'É uma tortura': falta de medicações para epilepsia leva pacientes à UTI

"Meu filho foi parar na UTI porque faltou remédio." O desabafo é de Viviane Paiva, mãe de Afonso, 24, que sofre com epilepsia e viu sua vida virar de cabeça para baixo com a interrupção na distribuição do clobazam — medicação essencial que desapareceu de farmácias e do SUS desde o fim de 2024.

A crise de abastecimento de remédios essenciais como clobazam (Frisium e Urbanil) e fenobarbital (Gardenal) já afeta milhares de brasileiros com epilepsia. Segundo o Ministério da Saúde, estima-se que dois milhões de brasileiros sofram com os vários tipos da doença. A situação, que envolve a Sanofi, a nova fabricante Pharlab e a distribuidora Moksha8, preocupa neurologistas, associações e famílias de pacientes em todo o país.

O que aconteceu?

Em 28 de outubro de 2024, a Sanofi Medley Farmacêutica anunciou o desabastecimento temporário do Frisium e Urbanil. "Fizemos um contato dia 30 de outubro e a empresa respondeu que a produção passou para a empresa Opella, que faz parte do grupo Sanofi", diz Lecio Figueira, neurologista, vice-presidente da ABE (Associação Brasileira de Epilepsia) e membro da LBE (Liga Brasileira de Epilepsia).

De acordo com a ABE, a empresa afirmou que o abastecimento seria normalizado até fevereiro de 2025. "Em 9 de janeiro, a Sanofi nos disse que o princípio ativo já estava no Brasil e que a produção teria sido retomada. Com isso, a empresa disponibilizou um estoque emergencial das medicações. Mas em fevereiro os problemas para encontrá-las voltaram", explica o médico.

Em 27 de fevereiro de 2025, a Sanofi disponibilizou em seu site um comunicado sobre a transferência dos registros das medicações. A partir de então, Gardenal, Frisium e Urbanil seriam produzidos pela companhia Pharlab, com operações comerciais conduzidas pela empresa M8 (Moksha8).

Comunicado disponibilizado no site da Sanofi em 27 de fevereiro de 2025
Comunicado disponibilizado no site da Sanofi em 27 de fevereiro de 2025 Imagem: Reprodução/Sanofi

Cronologia da crise:

  • Outubro de 2024: Sanofi anuncia desabastecimento temporário de Frisium e Urbanil.
  • Janeiro de 2025: Empresa afirma que o princípio ativo já está no Brasil.
  • Fevereiro de 2025: Sanofi transfere oficialmente os registros à Pharlab. M8 (Moksha8) assume a distribuição.
  • Março de 2025: Pharlab diz que retomou a comercialização, mas pacientes continuam sem acesso.
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Remédios podem ser encontrados nas farmácias e no SUS. Preço das medicações varia entre R$ 16 e R$ 24. A receita utilizada para a prescrição e retirada dos medicamentos —popularmente conhecida como receita azul—, é controlada pela Anvisa. "Elas vêm com um número de série", explica o neurologista.

Questionada sobre o desabastecimento pela ABE, a Sanofi respondeu que a nova empresa não tinha "herdado" a licença de importação da matéria-prima para a fabricação dos medicamentos. Para isso, dependiam da Anvisa para a aprovação. A reportagem de VivaBem perguntou sobre o trâmite para a agência, que respondeu em nota que "nos dois casos [do clobazam e fenobarbital] não há nenhuma pendência em petições pós-registro que pudessem ocasionar desabastecimento".

A partir das mudanças, a ABE recebeu denúncias de pacientes de que não estariam encontrando as medicações nem pelo SUS e nem em farmácias em todo o Brasil. "Não é a primeira vez que isso acontece. Em 2014 e 2019, a Sanofi também deixou de fabricar temporariamente as medicações. Mas desta vez estamos muito mais preocupados", conta o vice-presidente da associação.

O Ministério da Saúde diz que não foi notificado pelos estados sobre desabastecimento das medicações. Em nota, o órgão diz que a aquisição e compra é de responsabilidade das Secretarias Estaduais da Saúde e do Distrito Federal. "Até o momento, não houve notificações oficiais de desabastecimento por parte desses entes."

