Reação rara e grave o deixou sem pele: 'Sentia sendo queimado vivo'

Carlos Betonio tem 50 anos, mora em Sebastião Barros, no Piauí, é casado e pai de quatro filhos. Há cerca de dois meses, enfrentou uma experiência médica rara após receber uma transfusão de sangue durante um tratamento no Distrito Federal, o que comprometeu seriamente sua vida.

Em abril de 2023 ele foi diagnosticado com câncer de próstata e passou por uma cirurgia no mesmo ano, seguido por um tratamento até o final de 2024, quando sentiu que seu quadro estava sendo agravado ao começar a sentir fortes dores nas costas. Em busca de um melhor atendimento médico, em janeiro de 2025 ele saiu de sua cidade e foi para Brasília tratar de seus problemas de saúde.

No dia 7 de janeiro de 2025, foi internado na UPA de Sobradinho e, diante da gravidade do seu estado, transferido para uma UTI em Ceilândia, onde permaneceu por sete dias. Após receber alta da UTI, foi encaminhado ao Hospital Regional de Sobradinho, e deu continuidade ao tratamento iniciado durante a internação. Esse tratamento incluía três sessões de hemodiálise por semana. Um mês depois, exames apontaram plaquetas baixas, e foi necessário realizar uma transfusão de sangue. A VivaBem, Carlos contou sua história.

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"Sentia como se estivesse sendo queimado vivo"

"Me aplicaram duas bolsas de sangue e, antes de terminar a segunda, comecei a sentir uma coceira forte no corpo todo e a pele começou a ficar avermelhada. Achei que fosse uma reação passageira, mas os dias passaram e minha aparência começou a mudar cada vez mais. Pequenos caroços vermelhos surgiram, e a coceira se tornou insuportável. Comecei a tomar antialérgicos leves, mas não ajudavam em nada. Alguns dias depois, senti que minha garganta estava começando a fechar, fiquei com dificuldades para falar e respirar.

Fui levado à emergência imediatamente, depois de alguns exames, me diagnosticaram com a síndrome de Stevens-Johnson, que evoluiu para a necrólise epidérmica tóxica, até aquele momento eu não fazia ideia do que era isso.

Toda a minha pele começou a descascar. Sentia como se estivesse sendo queimado vivo. Enquanto meu corpo queimava de dentro pra fora, acredito que fui ao purgatório e voltei. Durante aqueles momentos, tive alucinações e confundi a realidade com confusões mentais, ia para lugares que nunca tinha visitado e via cenas na minha frente de coisas que nunca aconteceram. Era muito estranho, nunca tinha sentido qualquer coisa parecida com isso.

Depois de sete dias na UTI, fui transferido para a clínica médica, pois os médicos acreditaram que aquela primeira descamação da pele seria a última e que eu ia melhorar logo, mas uma semana depois as queimaduras do corpo e ardência aumentaram para um nível extremo. Nesta segunda ida à UTI começaram a aparecer bolhas grandes de queimaduras no corpo, fiquei internado na emergência por mais 18 dias. A essa altura o ardor da pele era tão grande que eu não conseguia entrar mais embaixo do chuveiro e tomar um banho normal, quando a água batia na pele eu sentia muita dor, ao ponto de chegar a gritar.

Cuidados hospitalares

Fui encaminhado para uma consulta com um especialista em queimaduras, na Asa Norte. Lá, os médicos receberam instruções de como deveriam seguir com meu tratamento. A partir desse auxílio, começaram a me dar banhos especializados para queimaduras graves, sempre sedado para suportar a dor, tomava remédios fortes que me faziam dormir e não ver nada do que estavam fazendo comigo.

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Em uma dessas vezes, para tomar banho no leito, fui sedado às nove da manhã e só acordei às três da tarde, sem ao menos ter tomado café ou comido qualquer coisa. Depois disso, uma técnica que me acompanhava contou que naquele dia pensaram em me acordar mais cedo, mas os médicos proibiram, pois mesmo inconsciente eu ainda gemia de dor após a limpeza, pois a pele arrancava cada vez mais.

Nesta segunda ida à UTI, minha pele foi arrancada, me deixando mais exposto e sensível, da cabeça aos pés. Minha aparência era muito semelhante a de pessoas que são queimadas por fogo. A diferença era que o meu próprio corpo estava fazendo aquilo comigo. Para aliviar tudo o que sentia, passei a tomar morfina 24 horas, pois era o único medicamento que diminuía os sintomas das queimaduras.

