Como se fosse a primeira vez: por que algumas sensações são únicas?

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Na primeira vez que nos apaixonamos, pulamos de paraquedas ou assistimos a um filme que mexe profundamente com nosso interior, sentimos algo que parece irreproduzível. Mesmo que a gente repita a mesma experiência, algo já mudou: nós mesmos. Isso pode soar filosófico — e é, como diria Heráclito, "ninguém entra duas vezes no mesmo rio" —, mas também é, acima de tudo, ciência.
O que sentimos na estreia de uma experiência intensa é resultado direto da neuroplasticidade, a capacidade do cérebro de se adaptar, se reorganizar e criar novas conexões a partir das experiências vividas. "É quando o cérebro cria novas conexões entre neurônios ou fortalece as que já existem", explica Wuilker Knoner Campos, doutor em neurociências. "É como se ele estivesse desenhando um mapa novo para aquela vivência."
Esse processo ocorre o tempo todo, desde o nascimento até a velhice, e é essencial para o aprendizado, a memória, a superação de traumas e a renovação emocional. Segundo o neurocientista, a neuroplasticidade foi fundamental para a evolução da nossa espécie, permitindo que o ser humano aprendesse com o ambiente, criasse ferramentas e desenvolvesse linguagem.
Novidade ativa áreas do sistema de recompensa
Cada vez que vivemos algo pela primeira vez — como um beijo, um novo sabor ou uma viagem —, o cérebro entra em modo de alerta e encantamento. "Ele registra tudo: sons, cheiros, imagens, sensações e emoções", diz Campos. Isso acontece porque a novidade ativa áreas importantes do sistema de recompensa, liberando substâncias como dopamina e noradrenalina, que nos deixam mais atentos e emocionalmente envolvidos.
Essa experiência também é moldada por circuitos afetivos construídos desde a infância. "O amor é uma repetição de um encontro muito primário que você teve no seu desenvolvimento, que envolve neuroplasticidade também", afirma Mariana Muniz, médica pela FMRP-USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto), psiquiatra pelo IAMSPE (Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo) e pós-graduanda em neurociências pelo Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
A gente nunca para de procurar um amor de alguma forma. O amor é uma repetição de um encontro muito primário que você teve no seu desenvolvimento, que envolve a neuroplasticidade. Mariana Muniz, psiquiatra

O músculo do cérebro que moldou nossa evolução
Para Campos, a neuroplasticidade pode ser comparada a um tipo de musculação cerebral. "Como um músculo, o cérebro precisa de desafio, uma nova carga e aprendizado contínuo para manter sua flexibilidade", afirma. Isso significa que, quanto mais usamos o cérebro de forma ativa e criativa, mais ele se fortalece e se adapta.
O neurocientista também destaca que essa capacidade de reinvenção cerebral não tem um limite rígido, mas diminui com a idade se não for estimulada. Da infância à vida adulta, é a neuroplasticidade que permite ao cérebro se ajustar a novas situações, aprender novos comportamentos e até mesmo se recuperar de lesões ou doenças mentais.
Na depressão, algumas áreas do cérebro ficam hipoativas. Mas com terapia, meditação, exercícios físicos e experiências novas é possível reativar essas áreas e criar novas rotas de bem-estar. Wuilker Knoner Campos, doutor em neurociências
Campos compara esse processo a reformar uma casa antiga: "Você não muda só a pintura, mas reconstrói a estrutura por dentro".
A psiquiatra também aponta a importância de ressignificar a vida como forma de retomar intensidades perdidas no cotidiano. "A gente se perde nas nossas próprias dores, em nos nossos automatismos com o mundo. Voltar para o básico pode ser uma boa forma de ressignificar a vida", afirma.
Formas de estimular a neuroplasticidade
É possível manter a neuroplasticidade ativa diariamente. Campos lista algumas formas simples e eficazes:
Aprender algo novo. Pode ser um idioma, instrumento musical ou uma dança;
Praticar exercícios físicos;
Manter conexões emocionais e conversas significativas;
Meditar e praticar atenção plena;
Dormir bem e manter uma alimentação equilibrada.
A dica de ouro é: saia do automático. Troque o caminho para o trabalho, mude o lado da escova de dentes, leia um livro de um tema novo. Quanto mais o cérebro se surpreende, mais ele se renova. Wuilker Knoner Campos, doutor em neurociências
Além disso, Muniz ressalta o papel da neuroplasticidade no tratamento de doenças mentais a partir da quebra de circuitos repetitivos, como ruminações e traumas. Ela explica que substâncias como psicodélicos e psicoplastógenos estão sendo estudadas por seu potencial de induzir estados de neuroplasticidade.
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