Quais as consequências de ficar sem remédio?

Sem remédio, a crise vem. Segundo Figueira, a mobilização em prol da retomada da distribuição dos medicamentos se dá por sua importância para o tratamento de pessoas com epilepsia.

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Se a pessoa reduz a dose ou para de tomar, pode ter crise. Durante ela, é possível bater a cabeça, se machucar e até se queimar. E também há risco de SUDEP (sudden unexpected death in epilepsy), que é a morte súbita inesperada em pessoas com epilepsia. Lecio Figueira, neurologista, vice-presidente da ABE

História de Afonso Paiva exemplifica a fala do médico. O jovem de 24 anos foi parar na UTI de um hospital em Catalão, no interior de Goiás, cidade vizinha à Ipameri, onde vive com a família. Sua mãe, Viviane Paiva, diz que via o filho em sua melhor fase. Ele sofre com as síndromes de Lennox Gastaut e de Klein-Levin, que causavam nele centenas de convulsões ao dia.

"Menino esperto e muito ativo", como classifica a mãe, Afonso voltou a ter espasmos após trocar o clobazam —em falta— pelo nitrazepam, que também age como anticonvulsivante. O remédio não fez o efeito esperado e foi trocado pelo clonazepam, o famoso Rivotril.

Após 10 dias de uso [do Rivotril] vieram as crises mais curtas, aquelas crises em que ele não chegava a perder a consciência, mas se ele estivesse em pé, por exemplo, caía. Então a vida dele parou, e a nossa também, porque ele já não podia mais ficar sozinho, já não podia mais ficar em pé. Meu filho foi parar na UTI. Vivane Paiva, mãe de Afonso

Exames constataram que a falta do remédio clobazam causou a piora de Afonso.

'Mendigando remédio'

Cinco comprimidos de 10 miligramas de clobazam por dia. Outro caso é de Miguel Firmino Bernardo, 9, diagnosticado com encefalopatia epiléptica por uma mutação do gene SCN1A. Com um estoque de apenas mais dois dias, sua mãe, Ana Firmino, conta com o apoio de uma amiga com uma filha em condição parecida para doar duas cartelas.

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Estamos fazendo uma corrente e praticamente mendigando remédio nas farmácias. É uma tortura. Ana Firmino, mãe de Miguel

Uma cartela com 20 comprimidos equivale a quatro dias de tratamento de Miguel. Desde que nasceu, o menino só teve suas crises controladas em setembro de 2024 —um mês antes do início da crise de abastecimento anunciada pela Sanofi.

Família teme que as crises de Miguel retornem. Segundo a mãe, os últimos sete meses de sucesso da medicação permitiram que o menino não tivesse crises convulsivas.

A última que ele teve durou 1h40 e ele foi socorrido por um de seus terapeutas. Ele não é criança de pronto-socorro, ele é criança que vai direto pra UTI. Temo que se ele ficar sem remédio todo esse processo de nove anos vai ter ido por água abaixo. Ana Firmino, mãe de Miguel

Procura em vão. Além de procurar nas farmácias da Mooca, bairro onde mora na zona leste da capital paulista, Ana também busca em outras regiões. "Meu marido rodou todas as farmácias e não encontrou. Em uma, achou apenas uma cartela, mas minha receita é de seis. Se eu pego uma só, eu perco a receita e preciso pedir outra. Ou seja, perco as cinco outras cartelas que poderia comprar", explica.

Mesmo pânico toma conta da publicitária Natália de Camargo Lopes, 43, que mora na cidade de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Ela conta que conseguiu um estoque de clobazam para aproximadamente cinco meses de tratamento.

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Com alto risco de SUDEP, ela teme ficar sem a medicação que tanto se adaptou ao seu corpo e estilo de vida. Além disso, ainda se preocupa com outras pessoas que passam por situações mais delicadas. "Tenho condições de comprar o medicamento e pagar um médico particular para pedir minhas receitas. E quem não tem? Quem mora na periferia faz o quê?", indaga Natália.

Como agem o clobazam e o fenobarbital

Crises epilépticas são causadas por uma desordem na comunicação entre os neurônios, que se comunicam por meio de impulsos elétricos e sinais químicos. Quando essa atividade se torna desorganizada e assíncrona, o cérebro pode gerar uma crise epiléptica.