Carlos, antes de desenvolver a síndrome, acompanhado da esposa, Mauricelia Cunha
Carlos, antes de desenvolver a síndrome, acompanhado da esposa, Mauricelia Cunha Imagem: Arquivo Pessoal

O desafio de suportar o tratamento

É difícil falar sobre tudo o que senti naqueles dias, não entendia o porquê de estar passando por tudo aquilo. Em certo ponto, os médicos pensaram em me colocar uma sonda, pois minha garganta e boca estavam muito queimadas e machucadas e eu sentia dificuldade para comer, ficando mais fraco ainda.

Quando fui informado dessa possibilidade, pedi para chamarem a nutricionista que me acompanhava e pedi para ela que me mandasse comidas pastosas para eu tentar me forçar a comer um pouco mais e evitar que me colocassem sonda ou qualquer coisa semelhante. Passei alguns dias comendo sorvete natural e comidas pastosas até fortalecer um pouco mais o meu corpo. Sempre lutando e fazendo esforços para que não fosse preciso utilizar métodos invasivos no meu corpo, como uma intubação.

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Em alguns momentos, senti que não conseguiria sobreviver, o calor do corpo e todo o ardor me levavam a um ponto extremo de cansaço físico e mental. Depois que eu estava melhor, uma das enfermeiras, que me acompanhou desde o início, chegou a dizer que ia embora do hospital sem expectativas de que fossem me encontrar vivo no dia seguinte.

A minha fonte de força durante todos aqueles dias foi pensar na minha família e em todos os amigos que estavam torcendo e rezando pela minha recuperação. Nos piores momentos cheguei a pensar em desistir de tudo, perdia a força para continuar lutando pela minha sobrevivência, mas me lembrar deles me fortalecia e eu voltava atrás, pedindo para Deus me curar e me tirar logo daquela situação.

Passar o dia bebendo água também foi uma das minhas salvações nesse período, era um grande alívio quando eu sentia a água gelada descendo pela minha garganta, meu corpo inteiro se refrescava. Toda hora pedia para alguém encher meu copo e bebia por um canudo muitos litros por dia, que me mantinha sempre hidratado.

Aos poucos, os banhos especializados e todo o cuidado e tratamento que recebi no hospital foram me fazendo voltar ao normal. Após 71 dias internado, recuperei parcialmente a função renal e deixei de fazer hemodiálise, mas algumas sequelas permanecem: minha pele ficou extremamente sensível e meus dentes e unhas foram comprometidos.

Os médicos não conseguiram identificar até hoje qual substância causou essa reação no meu corpo. Por isso ainda não posso mais tomar diversos medicamentos essenciais no meu tratamento contra o câncer. Agora, além de retomar o combate aos tumores, preciso lidar com as limitações que essa síndrome trouxe para a minha vida".

Síndrome de Stevens-Johnson e necrólise epidérmica tóxica

A síndrome de Stevens-Johnson é uma reação cutânea grave a medicamentos, conforme explica a médica pós-graduada em dermatologia, Suamy Brelaz, do grupo Mantevida.

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A síndrome de Stevens-Johnson e a necrólise epidérmica tóxica são formas severas de reações a medicamentos, caracterizadas pela necrose e descamação da epiderme. A síndrome envolve menos de 10% da superfície corporal, enquanto a necrólise epidérmica tóxica pode atingir mais de 30%. Os principais fatores desencadeantes são antibióticos, anticonvulsivantes, anti-inflamatórios e infecções virais ou bacterianas. O tratamento deve ser imediato e inclui suporte intensivo, hidratação agressiva e, em alguns casos, imunoterapia.
Suamy Brelaz

A médica destaca que os primeiros sinais da síndrome de Stevens-Johnson incluem febre, mal-estar, dor de garganta e conjuntivite, seguidos pelo surgimento de manchas vermelhas que evoluem para bolhas e descamação da pele.

"A progressão pode ser rápida e, se não tratada, evoluir para a necrólise epidérmica tóxica, aumentando o risco de complicações graves, como infecções secundárias, insuficiência respiratória e danos oculares irreversíveis. O diagnóstico precoce e a suspensão imediata do medicamento causador são fundamentais para reduzir a gravidade da doença", alerta.

Ela reforça que a reexposição ao medicamento desencadeante deve ser evitada, e, em alguns casos, testes genéticos podem ser recomendados para avaliar o risco antes do uso de determinadas substâncias.

"O tratamento envolve suporte intensivo, com hidratação agressiva, imunoterapia e, em situações graves, acompanhamento em unidades especializadas. O avanço das pesquisas tem proporcionado novas abordagens terapêuticas, como o uso de imunoglobulinas e inibidores do TNF, oferecendo melhores perspectivas para os pacientes", conclui.

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