicados, e nem sempre positivos.
O psiquiatra e psicoterapeuta Wimer Bottura, presidente do Comitê de Adolescência da APM (Associação Paulista de Medicina), ressalta que a gratidão é algo que só faz sentido quando nasce de forma espontânea. "É um sentimento genuíno e próprio de quem tem maior capacidade de ser feliz. O problema surge quando ela (a gratidão) passa a ser manipulada", afirma.
No caso das relações entre pais e filhos, é comum encontrarmos famílias que exigem e cobram dos mais jovens a tal gratidão, criando muitas vezes conflitos entre os indivíduos. De acordo com a psiquiatra Danielle H. Admoni, professora da Afya Educação Médica, a origem dessa distorção está na própria concepção da parentalidade. "O filho vem a partir da decisão de um casal, seja ele homo, hetero ou de qualquer configuração. A partir do momento em que se toma essa decisão, vêm junto responsabilidades, inclusive legais. Mesmo quando não se decide e é uma gestação indesejada, não dá para cobrar isso de volta dos filhos".

Espontânea ou por obrigação?
Assim como a culpa e a vergonha, a gratidão tem uma função social: ajudar a preservar a convivência coletiva. O risco aparece quando esse sentimento é distorcido e usado como forma de controle. Nesses casos, aquilo que deveria aproximar, acaba se transformando em exigência e peso emocional.
Selma Chaves, 63 anos, de São Paulo, viveu essa realidade de perto. Ela conta que seu primeiro casamento terminou, em parte, devido à insistente cobrança de gratidão dos antigos sogros, sobretudo da sogra. "Ela cobrava o filho por atenção e favores praticamente todos os dias. Nunca passei isso com minha mãe. Se meu ex-marido não a atendesse prontamente, era um dramalhão."
Selma conta que foram várias as situações em que ela e o então esposo estavam prontos para viajar e a sogra, de última hora, inventava alguma desculpa para não irem, só para manter o filho por perto, como se ele devesse favores emocionais à mãe pelas dificuldades que ela enfrentou com o marido para criá-lo.
Para Ingrid Nunes, psicóloga pós-graduada pela Faculdade Ruy Barbosa, em Salvador, a diferença entre gratidão saudável e gratidão manipulada está justamente na liberdade de escolha. "É importante a gente começar falando que amor não se cobra, em nenhuma esfera. Amor se constrói e isso precisa ser cultivado diariamente e continuamente."
Efeitos da gratidão como dívida
Como visto até aqui, a gratidão não é saudável quando se torna uma exigência. E quando usada como instrumento de controle, pode se transformar em um verdadeiro fardo. O psiquiatra Wimer Bottura explica: "Quando a gratidão é explorada, ela visa dominar as pessoas. O filho não pode ter autonomia porque senão os pais sofrem, e é muito comum a gente ouvir: 'meus filhos são ingratos, pois é tudo que eu fiz por eles'."
Esse tipo de cobrança emocional, segundo os especialistas, deixa marcas profundas no desenvolvimento psicológico. O filho, ao sentir que precisa merecer o amor dos pais, cresce com o senso de autonomia fragilizado, medo de rejeição e tendência à insegurança. "A criança pode suprimir suas emoções por medo de parecer ingrata e desenvolver culpa excessiva, baixa autoestima, quando entende que nunca é suficiente para merecer o amor dos pais", alerta Ingrid Nunes.
Admoni chama atenção para os impactos emocionais de longo prazo desse tipo de manipulação. "Os filhos acabam se tornando pessoas que acham que devem para todo mundo. Que têm que ser muito adequadas, muito boazinhas, que não podem falar não. Quando adultos, provavelmente terão relações amorosas e de trabalho e de amizade baseadas em cobranças."
Na prática, isso gera um ciclo de dependência e aprisionamento emocional que muito provavelmente afetará outras esferas sociais. Selma relata o que presenciou durante 18 anos de casamento: "Há filhos que poderiam sentir raiva por não terem liberdade, mas meu ex-marido carregava culpa quando tentava se afastar. Para piorar, nós morávamos, na época, em uma casa vizinha cedida pelos meus sogros."
Bottura compara esse tipo de processo a um "cabo de tensão" que mantém os filhos presos aos pais, impedindo-os de viver plenamente e de construir sua autonomia. Em contraste, a gratidão verdadeira só floresce em um ambiente de livre-arbítrio, onde há espaço para que os filhos desenvolvam sua individualidade sem a sombra da cobrança.

Receita para haver presença e liberdade
Se a gratidão não deve ser encarada como uma moeda de troca, como então cultivar relações familiares mais saudáveis? Os especialistas entrevistados pelo VivaBem afirmam que o primeiro passo é compreender que ser pai ou mãe é uma escolha e uma responsabilidade, e não um investimento que exige qualquer tipo de quitação, seja no presente ou futuro.
"Parentalidade não é um favor, não é um investimento que exige retorno, e sim uma função que implica cuidado, proteção e presença", afirma a psicóloga Ingrid Nunes. Segundo ela, a gratidão surge de maneira natural quando os filhos percebem disponibilidade, abertura para o diálogo e respeito à sua individualidade.
A professora e psiquiatra Danielle H. Admoni amplia essa ideia: "São os pais que têm uma dívida em relação aos filhos, porque, supostamente, foram eles que decidiram tê-los. A responsabilidade não se limita a oferecer comida, mas também educação, afeto e várias outras coisas que vão muito além do aspecto material. Isso é uma obrigação dos pais. De novo, não dá para cobrar isso de uma criança que nem sabe como retribuir, ou de um adulto, especialmente se ele nem recebeu esses cuidados na primeira infância."
Mais do que sacrifícios exaltados ou discursos de renúncia, o que fortalece os laços é a presença genuína: conversar, olhar nos olhos, respeitar o espaço do outro e, ao mesmo tempo, acolher. O psiquiatra Wimer Bottura reforça: "Filhos não são obrigados a ser gratos aos pais, mas sim têm o direito de ser gratos. Faz uma grande diferença."
Selma reconhece que, em sua experiência, a cobrança excessiva destruiu mais do que fortaleceu vínculos: "No meu caso, fiz o que pude ao longo dos anos para que meu casamento não terminasse, mas as cobranças só foram piorando, sem que meu ex-marido fizesse nada, principalmente à medida que meus sogros foram ficando mais velhos", lamenta.
"Os outros filhos e netos pouco os visitavam, e minha sogra não era uma pessoa das mais fáceis. A lição que tirei disso, e criando meus próprios filhos, é que a gratidão não pode ser imposta. Proximidade é fruto de amor, não de coação.", acredita.



























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