'Vivi sem testículos na bolsa escrotal e me achava menos homem por isso'

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A vergonha da nudez acompanhou Cláudio*, 60, por toda a infância e fez o menino se esconder durante anos para não ficar sem roupas na frente de outros garotos.
Claudio nasceu com uma condição que faz com que um ou ambos os testículos não desçam para a bolsa escrotal —algo que tem impactos emocionais em sua vida até hoje.
Vivi sem testículo na bolsa escrotal por 11 anos, mas sabia que um deles estava preso no púbis, pois podia ver a protuberância e tocá-lo, o que causava dor.
Cláudio
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Na infância, o irmão o forçou a se despir na frente de um amigo, que logo reparou que o garoto não tinha os testículos na bolsa escrotal.
Ele fez isso para o meu bem, não queria que eu vivesse me escondendo. Meus primos riam de mim no banho e um deles, mais velho, disse que, se não tivesse as bolas no saco, se suicidaria.
Cláudio
'Me escondia nos vestiários'
Cláudio viveu boa parte da infância e adolescência escondendo sua condição.
Não me achava um 'menino', me sentia menos homem. Por isso, não ficava com os outros na porta do colégio e sempre chegava atrasado de propósito. Me escondia nos vestiários do clube.
Cláudio
A condição de Cláudio é conhecida como criptorquidia. Em geral, é indicada uma cirurgia no primeiro ano de vida para localização e descida dos testículos.
No entanto, no caso de Cláudio, a cirurgia foi feita apenas aos 11 anos.
Fui orientado a massagear pressionando para que a glândula descesse. Causava dor e não resolvia. Aos seis, tive de usar uma cinta para pressionar o testículo esquerdo a descer. Isso também não funcionou. Eu dizia na escola que tinha hérnia.
Cláudio
Um menino 'quase inteiro'
"Depois da cirurgia, me senti um menino e passei a chegar mais cedo no colégio para socializar", diz Cláudio.
No entanto, algo que a família de Cláudio ainda não havia lhe contado veio à tona: ele tinha apenas uma glândula testicular. A outra foi necrosada e removida ainda nos primeiros anos de sua infância —o assunto sempre foi um tabu em sua família.
"Creio que ele ficou 'esmagado' entre os músculos pubianos. A primeira cirurgia que fiz foi exatamente para retirá-lo, talvez devido a essa necrose."
Cláudio conta que praticamente toda a família sabia, mas evitava o tema.
Tentavam minimizar comparando com animais da roça, como porcos castrados, ou com a diferença entre um 'garanhão' --chamado de cavalo inteiro-- e um cavalo castrado, usado para montaria, puxar charrete e coisas afins. Eu não era um 'menino inteiro'.
Cláudio
'Não falaram nada para me proteger'
Mais tarde, entre os 16 e 17 anos de idade, Cláudio passou por uma cirurgia, de fim estético, para incluir uma prótese em sua bolsa escrotal. Ele demorou a entender as razões por trás das decisões médicas e do silêncio familiar.
"Meu pai e minha mãe nunca falaram nada para me proteger de uma verdade para a qual eu, criança e principalmente adolescente, não estava preparado para ouvir. A cirurgia em termos estritamente físicos/biológicos não era necessária, mas para a minha psique era definitivamente fundamental."
'Ainda restam cicatrizes'
Foi só aos 23 anos que Cláudio descobriu ser estéril.
"Não havia como engravidar, pois o número de espermatozoides era zero, revelado por um espermograma. Nem pensava em ser pai, mas por duas vezes fui alertado por mulheres que achavam estar grávidas de mim. Confesso que tive alguma esperança."
Durante anos, ele acreditou que sua fragilidade física era consequência de uma deficiência hormonal.
"Fiz dois exames de testosterona recentemente. Os dois deram resultado normal e fiquei chateado. Se desse alguma deficiência, poderia ter uma receita médica e usar a testosterona sintética."
Cinco décadas depois, Cláudio diz que não tem mais vergonha do corpo, mas ainda elabora a experiência e, quando fala sobre o assunto, diz sentir que ainda está contando um segredo.
Mesmo na minha idade, restam cicatrizes emocionais e físicas. Esse assunto ainda permeia grande parte da minha terapia atual. Posso dizer que 'superei', mas, em acordo com meu psicólogo, preferimos a palavra 'elaborei': faz parte da minha história.
Cláudio
Entenda a criptoquirdia
"É uma condição genital congênita em que não houve a migração dos testículos do abdome para a bolsa testicular nos meses finais de gestação", explica Marcello Schettino Barbosa, urologista da Hapvida. A causa pode ser genética, hormonal ou associada a fatores ambientais durante a gestação.

"A criptorquidia ocorre em até 3% dos meninos nascidos a termo (tempo ideal) e em até 40% dos prematuros. Quando não tratada precocemente, pode afetar a fertilidade e aumentar o risco de câncer testicular", explica a urologista Veridiana Andrioli, membro do Departamento de Urologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Urologia e fellow em Urologia Pediátrica pela universidade de Ottawa (Canadá).
A cirurgia para a localização e descida testicular, se possível, deve acontecer a partir do sexto mês de vida. "E preferencialmente dentro do primeiro ano de vida, e não postergar para além de de 18 meses", diz Andrioli.
O testículo pode atrofiar por não estar na bolsa testicular, que tem a função de manter uma temperatura menor do que a corporal. "Quando temos a necrose ou a atrofia testicular, é realizada a retirada e colocada uma prótese testicular no lugar do testículo retirado geralmente no mesmo ato operatório", explica o urologista Marcello Schettino Barbosa.
Pessoas com um testículo só não são necessariamente inférteis. Uma glândula testicular, bem formada, é capaz de produzir de forma adequada a testosterona necessária ao desenvolvimento dos caracteres sexuais. "Além de quantidade de espermatozoides que possibilitem uma gestação natural", explica a urologista. Alterações de fertilidade são multifatoriais e individuais.
'Sociedade masculinista afeta todos os corpos'
Meninos se tornam homens a partir de menor ou maior violência, mas sempre por uma socialização que os mais velhos ensinam aos mais jovens —"como ser homem de verdade", diz a psicóloga Helen Barbosa, professora da Universidade Federal do Rio Grande e pesquisadora em masculinidades há mais de 10 anos.
Essa sociedade masculinista afeta todos os corpos. Antes, a força física era o principal fator de distinção entre os homens; hoje, o foco passou para a aparência. O corpo visível se tornou um marcador de status social. Ou seja, mais importante do que ser forte é parecer forte. Com isso, a aparência já estigmatiza a pessoa por não corresponder a um padrão, independentemente de haver ou não impacto real na sua sexualidade.
Helen Barbosa
*O nome real foi omitido a pedido do entrevistado
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