Eva decidiu morrer: livro narra suicídio assistido de brasileira na Suíça

A filósofa brasileira Eva* teve uma vida próspera, feliz e independente. Até que as sequelas de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) mudaram o seu curso, fazendo-a perder quem era e quem desejava ser. Aos 74 anos, ela decidiu não viver mais e optou pelo suicídio assistido na Suíça —o procedimento é crime no Brasil.

Sua jornada até a finitude é o fio condutor do livro "O Dia Em Que Eva Decidiu Morrer" (Editora Vestígio), do jornalista Adriano Silva, que chegou às livrarias neste mês. O autor quer que a obra expanda o diálogo entre os brasileiros sobre a autodeterminação no fim da vida, o que considera uma "constituição de direito", e não uma ameaça.

Ninguém pode ser obrigado por lei a morrer sofrendo. E o livro tenta, a partir da história da Eva, fazer o público brasileiro entender que essa é uma questão humana universal sobre o desejo de não ter uma morte horrível. Adriano Silva, escritor

"Há muitas fantasias, informações falsas ou baseadas no medo a respeito do tema", diz Silva. "Não somos um país liberal, progressista, nesse aspecto da autodeterminação. Temos o interesse de liberdade do indivíduo totalmente sonegado. Creio que essa é uma chance de começarmos a falar sobre isso", completa o autor.

Eutanásia e suicídio assistido são diferentes

Termos dos direitos de fim de vida são muito confundidos. Primeiro, é preciso saber que suicídio assistido e eutanásia são diferentes. É errado usá-los como sinônimos e há países que permitem só um deles.

O suicídio assistido é quando o médico prescreve uma substância letal, mas a administração é feita pelo paciente. Já na eutanásia, a responsabilidade é do profissional. Morte voluntária assistida, conhecida pela sigla MVA, engloba ambos os procedimentos.

A Suíça, onde Eva realizou o procedimento, permite desde 1942 somente o suicídio assistido. Estrangeiros e pessoas sem doenças terminais podem fazê-lo por lá, mas o processo nunca é imediato: há uma fase intensa de avaliação médica, com paliativistas, psiquiatras e psicólogos. Essa etapa é dupla para residentes de outros países, que devem apresentar análises dos seus médicos e dos profissionais locais.

Quem escolhe a morte assistida?

Eva teve sequelas físicas e neurológicas após o AVC. Além de dificuldades para andar, conversar e comer, a cognição foi afetada, com problemas no raciocínio, prejudicando uma de suas principais características: a profundidade de análise nos estudos e nas orientações aos alunos. Sem isso, ela perdeu a identidade.

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A filosofia não era só um interesse —era sua vida. Por isso a existência perdia o sentido para Eva —o AVC não acabara apenas com sua capacidade de realizar essa ou aquela atividade; ele tinha esmigalhado sua identidade. Trecho do livro "O Dia Em Que Eva Decidiu Morrer" (pág. 30)

Capa do livro 'O Dia Em Que Eva Decidiu Morrer', publicado pela Editora Vestígio
Capa do livro 'O Dia Em Que Eva Decidiu Morrer', publicado pela Editora Vestígio Imagem: Divulgação/Editora Vestígio

Ela sentia fortes efeitos colaterais dos remédios e teve uma convulsão ao parar de tomá-los por conta própria. Foi quando percebeu que não teria como retomar a vida que levava, e veio o desejo pela finitude.

Estabelecia-se ali, para Eva, em definitivo, a convicção de que não havia mais o que fazer. De que ela tinha chegado ao seu limite. De que não fazia mais sentido. Na base de tudo, havia a consciência de que estava permanentemente incapacitada pela afasia em áreas fundamentais da sua vida. Se continuasse com o tratamento, contra as suas convicções, expandiria seu sofrimento —que era constante— com as reações adversas dos medicamentos que detestava. Se parasse com os remédios, respeitando os sinais do seu corpo, aumentaria o risco de sofrer complicações importantes —como aquela convulsão, dias depois de ter sacado o anticonvulsivante da sua rotina. A todas essas, vivia sob a ameaça de novos acidentes vasculares, que poderiam transformá-la num vegetal, como havia acontecido com seu pai. O tênue fio que a mantinha considerando a hipótese de seguir existindo se rompeu ali. Trecho do livro (págs. 88 e 89)

Com uma incapacidade irreversível, Eva integra um dos três grupos que mais buscam pela morte assistida. Os outros dois são aqueles com uma doença terminal ou sem cura e idosos com qualidade de vida reduzida por limitações da idade, como perda da mobilidade, dos sentidos e, por consequência, da autonomia.

