Dieta bíblica mistura jejum e orações: 'Quem governa é o Espírito Santo'

Prometendo a perda de até 14 kg em 30 dias com base em versículos e práticas espirituais, a chamada "dieta bíblica" tem atraído seguidoras cristãs nas redes sociais —mas especialistas ouvidos por VivaBem alertam para riscos físicos, emocionais e espirituais associados ao método.

Diversos perfis prometem perda rápida de peso com base em fundamentos espirituais, combinando jejuns, leitura de versículos e práticas de autocontrole. Em comum, está a crença de que a gordura corporal representa uma opressão a ser vencida com fé.

"Balança não manda"

Criadora da mentoria "Biblicamente Magra", que já teve mais de 3.000 participantes, a teóloga Angelita Kayo afirma que o processo de emagrecimento começa com a restauração espiritual. O programa combina orações, leitura de versículos, jejuns, exclusão de açúcar, massas e refrigerantes, além de tarefas devocionais. São 14 dias de aulas, áudios de reflexão e orientações sobre controle emocional.

Para Angelita, a obesidade é reflexo de desordens emocionais e espirituais e a falta de domínio próprio é a principal causa da compulsão alimentar.

"A obesidade nasce na alma e não na geladeira", afirmou. A teóloga defende, também, que a escolha dos alimentos deve ser vista como um ato de obediência a Deus. Ela também sugere que o corpo, ao responder ao jejum, manifesta sinais visíveis de transformação espiritual.

O prato é o altar porque nele eu apresento o meu sacrifício, que é dizer não para o que me faz mal, e sim para o que me aproxima do propósito de Deus para minha vida. Quando o ventre responde, é porque Deus está trazendo à tona o que foi gerado no espírito. O emagrecimento é uma manifestação profética de cura da alma.
Angelita Kayo

Angelita afirma que a metodologia surgiu a partir da própria experiência com obesidade e compulsão alimentar, e que o processo de emagrecimento aconteceu junto com uma transformação espiritual. "Eu sou o meu primeiro testemunho."

O foco da mentoria, segundo ela, é trabalhar o aspecto espiritual da compulsão e, por isso, não prescreve dietas nem substitui profissionais de saúde. "Aqui a balança não manda. Quem governa é o Espírito Santo", disse. Mesmo assim, relata que algumas alunas perderam até 14 kg em 30 dias.

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Especialistas alertam para riscos

Perder 14 kg em um mês sem acompanhamento médico pode ser perigoso, afirmam especialistas. O endocrinologista Rafael Fantin diz que esse tipo de promessa contraria todas as diretrizes de saúde para o controle de peso. Segundo ele, o emagrecimento seguro é de no máximo 1 kg por semana.

Fantin alerta que uma perda tão acelerada exigiria um déficit calórico praticamente inviável e biologicamente arriscado. Ele aponta riscos como desidratação, desequilíbrio hormonal, arritmias cardíacas, flacidez e queda de imunidade. O médico também destaca que a liberação rápida de gordura pode provocar inflamação sistêmica, com aumento do risco de infecções.

O endocrinologista também chama atenção para o risco de efeito sanfona. Segundo ele, dietas muito restritivas desaceleram o metabolismo e favorecem a recuperação rápida do peso perdido, muitas vezes com acúmulo ainda maior de gordura.

Jejuns prolongados e dietas restritivas podem causar deficiências nutricionais e arritmias. A nutricionista Samara Pinheiro afirma que métodos que associam fé e emagrecimento sem orientação técnica podem provocar perda de massa muscular, queda de imunidade e até distúrbios cardíacos.

Prometer emagrecimento como sinal de fé pode causar culpa e compulsão. A especialista diz que esse tipo de abordagem pode gerar ansiedade, baixa autoestima e episódios de compulsão alimentar.

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Vincular fé e emagrecimento pode gerar culpa, ansiedade e compulsão, especialmente em mulheres vulneráveis. Não é só uma questão de peso, é de saúde mental e física, Samara Pinheiro

Luz da Palavra

Outros programas seguem a mesma linha espiritual. Outra voz dessa abordagem é a autora Kesia Araújo, criadora do método "Emagreça à Luz da Palavra". Ela defende que a mudança física é consequência de um processo de renovação de pensamentos e hábitos, com base na fé cristã.

O programa sugere o uso de um caderno devocional para registro de emoções, metas e desafios pessoais. Segundo Kesia, as participantes anotam gatilhos emocionais ligados à compulsão alimentar e refletem sobre versículos bíblicos. A rotina inclui orações, leituras e exercícios de autoconhecimento.

A autora também relaciona conceitos da neurociência ao fortalecimento da fé e afirma que entender os mecanismos mentais ajuda a reprogramar padrões de comportamento e a desenvolver o domínio próprio.

Kesia reforça, no entanto, que não prescreve dietas nem oferece planos alimentares e que recomenda que as participantes busquem nutricionistas e médicos sempre que necessário.

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A gente trabalha a identidade da mulher em Deus. O emagrecimento é consequência, não a meta principal.
Kesia Araújo

Bíblia e dieta

Associar fé cristã à perda de peso representa risco de distorção da mensagem bíblica, afirma o teólogo Rodrigo Moraes. Segundo ele, a Bíblia não foi escrita como manual de dieta, e transformar espiritualidade em ferramenta de controle corporal pode gerar culpa, sofrimento emocional e uma lógica de desempenho que contraria o evangelho.

A Bíblia é pão da vida, não balança de aprovação, teólogo Rodrigo Moraes.

O teólogo também critica o uso de passagens bíblicas para justificar programas de emagrecimento. Como as mais comuns, ele cita Provérbios 23:7 e Isaías 58:6. O versículo de Provérbios 23:7, diz: "Porque, como imaginou no seu coração, assim é ele. Ele te diz: Come e bebe; mas o seu coração não está contigo."

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Segundo Moraes, o trecho é parte de uma advertência contra a hipocrisia de quem oferece comida, mas esconde intenções mesquinhas. "O texto está alertando sobre o caráter dissimulado do anfitrião, e não fazendo uma afirmação sobre o poder da mente para transformar o corpo", explicou.

Já Isaías 58 fala de justiça social, e não de controle alimentar, afirma o teólogo. No versículo 6, a passagem diz: "Porventura não é este o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras do jugo, e deixes livres os oprimidos, e despedaces todo jugo?".

Para o teólogo, o capítulo é uma denúncia contra um jejum de aparência, feito por um povo que mantinha rituais religiosos enquanto ignorava os necessitados. "O texto chama o povo a repartir o pão e libertar os oprimidos, não a controlar o peso corporal", disse Moraes.

Para ele, transformar fé em produto comercializado como solução para o emagrecimento é eticamente grave.

Transformar fé em produto é sempre perigoso —e, quando o público-alvo são mulheres vulneráveis, é ainda mais perverso, afirmou.

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