'Tive tumor, trato doença sem cura e amputei pés e mãos após meningite'

"Acho que fui escolhida por Deus", diz a estudante de veterinária Luana Scorza, 34, no início da entrevista a VivaBem. Em seguida, conta que em nove anos teve três problemas de saúde: um tumor cerebral seguido da descoberta de uma doença autoimune e, em 2023, a amputação dos pés e das mãos após uma grave meningite.

Em 2014, aos 24 anos, Luana começou a ter fortes dores de cabeça, que não passavam com remédio algum. Ao investigar, veio o diagnóstico de um tumor cerebral. A ordem era fazer a cirurgia para removê-lo junto à biópsia, que identifica o tipo da lesão. Por ser benigna, Luana não precisou de radioterapia ou químio após operar.

Mas, dias depois, um susto: seu xixi estava laranja. A jovem passou um mês e meio internada entre descobrir e tratar uma hepatite autoimune, quando o sistema de defesa do corpo ataca as células do fígado causando inflamação e alterando a função do órgão. Após a alta, sua vida seguiu normal, evitando os anti-inflamatórios, gatilhos para a doença.

Continuei seguindo a vida, voltei a fazer atividade física, inclusive correr, que sempre gostei muito.
Luana Scorza, estudante de veterinária

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Meningite

Em 2021, Luana se separou e voltou a morar com os pais. Ela retornou à casa em uma sexta-feira, e, no domingo, seu pai morreu devido a um quadro de saúde que se agravou. Luana viveu ambos os lutos juntos. "Nem tive tempo de ficar triste, porque minha mãe ficou muito mal e tirei forças de onde não tinha por ela e pelo meu irmão, tive muito medo de ela ter depressão", conta.

A carioca deixou a carreira de jornalista para cursar medicina veterinária, que diz sempre ter sido o seu sonho
A carioca deixou a carreira de jornalista para cursar medicina veterinária, que diz sempre ter sido o seu sonho Imagem: Arquivo pessoal

Quando a vida parecia de novo nos eixos, em julho de 2023, veio a mais intensa das mudanças com o diagnóstico de uma meningite —como são conhecidas as inflamações nas meninges, membranas que revestem o cérebro, causadas principalmente por vírus e bactérias.

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Luana sentiu primeiro um incômodo nos rins, mas ignorou pensando ser a proximidade da menstruação. No dia seguinte, porém, acordou com febre alta e uma forte dor no pé que a impedia de pisar no chão. Ela perdeu a lucidez e lembra só de algumas cenas daquela manhã.

Sabe que chegou ao hospital quase morta, com a pressão muito baixa. "Lembro de flashes, porque estava quase inconsciente. Fui para o CTI [Centro de Terapia Intensiva] e logo precisei intubar. Não sabia que estava grave, falei com o meu irmão e minha mãe sem saber que poderia ser a última vez."

É característica de alguns tipos graves da doença terem uma rápida evolução e foi o que aconteceu com ela. "Isso depende muito da pessoa, idade, fatores de risco e agente infeccioso", explica Márcio Nehab, pediatra e infectologista do IFF/Fiocruz (Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro.

Já vi óbitos em 4 horas, [a evolução] pode ser fulminante. A meningite tem um curso de mais ou menos 48 horas, começando com sintomas constitucionais como febre, dor de cabeça, rigidez na nunca, e pode levar até à convulsão e o coma. Márcio Nehab, pediatra e infectologista

Durante o coma

Luana estava em estado muito grave após ter falência múltipla de órgãos (quando a partir de dois órgãos vitais param de funcionar) devido à infecção generalizada, a sepse, com menos de um dia no CTI.

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Sua evolução e os sintomas, sobretudo a febre, foram o alerta para os médicos suspeitarem de uma meningite. Em casos assim, a urgência é em começar o tratamento, e não em confirmar o diagnóstico, o que pode levar alguns dias —mas os testes são feitos, é claro.

A estudante recebeu antibiótico. As bactérias costumam diminuir, mas a inflamação causada pela interação entre elas e o organismo, não. Esse é o grande perigo à saúde, pelo potencial de causar sequelas e levar à morte. E é imprevisível: cada pessoa reage de um jeito.

"Essa interação gera uma resposta inflamatória do corpo extremamente exacerbada, incompatível com um quadro de infecção comum. E, na grande maioria dos casos, leva à queda da pressão, que é um problema", explica Márcio Nehab.

Estudante perdeu 18 kg durante os três meses de internação: 'sai de 68 para 50 kg. Tinha um momento que eu pesava 80 kg, porque meus rins pararam de funcionar'
Estudante perdeu 18 kg durante os três meses de internação: 'sai de 68 para 50 kg. Tinha um momento que eu pesava 80 kg, porque meus rins pararam de funcionar' Imagem: Arquivo pessoal

Luana ficou em coma por 16 dias. Sua primeira lembrança ao acordar é a de uma enfermeira no quarto, cantando baixo, enquanto a sua consciência oscilava entre o sono e o despertar. "Abri os olhos, mas não conseguia sustentar." Ao retomar melhor a consciência, se deu conta de estar intubada.