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"Eles pensam: eu já vivi a minha vida, minha vida já aconteceu. O que tem pela frente não me interessa e não é digno. O suicídio assistido se baseia muito no conceito da dignidade, que é o bem-estar humano", comenta o jornalista Adriano Silva.

Eva lamentava a impossibilidade de obter ajuda profissional. Queria morrer de modo rápido e indolor, não de maneira violenta ou dolorosa. Queria encerrar sua vida de forma discreta e pacífica, não de modo dramático ou sanguinolento. 'Seria tão bom poder dormir e não acordar. Tão fácil. Por que não pode ser assim?', ela dizia. Trecho do livro (pág. 91)

Questão de liberdade individual

Para Silva, garantir o direito de decidir como morrer reforça a liberdade individual. "Se alguém não acredita nesse caminho, é só não tomar. Da mesma forma que não posso decidir por outras pessoas, elas não podem decidir por mim."

"Autodeterminação é o direito de a pessoa tomar decisões soberanas a respeito de si mesma. A gente toma um milhão de decisões ao longo da vida, algumas delas nos colocando em risco, como o jeito que a gente come, trabalha, se diverte. Nós temos o direito de tomar essas decisões também sobre a nossa morte", diz o escritor.

As opções junto à morte assistida são:

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Distanásia: está no outro extremo, quando os recursos da medicina são usados para prolongar a vida;

Ortotanásia: conhecida como "a morte no tempo certo", em que a pessoa está sob cuidados paliativos.

O marinheiro espanhol Ramon Sampedro tornou-se símbolo pelos direitos do fim de vida após conseguir fazer o suicídio assistido em 1998, aos 56 anos. Ele ficou tetraplégico aos 30, depois de um acidente ao mergulhar
O marinheiro espanhol Ramon Sampedro tornou-se símbolo pelos direitos do fim de vida após conseguir fazer o suicídio assistido em 1998, aos 56 anos. Ele ficou tetraplégico aos 30, depois de um acidente ao mergulhar Imagem: Gamma-Rapho via Getty Images

E o Brasil?

Silva crê que a legalização no Brasil não levaria a um fluxo de mortes assistidas. Na Suíça, por exemplo, um terço das pessoas desiste do procedimento ao conquistar o acesso. Segundo ele, o abandono da ideia é explicado pela perda da urgência e da ansiedade ao garantir a possibilidade de fazê-lo quando quiser.

"O fato de ter acesso legal pode ter efeito de redução no número de pessoas em busca, porque ela sabe que quando a situação 'apertar', terá acesso. Você sabe onde está a saída de emergência. Agora, se você não tem saída de emergência, antecipa a decisão que poderia ser melhor pensada", diz o jornalista.

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Ele afirma, no entanto, que os caminhos pela liberação são mais tortuosos onde a morte e temas da liberdade individual ainda são tabus. É o caso do Brasil. Para se ter ideia, a morte assistida já é tida como um "seguro de vida" por moradores de alguns países: é a garantia de um fim sem sofrimento em caso de doença incapacitante no futuro.

"Acho que a gente é um povo um pouco supersticioso, temos esse medo de falar, mencionar a morte. É como se não falar ou pensar fizesse a gente não morrer. Como resultado, o Brasil é um dos piores países do mundo para morrer", observa ele. Realmente, em 2022, o Brasil foi eleito o terceiro pior país para se morrer em uma lista com 81 participantes, mostrou estudo publicado no Jornal de Manejo da Dor e Sintomas. O levantamento considerou aspectos como expectativa de vida, conhecimento da população sobre cuidados paliativos, gastos em saúde e controle da dor dos pacientes.

O pano de fundo da discussão [sobre morte assistida] é uma disputa de poder entre instituição e indivíduo. Em países mais conservadores, as instituições não abrem mão de controlar o indivíduo. Estou falando do Estado, da Igreja, da polícia, da medicina, da Justiça. E o Brasil é um país muito conservador quando falamos, por exemplo, de orientação sexual, identidade de gênero, direito reprodutivo das mulheres, consumo de substâncias. Adriano Silva

*A personagem teve o nome preservado a pedido de sua família, que compartilhou a história sob condição de manter o anonimato dos envolvidos.

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