Relatos expõem descaso em consultas psiquiátricas: 'Fiquei sem apoio'
Gabriele Maciel
Colaboração para VivaBem
15/05/2025 05h30
O corretor de imóveis Paulo Santos*, 61, começou a se consultar com psiquiatras aos 40, após apresentar sintomas de depressão. Foram 15 anos ininterruptos de tratamento, marcados por trocas constantes de profissionais e medicamentos, agravamento do quadro e uma longa busca por respostas que nunca vinham. Nenhum dos cerca de seis psiquiatras com quem se consultou percebeu que Paulo não enfrentava um quadro depressivo clássico, mas sim um transtorno bipolar tipo 2. "As consultas eram sempre rápidas, não se aprofundavam no meu histórico de vida ou de saúde", conta.
Entre os episódios mais marcantes, Paulo se lembra de uma consulta em uma clínica de atendimento popular, com valor de R$ 40. "A médica me entregou três receitas diferentes e disse para eu testar e ver qual me adaptava melhor", diz. Entre os medicamentos estava a Ritalina, um estimulante indicado para TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), sem eficácia comprovada no tratamento da depressão.
Em outra consulta, com um médico de renome na cidade de São José dos Campos (SP), lhe foi receitado um remédio que era novo no mercado e que custou mais de R$ 300 a caixa. "Quando fui ler a bula, tinha um monte de contraindicações para o meu caso. Tentei marcar uma outra consulta, conversar com ele, mas não foi possível, nem a secretária dele tinha acesso a ele", conta.
O caso de Paulo não é isolado. Inúmeros pacientes relatam experiências frustrantes em consultas psiquiátricas. As queixas mais recorrentes envolvem atendimentos extremamente breves —em alguns casos com menos de seis minutos—, trocas frequentes de medicação sem explicações adequadas e ausência de orientações claras sobre efeitos colaterais. Esses relatos, que envolvem tanto consultas presenciais quanto online, apontam para um padrão de descuido e automatização em um campo que exige, acima de tudo, escuta qualificada e cuidado continuado.
No caso da funcionária pública Teresa Cristina Ramos, 57, o diagnóstico de bipolaridade lhe foi dado após uma consulta rápida em que ela mencionou que o irmão tinha a condição. "Ele me entregou a medicação e disse que, por ser genético, eu provavelmente também teria. Mas meus sintomas eram completamente diferentes", conta. "Tinha acabado de entrar na menopausa, chorava com frequência, às vezes ficava muito irritada. Mas é diferente do que vejo no meu irmão. Ele não se aprofundou no caso e já saiu passando remédio a torto e a direito. Você que se vire com as consequências disso", desabafa.
Para o psiquiatra Paulo Amarante, trata-se de um modelo biomédico centrado na prescrição, que desconsidera o sofrimento social, emocional e histórico das pessoas. "O psiquiatra hoje não pergunta mais da vida da pessoa. Pergunta só o sintoma e prescreve", afirma Amarante, que é doutor em saúde pública e responsável pelo site Mad in Brasil, uma versão brasileira da rede internacional que questiona o excesso de diagnósticos e de prescrição de medicamentos psiquiátricos.
Para ele, a psiquiatria perdeu sua conexão com os saberes das ciências humanas, caminhando para uma formação cada vez mais técnica e empobrecida. "Na busca por um neurotransmissor mágico que explique tudo, a psiquiatria tem negligenciado o essencial: ouvir, compreender e caminhar junto com quem sofre", avalia Amarante.
O psiquiatra Bruno Mendonça Coêlho, doutor em ciências pela USP (Universidade de São Paulo), também vê raízes estruturais no problema. "Atuei por anos no serviço público, onde uma primeira consulta podia durar até três horas. Quando tentei atender por convênio, o tempo estabelecido era de 15 a 20 minutos. Fiquei um mês e saí", afirma. Segundo ele, atender bem exige escuta, vínculo e tempo. "Se a consulta leva 15 minutos e o médico diz que fez tudo que precisava, tem algo errado."
Atendimento online
Com a pandemia, o atendimento psiquiátrico remoto se popularizou como uma alternativa para manter o cuidado à distância. No entanto, o crescimento acelerado dessa modalidade também trouxe desafios. Muitos pacientes relatam consultas apressadas, falhas de conexão e, sobretudo, ausência de acolhimento.
A professora Flávia Guimarães, 33, afirma ter sido ignorada durante uma videochamada agendada com uma clínica de São Paulo. "A médica não me escutava. Sugeri continuar pelo notebook ou pelo telefone no ouvido, mas ela respondeu de forma grosseira que não podia esperar e encerrou a consulta após oito minutos. Fiquei sem retorno e sem apoio", reclama.
Para Coêlho, apesar de ser uma ferramenta poderosa, especialmente em regiões onde há escassez de profissionais, o atendimento remoto não é indicado em quadros mais complexos. "A escuta e o vínculo não dependem do meio, e sim da postura do profissional. Mas o médico precisa avaliar quando o presencial é necessário", afirma.
De acordo com o médico Elias Junior, que é diretor técnico da plataforma MPO (Meu Psiquiatra Online), o CFM (Conselho Federal de Medicina) não estabelece regras de quanto tempo deve durar uma consulta. "O tempo de consulta não define, por si só, a qualidade do atendimento, mas a falta de escuta, sim, é um problema grave. É obrigação do médico garantir que o paciente saia com clareza sobre o que foi discutido", pontua.
Coêlho reforça que há múltiplos fatores envolvidos para este problema: desde médicos que aceitam más condições de trabalho até a baixa oferta de psiquiatras no país, o que sobrecarrega os serviços. Segundo o relatório Demografia Médica no Brasil 2018, são apenas cinco psiquiatras por 100 mil habitantes, uma das menores taxas entre os países analisados. "Em 2022, o Brasil tinha cerca de 14 mil psiquiatras para mais de 200 milhões de pessoas. É muito pouco, e ainda mal distribuído: regiões como o Norte têm pouquíssimos profissionais."
Além disso, Coêlho também aponta para falhas na formação dos profissionais. Em 2004, ainda como residente, ele coassinou um artigo propondo mudanças profundas na residência médica em psiquiatria. "Não basta formar um médico que sabe prescrever. Psiquiatria exige empatia, escuta e domínio de múltiplas abordagens terapêuticas."
Como deveria ser uma consulta ideal?
Segundo os especialistas ouvidos por VivaBem, uma boa consulta psiquiátrica precisa incluir:
Escuta atenta e empática;
Investigação da história clínica e contexto do paciente;
Explicação clara sobre o diagnóstico e o plano de tratamento;
Discussão de abordagens terapêuticas além da medicação;
Informações sobre efeitos colaterais, tempo estimado de uso e formas seguras de descontinuação.
A omissão de informações, o atendimento apressado e a prescrição automática podem configurar falhas éticas. Nestes casos, o paciente tem caminhos:
Conversar com o médico: questione, peça explicações;
Buscar uma segunda opinião;
Registrar denúncia no CRM do estado ou na plataforma de atendimento, se for o caso;
Jamais interromper a medicação por conta própria: a descontinuação de psicofármacos deve ser gradual e acompanhada.
*Nome alterado a pedido do entrevistado