'Não viver de gambiarra': mãe busca luva para que filha PcD exerça medicina

A jornalista e âncora do Jornal da Band Adriana Araújo, 53, trabalha há 27 anos pela inclusão da filha, que nasceu com hemimelia fibular e é PcD (pessoa com deficiência). A má-formação congênita consiste na ausência completa ou parcial da fíbula, um dos ossos da perna. Na mão direita, ela tem apenas dois dedos.

Foram inúmeros desafios para que Giovanna Araújo, 27, crescesse acreditando em seu potencial pleno. A deficiência nunca a limitou, mas foram necessárias dez cirurgias para que ela andasse com as próprias pernas e conquistasse destreza na mão direita.

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Em 2018, Giovanna começou a cursar medicina na Unifesp (SP). No meio do caminho, mãe e filha descobriram mais uma etapa a ser superada: não existiam luvas médicas para pessoas com deficiência nas mãos.

Por mais de um ano, Adriana entrou em contato com fábricas no Brasil e no mundo para conseguir o item para a filha —o que virou uma causa que ela abraçou de forma integral, ajudando até outros jovens a conseguirem as luvas.

Adriana Araújo, a filha Giovanna e a luva
Adriana Araújo, a filha Giovanna e a luva Imagem: Arquivo Pessoal

Há poucas semanas, elas foram avisadas de que a fábrica responsável pela fabricação das luvas personalizadas deixou de produzir suprimentos médicos. A partir de agora, Giovanna e pelo menos mais nove jovens têm luvas contadas para exercerem a profissão —sem perspectiva de quem pode ajudá-los.

''Não vale a pena''

Giovanna nasceu em Belo Horizonte em 6 de outubro de 1997. Ainda grávida, Adriana soube que a filha teria uma deficiência física.

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"A gente descobriu aos poucos, pelos exames de ultrassom. Em 1997, eles não eram tão modernos para ter um diagnóstico logo de cara. Foi a conta-gotas, à medida que a gestação evoluía", conta Adriana a VivaBem.

Giovanna passou por dez cirurgias
Giovanna passou por dez cirurgias Imagem: Arquivo pessoal

Na época, Adriana era repórter do Jornal Nacional, da TV Globo. No dia de um dos ultrassons, ela foi encaminhada para uma pauta com um ortopedista. Contou sobre o que a afligia e recebeu a indicação de procurar um especialista pediátrico, César Luiz Andrade.

Ele tratou a Giovanna desde o primeiro dia de vida e fez as três primeiras cirurgias na perna dela. E ele cuidou de mim também, foi quase um segundo pai. Adriana Araújo

Adriana se sentiu segura com ele desde o primeiro momento, mas era cobrada por pessoas próximas a procurar uma segunda opinião, de outro especialista. "Me sentia como se estivesse sendo negligente por não procurar outra pessoa. Então, procurei um hospital de referência e tive uma experiência muito ruim."

Em uma carta aberta, publicada em 2015 pela Folha de S.Paulo, Adriana contou que o segundo especialista, ao ver Giovanna andando com um aparelho ortopédico, sugeriu que seria melhor amputá-la. "Não vale a pena. Tira o pé e está resolvido o problema."

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Aquilo me traumatizou muito. Voltei correndo para o doutor César, não procurei outros especialistas, sabendo que ele foi muito honesto comigo sobre a gravidade da situação.
Adriana Araújo

"Ele preparou o osso dela para o momento que ela precisaria de cirurgias mais difíceis, de alongamento ósseo. E ele me ajudou a achar o segundo 'anjo de jaleco', que é o ortopedista Amâncio Ramalho Júnior, a partir de 2006", completa ela.

Sem as cirurgias, Giovanna teria 15 centímetros de diferença entre as pernas. Hoje, ela tem as duas pernas equilibradas, do mesmo tamanho, e é uma mulher totalmente independente.

Lidando com o preconceito

"Acho que toda mãe que tem um filho ou filha com deficiência sabe, são nas pequenas coisas da rotina, todos os dias, que você vira uma esponja para absorver frases maldosas e agressivas", afirma ela.

Adriana e Giovanna, quando era criança
Adriana e Giovanna, quando era criança Imagem: Arquivo pessoal
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Você tenta proteger a criança, para que ela não tenha a autoestima dilacerada na primeira infância. Mas sabe que precisa prepará-la para, em um determinado momento, ela assumir a função de se proteger.
Adriana Araújo

A jornada médica foi intensa, assim como a jornada pela autoestima. "Estava alerta para ajudá-la a se compreender como uma pessoa com deficiência física, mas com habilidades e talentos. E que ela poderia tentar tudo, que ela descobriria qual seria o caminho dela, que aquilo não era razão para ela ser desrespeitada ou menos amada."