Fenobarbital e clobazam agem nos neurônios de forma inibitória. "Através de substâncias químicas chamadas de neurotransmissores, como o GABA (ácido gama-aminobutírico), reduzem a chance de atividade elétrica anormal no cérebro gerar crises epilépticas", é o que explica Rafael Valeriano, neurologista pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas).

"Existem outras opções de medicações anticrise, mas nem todos os pacientes vão se adaptar às substituições de forma adequada", diz o especialista. "As substituições devem ser feitas preferencialmente de forma lenta e gradual", completa.

"Cenário ideal é não haver falta", diz Valeriano. Ele explica que o desmame abrupto pode resultar na ocorrência de sintomas de abstinência, como tremores, mudanças de humor, insônia, além da ocorrência de crises epilépticas ou até estado de mal epiléptico (que são crises epilépticas que não cessam espontaneamente), o que pode levar a condições graves de saúde.

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De acordo com Figueira, da ABE, não existem substitutos idênticos ao clobazam e fenobarbital. "No Brasil, a única a produzir medicações com as substâncias encontradas nesses medicamentos é a Sanofi. Não existem genéricos ou similares", explica. "Se a substituição fosse fácil, nós, neurologistas, já estaríamos fazendo", completa.

O que dizem as empresas

A Pharlab, nova responsável pela fabricação, diz que o desabastecimento se deve à cadeia de suprimentos, e não à troca do registro. "Vale ressaltar que o processo de transferência de titularidade não tem relação com o desabastecimento do produto no mercado, uma vez que este já havia sido comunicado a Anvisa pela antiga detentora do registro (Sanofi)".

Reconhecemos a importância crucial desses medicamentos no tratamento de muitos pacientes e estamos empenhados em normalizar o fornecimento o mais rápido possível. A comercialização foi retomada no mês de março de 2025. Destacamos que o produto continua sendo fabricado no país e que este cenário estava relacionado a questões associadas às cadeias de suprimentos dos medicamentos e não tem qualquer relação com a segurança, qualidade, ou com a transferência do produto. Pharlab, em nota

Procurada pela reportagem de VivaBem, a Sanofi, que é ex-responsável pela fabricação do medicamento, também se manifestou. "Reforçamos que desde a transferência dos medicamentos, em fevereiro de 2025, as definições relacionadas à comercialização e distribuição dos produtos são de responsabilidade das novas empresas detentoras dos produtos", diz a empresa, em nota.

Já a M8 (Moksha8), responsável pela distribuição, lamentou o ocorrido. "Durante esse período de desabastecimento temporário do medicamento, que pode variar em cada região do país, dependendo do estoque e do processo de distribuição logística local, a Sanofi e a M8 estão trabalhando em conjunto no atendimento ao paciente e ressaltamos que existem alternativas terapêuticas disponíveis no mercado. Por isso, é fundamental que consulte o seu médico para avaliar a melhor opção para o seu tratamento", diz a empresa, em nota.

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O Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), que representa os secretários de saúde de todos os estados e do Distrito Federal, diz que o fornecimento regular está comprometido devido aos problemas na indústria farmacêutica. O órgão também apontou que a formalização das intenções de compras do clobazam pelos estados já foi realizada, mas não datou a normalização do estoque. Sobre o fenobarbital, diz que é de responsabilidade dos municípios por meio do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde), que foi procurado, mas ainda não se pronunciou. O espaço segue livre para manifestação.

A VivaBem, a ABE diz estar preparando provas para entrar com um recurso para que o Ministério Público investigue a situação. "As empresas responsáveis pelo clobazam e fenobarbital precisam explicar a seus pacientes o que está havendo", afirma Figueira.

Eu sou a última pessoa que deveria estar batendo nas empresas. Sou neurologista, trabalho com eles e às vezes faço consultoria para empresas . Mas isso que está acontecendo é um verdadeiro absurdo. Lecio Figueira, neurologista e vice-presidente da ABE

Enquanto empresas e órgãos regulatórios não apresentam soluções claras, famílias como a de Afonso e Miguel seguem vivendo um pesadelo à espera de comprimidos que trazem qualidade de vida.

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