O barato da corrida: por que sentimos euforia e bem-estar durante o treino

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Você já sentiu uma sensação de alegria, excitação e relaxamento durante a corrida? Nas primeiras vezes, ela até parece estranha. Você está lá, fazendo um esforço danado para manter o ritmo da passada e, de repente, o corpo é "inundado" por um imenso prazer. Correr fica mais fácil e gostoso.
Esse é o "runner's high", ou barato do corredor, uma resposta fisiológica ao desconforto gerado pela atividade física, para permitir que você suporte o incômodo e siga correndo.
"Quando realizamos uma atividade física, não apenas a corrida, ocorre a liberação de diversos neurotransmissores e hormônios no corpo que ativam áreas no nosso sistema nervoso que regulam dor, promovem euforia e bem-estar", diz Bruno Gualano, presidente do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
O neurotransmissor mais conhecido e comentado por gerar esse prazer é a endorfina. "Ela funciona como analgésico natural, reduz a sensação de dor e aumenta a sensação de euforia", explica o fisiologista. Mas elas não são as únicas a serem liberadas durante a prática esportiva.

Muito além das endorfinas
A presença das endorfinas realmente auxilia em todas essas alterações positivas no corpo de quem corre. Hoje, no entanto, sabe-se que o neurotransmissor não é o único envolvido nesse "barato" do esporte. "Existe também um grande papel dos endocanabinoides produzidos naturalmente pelo corpo, que trazem essa sensação de bem-estar durante e após a sua prática", afirma Páblius Braga, médico do esporte do Hospital Nove de Julho, da Rede Américas, em São Paulo.
Os endocanabinoides têm esse nome porque são similares aos compostos da cannabis. Sim, é isso mesmo o que você está lendo: o seu corpo é capaz de produzir substâncias que geram efeito semelhante ao da maconha. Esses compostos agem estimulando o sistema nervoso central e conseguem modular o humor, a sensação de dor e o prazer, gerando um estado de euforia, relaxamento e até a diminuição da ansiedade.
Estudos recentes mostram um grande papel dos endocanabinoides pois qualquer célula pode produzir essas substâncias e, com isso, a ação ocorre de forma mais efetiva no organismo Páblius Braga, médico do esporte do Hospital Nove de Julho, da Rede Américas, em São Paulo
Um desses estudos, realizado na Alemanha e publicado em 2021, bloqueou quimicamente a ação das endorfinas no corpo de corredores enquanto eles praticavam o esporte. Mesmo assim, ao final do treino, os participantes disseram estar sentindo a sensação de prazer e euforia que a corrida provoca. Com um detalhe: o nível de endocanabinioides no sangue estava alto. "Os endocanabinoides são candidatos melhores do que endorfinas para explicar a euforia do corredor em humanos", concluíram os pesquisadores.
Há ainda outros componentes químicos que também atuam na sensação de prazer e recompensa na corrida. São eles:
Dopamina: conhecida como o neurotransmissor da recompensa, reforça a sensação de conquista e prazer após o exercício.
Serotonina: relacionada ao bom humor e ao controle da ansiedade, seus níveis aumentam com a prática contínua de atividades aeróbicas, como a corrida.
Noradrenalina: eleva o estado de alerta e contribui para a sensação de energia e disposição mental durante e após a corrida.
BDNF (fator neurotrófico derivado do cérebro, do inglês "brain-derived neurotrophic factor"): secretado durante a prática de exercícios, especialmente pelos músculos, atua no sistema nervoso central melhorando a cognição, promovendo a plasticidade neural e favorecendo uma sensação de mente mais "clara".
Por fim, Gualano lembra ainda que, durante a corrida, ocorrem alterações no sistema nervoso autônomo, principalmente uma ativação do sistema parassimpático após o exercício. "Essa ativação provoca sensação de relaxamento, redução da ansiedade, melhora do humor e diminuição da frequência cardíaca, compondo, em conjunto, a sensação geral de bem-estar", diz.

Quando o "barato" acontece?
Bem, como muita gente sabe, o "runner's high" não vem logo de cara. Segundo especialistas, é preciso correr a uma intensidade moderada a alta por, pelo menos, 20 a 30 minutos para que os níveis de endocanabinoides atinjam o pico ideal.
Entretanto, essa duração pode variar conforme o condicionamento físico e a sensibilidade de cada pessoa. "Os efeitos são sentidos principalmente após correr por mais tempo. Mas os iniciantes podem experimentar mais disposição, ativação muscular e motivação mesmo com treinos mais curtos", afirma Braga.
De acordo com Diego Leite de Barros, educador físico e Diretor geral da DLB Assessoria Esportiva, de São Paulo, esse processo é fisiológico e natural em todos nós, independente da condição física. "A liberação destes hormônios é mais prevalente em atividades de média e longa duração e intensidade moderada", complementa.
Mas um fator importante é o ritmo da corrida: sessões muito intensas, que levam o corpo ao limite extremo, podem aumentar os níveis de cortisol (o hormônio do estresse) e atrapalhar a obtenção da sensação de prazer. Já corridas prolongadas em ritmo moderado favorecem a liberação dos neurotransmissores do bem-estar.
Pode virar vício?
Mais ou menos. "Biologicamente, não vejo elementos para falar em vício, mas podemos falar em relação disfuncional com o exercício", acredita Gualano. Nesse caso, a corrida seria uma espécie de "vício comportamental", em que algumas pessoas passam a buscar a sensação de euforia de forma tão incessante que ignoram sinais de exaustão, dores e até lesões, continuando a treinar de maneira compulsiva.
O problema é que, ao forçar o corpo além dos limites, o corredor se expõe a um treinamento excessivo, que pode gerar um estado de fadiga crônica, queda de desempenho e maior vulnerabilidade a infecções (já que sobrecarrega todo o organismo, incluindo o sistema imunológico).
No geral, no entanto, o que podemos experimentar é a sensação de falta após criar o hábito de correr. "Conforme criamos o hábito frequente do treinamento físico, temos uma adaptação do corpo a essa liberação hormonal, criando um padrão. É por isso que sentimos uma espécie de 'abstinência' quando paramos", afirma Diego Leite de Barros.

Como aproveitar sem prejudicar o corpo
Para desfrutar dos benefícios da corrida de forma equilibrada, vale buscar primeiro um especialista para avaliar a saúde geral. "É importante fazer uma boa avaliação clínica e de aptidão física. Com isso, será possível personalizar o treinamento e evitar os excessos", orienta Braga. "Lembrando que a empolgação com a corrida pode levar ao exagero e aumentar as chances de lesão esportiva", alerta.
Outras dicas importantes são:
Planejamento de treinos: intercalar dias intensos com dias de corrida leve (recuperação ativa) ou descanso total.
Escutar o corpo: respeitar sinais de fadiga, dores persistentes ou queda de rendimento.
Variedade de atividades: incluir musculação e exercícios de fortalecimento para reduzir o risco de lesões.
Definir metas realistas: valorizar o prazer da prática e não apenas a performance.
Por fim, é importante dizer que o "barato da corrida" é importante para que você continue a correr. "Embora muitas vezes se fale dos benefícios do exercício no longo prazo, como a melhora da saúde, o aumento da longevidade e a prevenção de doenças crônicas, o que realmente motiva as pessoas a manterem a prática regular é o prazer imediato proporcionado pelo exercício", afirma Gualano.
Ter essa consciência é fundamental para desenvolver uma relação positiva com a corrida —ou qualquer exercício físico— e colher os frutos, agora e nos próximos anos.
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