Se hoje as mães de crianças com deficiência ainda escutam frases inaceitáveis, nos anos 90 era rotina. As pessoas falavam na sua frente que seu filho nasceu com defeito, como se fosse um objeto de plástico que saiu da máquina da fábrica. Adriana Araújo

Jornada na medicina

Com 14 anos, Giovanna comunicou a mãe que queria ser médica. A decisão foi uma surpresa para ela. "Achava que ela teria trauma de hospital depois de dez cirurgias, dores muito fortes e situações muito pesadas. Ela ficava com gaiolas e ferragens, pinos externos, tomou muita morfina. Achava que ela teria horror."

Adriana conta que a própria filha relata que foi justamente essa rotina que a fez querer seguir a profissão. "Ter sido paciente, ter visto a importância que os médicos tiveram na trajetória dela, é uma das razões da escolha. Foi um componente importante."

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Quando Giovanna já tinha sido aprovada em medicina, Adriana foi questionada em uma consulta médica se ela já tinha procurado algo sobre luvas médicas. "Nunca tinha pensado, então não entendi a pergunta", lembra. "E aí caiu a ficha: não existiam luvas médicas para uma pessoa que nasceu com dois dedos."

Giovanna tem habilidades com a mão direita: pinça, consegue suturar, pegar o bisturi. E ela precisa de uma luva médica por questão de segurança, tanto para ela quanto para o paciente, assim como qualquer outro profissional da saúde.

Foi uma saga conseguir as luvas. Passei mais de um ano escutando que era impossível. Que não existia e que nenhuma empresa aceitaria fazer uma luva para uma pessoa que tinha dois dedos na mão. Adriana Araújo

Insistindo muito, ela chegou até uma fábrica em São Roque (SP), que abraçou a causa em um processo inédito no Brasil. Com o passar dos meses, ela conheceu outras mães em busca do mesmo ideal: luvas para que os filhos conseguissem exercer a profissão. E a empresa abraçou todo o processo, se propondo a produzir luvas para oito médicos e estudantes com deficiência.

Novo desafio

Há algumas semanas, Adriana foi avisada que a fábrica parou a produção de suprimentos médicos. "Tem médicos com deficiência lutando para existir como médicos. Eles precisam da luva para existir como médicos", destaca a jornalista.

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A Sarah, de Brasília, entra todo dia numa UTI neonatal. Ela está se especializando em pediatria intensivista. Todo dia ela entra em uma UTI com bebês prematuros, correndo risco de vida. E ela só pode ajudá-los se ela tiver com as luvas nas mãos.
Adriana Araújo

A fábrica tenta ajudar Adriana a encontrar outra empresa que tope fabricar as luvas de Giovanna e das colegas, mas ainda não conseguiu. "É um assunto que mexe profundamente comigo porque foi uma luta muito grande."

Mas a esperança existe, porque o que a jornalista acreditava ser uma luta solitária, que ela seria a única mãe em busca deste tipo de luta, virou algo maior. "Somos, no mínimo, dez profissionais e famílias que estão unidos e sensibilizados por essa causa."

[A falta de luva] não vai inviabilizar, mas dificulta muito. Eles têm que viver de gambiarra. Como você diz para um médico que ele vai entrar no bloco cirúrgico com uma luva amarrada? Eles perdem destreza e habilidades.
Adriana Araújo

Adriana não descarta recorrer ao exterior, como já aconteceu. Em sua primeira busca por luvas, a jornalista encontrou um médico norte-americano com uma mão parecida com a da Giovanna e que usava luvas adaptadas.

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Mesmo sem nunca ter retorno dele, descobriu que elas eram importadas da Malásia. Ela chegou a entrar em contato com a fábrica e recebeu um lote com 500 luvas, mas eles pararam de responder.

Ela não ficou exatamente anatômica, mas esses primeiros pares foram os primeiros que permitiram ela entrar em laboratório para dissecar cadáveres na medicina. Adriana Araújo

A jornalista lançou o livro "Sou a Mãe Dela" (Globo Livros) em 2020, em que conta a história de Giovanna e inúmeras situações que passaram juntas, desde o diagnóstico até ela entrar na faculdade. Em 2025, ela lançou um podcast com o mesmo nome, produzido pela Trovão Mídia, em que entrevista pessoas que foram essenciais na trajetória da filha.

Giovanna e as outras médicas ainda têm luvas para um tempo, já que a fábrica produziu um lote extra de mil unidades para cada uma delas. Mas o consumo é muito grande, já que o EPI (equipamento de proteção individual) é trocado a cada paciente.

"Não teria tido a alegria de ver minha filha se formar em medicina se, ao longo da nossa jornada, não tivessem passado médicos, professores, amigos, parentes, minha família, meu marido e muitas pessoas que ajudaram a Giovanna a ser a médica que ela é hoje. Ela se ama, se respeita e se entende como uma pessoa com deficiência que merece respeito e um lugar no mundo", finaliza Adriana.

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