Paralisia sem acidente: 'Fui à cozinha e caí sem conseguir mover as pernas'

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Rogério Narciso Vieira, 45, acordou, deu alguns passos em direção à cozinha para tomar seu café da manhã e, de repente, caiu no chão. Ele não sabia, mas aquele seria o ponto de partida de uma saga marcada por exames, dores constantes e diagnósticos incertos, até descobrir que teve uma mielopatia decorrente de uma fístula. A VivaBem, ele conta sua história.
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'Caí sem conseguir mover as duas pernas'
"Estava de folga do serviço, tinha ido até Santos, sozinho. E foi assim: simplesmente acordei, dei passos em direção à cozinha e caí sem conseguir mover as duas pernas.
Me perguntavam: 'mas você nunca sentiu nada?'. E sim. Uns 12 dias antes eu tinha sentido apenas dois sintomas: um leve incômodo ao andar e um pequeno formigamento no peito do pé. Na ocasião, fui ao hospital, mas nada de mais.
Também me perguntam se eu não gritei desesperadamente após a queda e eu digo que não.
Eu só me rastejei até meu celular e me certifiquei de que ele estivesse em uma altura que desse para alcançar e liguei para minha irmã. Ela gentilmente me buscou em Santos e me levou ao primeiro hospital.
Passei por todos os exames possíveis. Toda manhã os médicos iam ao meu quarto e diziam 'olha, isso pode ser esclerose múltipla ou neuromielite óptica. Tenha um bom dia', e seguiam.
Eu pegava o celular e ficava pesquisando. Às vezes parecia que eu estava em um pesadelo.
Três dias antes eu estava trabalhando, jogando bola, dando uns arremessos de basquete. E, depois, estava pesquisando o que são as doenças que poderiam ter paralisado minhas pernas.
Rogério Narciso Vieira

Uma era pior do que a outra. A neuromielite óptica, que afeta a visão, me fazia todos os dias acordar abrindo imediatamente o olho e dizer 'graças a Deus, ainda estou enxergando'.
Quando completei um mês no hospital, recebi alta, porque ainda não mexia as pernas e não tinha diagnóstico, mas eles não tinham mais o que fazer.
Fiquei desesperado por dar trabalho para os meus pais, que já tinham uma idade avançada. Foi aí que me internei em um hospital de reabilitação.
O diagnóstico

Acabaram os 30 dias no hospital de reabilitação e, de novo, recebi alta, porque não tinha o que fazer e também não chegaram ao diagnóstico.
Me indicaram uma neurologista que disseram ser muito boa. Ela me encaminhou para uma nova ressonância e pediu que uma pessoa específica fizesse o laudo.
Depois de alguns dias que fiz o exame, ela me escreveu dizendo: 'olha, ele viu uma fístula medular em T7 [sétima vértebra torácica] na sua coluna' [ele descobriu ter uma mielopatia decorrente dessa fístula].
Eu não sabia o que era isso. Não sei bem até hoje, para falar a verdade.
Rogério Narciso Vieira
Ela disse que eu poderia passar por uma cirurgia, que não havia garantia de que eu voltaria a andar, mas poderia impedir que o problema subisse atingindo outros membros, a respiração e a deglutição.
Pensei: 'com certeza, vamos lá!'. E me internei de novo.
O médico me disse friamente que era um procedimento 'bem justo' e que se houvesse qualquer erro eu poderia ficar paralisado. Mas ao mesmo tempo disse: 'Durma tranquilo que vai dar tudo certo'. E respondi 'Tá bom, vou tentar'. Chegou a ser engraçado.
Primeiro, o procedimento seria uma angiografia medular [uma espécie de cateterismo para estudar anomalias nos vasos da medula] que poderia resolver o problema, mas a posição da fístula dificultou e tiveram de abrir meu corpo.
Segundo os médicos, deu tudo certo, dentro do que é possível. E, como prometido, eu não tive nenhuma complicação acima das pernas. Mas o médico deixou claro: 'Você vai ter de lutar até o fim da sua vida por suas pernas'.
'Dor o ano todo'
Os médicos não conseguem dizer a causa da fístula. E também diziam que nunca tinham visto um caso como o meu.
Todo dia em que eu passo por dificuldade na minha nova vida eu penso nisso. Mas é uma resposta que eu não tenho, que o doutor que operou diz não ter, que a médica que me diagnosticou não tem, e me disseram que eu nunca terei.
Rogério Narciso Vieira
Resumidamente: um dia, você passa a não andar mais, passa a ter uma série de questões que a lesão da medula traz, que não é só o não andar, e você não tem nem mesmo o porquê disso para se lamentar —ou não.
Também sinto dores 24 horas por dia, 365 dias no ano. É uma dor neuropática nas duas pernas que é um inferno.
Já tentei tudo o que os bons médicos com quem eu passei me orientaram. Mas eles são unânimes em dizer que não existe cura para isso, apenas apaziguadores.
A espiritualidade foi muito importante para mim nesse processo. Busquei o que me traz energia para me ajudar nessa aceitação e me trazer essa tranquilidade relativa para tocar a vida dali para frente, em uma nova situação.
Mas, de passo em passo, e com o tratamento em instituições como a AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente) e Acreditando (Centro Integrado de Reabilitação e Recuperação Neuromotora), em 2022 saí da cadeira de rodas para o andador.