Fiquei dois dias com o tubo na boca. Estava consciente e com aquele tubo, foi bem desconfortável.

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Notícia da amputação

Ainda intubada, Luana soube ter doença meningocócica (ou meningococcemia). É a complicação mais grave da meningite associada à Neisseria meningitidis, o meningococo, e ocorre quando a bactéria chega à corrente sanguínea. Isso causa o efeito em cascata no corpo, com a sepse e a falência dos órgãos "nobres" —cérebro, pulmões, coração, rins e fígado.

Luana notou nos dias seguintes que seus pés e mãos estavam enfaixados, e os médicos a contaram que ela amputaria os membros. Essa é a complicação mais comum da doença meningocócica junto à surdez, perda da visão e problemas neurológicos. Até 20% dos sobreviventes podem ter sequelas.

"O oxigênio do sangue não chega direito às extremidades do corpo como maneira de preservar a função dos órgãos nobres. É um pensamento como: preservo as partes mais importantes para a manutenção da vida. Essa falta de oxigênio e/ou trombose pode levar às amputações", explica Nehab.

"Na semana seguinte a acordar do coma, como estava com as mãos e os pés enfaixados, eu olhava e chorava, porque fui entendendo a gravidade", lembra Luana. E os membros doíam, mesmo sem fluxo de sangue. A estudante dormia só com a ajuda de remédios devido ao incômodo, semelhante às sensações de choques e apertões. "É muito doído, seu membro está morrendo", conta.

Ela ficou um mês no CTI e, ao sair, esperou mais dois meses para fazer as amputações, mesmo sabendo que seus pés e mãos tinham danos irreversíveis. Isso foi necessário para dar tempo de as lesões delimitarem.

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Foi um momento difícil e de muita dor física, mas eu sabia que aquilo que eu tinha não eram mais minhas mãos e meus pés, já não me serviam de nada.

Luana hoje em dia, mais de um ano após as amputações
Luana hoje em dia, mais de um ano após as amputações Imagem: Arquivo pessoal

Desejo de ser atleta

Luana ficou três meses internada. Diz que em meio à turbulência teve o pensamento de reagir ainda no primeiro mês, ao ser posta sentada na cama e não conseguir sustentar o tronco. "Pensei 'essa não sou eu, preciso reagir'", diz ela, que sempre teve uma vida ativa.

Minha mãe perdeu uma filha de câncer, quando eu ainda não era nascida. Então, ela ficou muito abalada com a gravidade do meu quadro. Eu falei: 'mãe, tô viva. Pode tirar os pés, as mãos, a vida continua'. Eu não estava sendo forte, mas tinha que enxergar a luz do fim do túnel.

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De volta à casa, a estudante passou uma semana sem querer se olhar no espelho. Temia o choque ao ver um corpo, ao mesmo tempo, em que coexistia a pulsão de voltar a viver. Prevaleceu o segundo sentimento, que afirma ser sua principal característica desde pequena. "Não sei de onde vem isso, mas só peço para Deus que nunca pare."

Foram 32 anos com as minhas mãos e os meus pés sem a escolha de perdê-los. Mas eu quero viver, mesmo sem eles.

Retomou a sua rotina no ano passado, de volta aos exercícios e aos estudos. Foi à faculdade primeiro de cadeira de rodas e, agora, usa próteses.

Também colocou em prática um desejo compartilhado ao irmão ainda no hospital: o de se tornar paratleta. "Já sentia ali que precisava fazer algo com o que me aconteceu. É a Luana como indivíduo, pessoalmente falando, longe de profissão."

Agora, ela faz campanhas de arrecadação para custear próteses próprias para corrida, já que as suas não são adequadas ao impacto do esporte.

Ela mantém uma rotina ativa e se dedica ao desejo de virar para-atleta, com o objetivo de ter próteses de corrida
Ela mantém uma rotina ativa e se dedica ao desejo de virar para-atleta, com o objetivo de ter próteses de corrida Imagem: Arquivo pessoal
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Vacina é a melhor prevenção contra meningite

É recomendado fazer a vacinação casada para se proteger contra o maior tipo de meningites —sejam elas virais ou bacterianas, por exemplo. As vacinas disponíveis no calendário do Ministério da Saúde são:

  • Vacina meningocócica conjugada sorogrupo C: protege contra a doença meningocócica causada pelo sorogrupo C;
  • Vacina pneumocócica 10-valente (conjugada): protege contra as doenças invasivas causadas pelo Streptococcus pneumoniae, incluindo meningite;
  • Vacina meningocócica ACWY: protege contra quatro tipos diferentes de bactérias causadoras da meningite;
  • Pentavalente: protege contra as doenças invasivas causadas pelo Haemophilus influenzae sorotipo B, como meningite, e contra a difteria, tétano, coqueluche e hepatite B;
  • BCG: protege contra as formas graves da tuberculose.

Na rede particular, existe ainda a vacina contra a meningite B, indicada dos dois meses aos 50 anos. Pessoas em contato com quem testou positivo para a condição devem fazer um tratamento preventivo com antibióticos, como foi o caso dos familiares de Luana.

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