Em 2023, passei a usar duas muletas. Hoje consigo, um pouco cambaleante, andar com uma bengala. Agora, fui liberado para fazer academia novamente.
Amava pedalar, jogar basquete e futebol. Mas, principalmente, amava a minha função de segurança metroviário. De tudo o que eu já trabalhei na vida, nada me trazia tanto prazer quanto ficar lá, ajudando as pessoas. Em um minuto, eu tive de eliminar tudo isso e tocar a vida.
Rogério Narciso Vieira
O que são mielopatia e fístula
A mielopatia ocorre quando há uma compressão ou lesão da medula. Na medula, existe um feixe de fibras nervosas, que transportam mensagens entre o cérebro e o restante do corpo. "É um espaço muito pequeno. Se um vaso fica dilatado, ele comprime os nervos e os neurônios que estão ao redor. Se ele inflama, vai comprimir, lesar e interferir na função dos neurônios, desencadeando uma síndrome medular, uma mielopatia, que foi o caso do Rogério", explica Maurício Panício, neurocirurgião e mestre em neurocirurgia pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Já a fístula ocorre quando "existe uma comunicação direta do sistema arterial, que é de alta pressão, com o sistema venoso, que é de baixa pressão", explica Panício. O sistema venoso "não está preparado para receber o sangue com tamanha pressão e é aí que começam os problemas".
A fístula medular acontece com 1 a cada 100 mil pacientes, diz o médico. É muito pouco comum, segundo Panício. Ele diz que a maioria das fístulas são adquiridas —elas acontecem por algum trauma ou casos de trombose. Mas também podem ser congênitas.
O diagnóstico não é fácil. Segundo Panício, os vasos que estão na medula espinhal são de pequeno calibre. "O médico que faz o exame bem feito, a ponto de identificar o diagnóstico, precisa estar muito bem treinado", explica o neurologista.
Como é a recuperação
A condição não tem cura, mas o tratamento pode trazer resultados consideráveis. Segundo o neurologista, o tratamento vai do procedimento de angiografia —que se assemelha a um cateterismo— até cirurgia. Quando é em um local inacessível, também é possível a realização de uma radiocirurgia, um procedimento que utiliza radiação de alta precisão no local da lesão.
Após a cirurgia, é preciso focar na reabilitação, com fisioterapia e outras terapias alternativas.
A reabilitação é uma coisa tão grandiosa que às vezes nós, médicos, pensamos 'não é possível'. Mas, quando eu acho que a pessoa já perdeu e não tem mais volta, vejo resultados impressionantes.
Maurício Panício
Após a cirurgia, Rogério passou por um intenso processo de reabilitação. "Realizou treino de marcha com suporte de peso, eletroestimulação funcional para ativação neuromuscular, uso de plataforma vibratória para estímulo proprioceptivo [para ajudar na consciência corporal] e exercícios específicos voltados à recuperação da força e coordenação motora", contou Glauber Rocha, educador físico especializado em neurologia clínica na reabilitação.
Durante todo o processo, ele se mostrou bastante engajado, buscando entender sua condição e participando ativamente do treinamento. Com o avanço do quadro clínico e a melhora da funcionalidade, ele optou por retomar suas atividades físicas em academias convencionais. Esse foi um processo gradual, respeitando sua adaptação e necessidades individuais.
Glauber Rocha, educador físico
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