Morrer de tanto correr? O que acontece quando você faz uma maratona

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Em novembro passado, um homem morreu durante uma prova de corrida em São Paulo. No fim de janeiro, outro atleta amador passou mal enquanto corria e morreu na metade do percurso. Ambos faziam uma meia maratona, o trajeto de 21 km.
Os eventos são raros, mas chamam atenção e levantam dúvidas sobre a segurança da prática esportiva. De modo geral, correr reduz a mortalidade por todas as causas e os fatores de risco cardiovascular, mesmo que se corra pouco e devagar. Perigoso mesmo é o sedentarismo, que está entre as dez principais causas de morte e incapacidade, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde).
Apesar disso, é fato que o treino e a corrida de longa distância causam alterações metabólicas e fisiológicas no organismo. Se não estiver preparado, o corpo pode sofrer consequências sérias. O ponto-chave é evoluir aos poucos, preparar-se e saber que correr no limite das forças tem esse quê de superação e sofrimento.
A seguir, veja o que acontece no corpo quando se corre longas distâncias, como uma maratona.

Haja coração!
Basta dar as primeiras passadas para o coração acelerar e os vasos sanguíneos se dilatarem. Com isso, mais sangue e oxigênio chegam aos músculos para que suportem o esforço, e mais nutrientes vão para as células.
Esse fluxo aumentado gera adaptação do coração, que se torna mais eficiente. Mas se não faço isso de forma preparada, cadenciada, pode ter arritmia. Flávia Magalhães, médica do esporte e nutricionista
Magalhães faz parte da equipe médica da Maratona do Rio desde 2009 e já viu atletas sofrerem parada cardíaca, convulsão e pressão baixa. Para esses casos, é importante que a organização do evento se atente aos pontos de hidratação, planeje as intervenções e crie fluxos de atendimento rápido.
Morte cardíaca súbita em provas de longas distâncias é um evento muito raro. No livro "Correr: o Exercício, a Cidade e o Desafio da Maratona", o médico Drauzio Varella explica que os episódios estão geralmente ligados a problemas prévios ainda não diagnosticados, como anomalias congênitas ou alterações anatômicas que interferem no fluxo sanguíneo. "Mesmo quando não causam sintomas na vida diária, tais anormalidades podem provocar infartos, caso o coração seja submetido a esforços intensos", escreve.
Para evitar o susto, é essencial aumentar a intensidade e a distância aos poucos. Se a pessoa não se adapta e decide correr longas distâncias, o corpo não vai aguentar o estresse inesperado. Além do treinamento, vale a máxima de que descanso também é treino.
Respire fundo
O funcionamento do sistema respiratório também acelera para que o corpo consiga captar oxigênio e liberar gás carbônico mais rapidamente. No longo prazo, o músculo diafragma se fortalece, levando a uma respiração mais profunda e eficiente.
A corrida certamente melhora a função pulmonar, mas pessoas pouco condicionadas tendem a ficar ofegantes e sentir o desgaste em menos tempo. A respiração irregular e superficial pode não levar oxigênio suficiente às células, causando fadiga precoce e aquela dor na lateral da barriga.
Varella também relata a possibilidade de contração involuntária dos pequenos músculos que controlam os brônquios, dificultando a respiração. A pessoa pode sentir cólicas, tontura e alteração de estado mental.
Força muscular
Os músculos guardam parte da energia que o corpo precisa para as atividades diárias. Quem corre geralmente abastece esse estoque na forma de glicogênio consumindo carboidratos antes do treino ou da prova.

"O uso dessa energia gera o ácido lático, tão temido por nós, que pode gerar cãibra se não estiver preparado", diz o cirurgião vascular e endovascular Gustavo Solano, que também é corredor.
Músculos fortes também deixam a corrida mais leve, pois aumentam a resistência. Adaptar os músculos, tendões e ligamentos torna a atividade eficiente. Do contrário, os riscos incluem tendinite, fratura por estresse e falta de cálcio.
Cuidado com o 'piriri'
Durante a corrida, os músculos demandam mais sangue, e o fluxo sanguíneo reduz no trato gastrointestinal. As consequências podem ser náuseas, cólicas, gases, alteração na consistências das fezes e digestão ineficiente.
Por isso é importante planejar bem a alimentação antes da prática, de preferência duas horas antes da maratona. O impacto das passadas também causaria microtraumas nos vasos mais delicados do estômago e do intestino.
Magalhães alerta também para o uso de suplementos durante a corrida: tem de testar o produto antes e fazer adaptação. "Cada suplemento tem resposta individual. Às vezes, a cafeína pode gerar taquicardia, e o whey protein, dar alteração gastrointestinal."

Defesas comprometidas
Uma revisão da literatura sobre os riscos e benefícios do treinamento e da corrida para os sistemas do corpo fala do efeito positivo no sistema imunológico no longo prazo. Mas durante os estresses agudos há redução temporária das células de defesa.
"É por isso que o corredor fica mais propenso a infecções, questões virais e bacterianas, por causa dessa queda da imunidade. Tem de ter muito cuidado com o descanso, a alimentação, com o intervalo de um treino para o outro e após a maratona", diz Mabliny Thuany Gonzaga Santos, professora associada do Departamento de Desporto da Universidade do Estado do Pará e coautora da revisão.
Mas não é um caso grave, a alteração é pontual e transitória. "Passada a corrida, voltando com rotina normal, hidratação, descanso e alimentação, está tudo certo", diz Santos.
Sobrecarga dos rins
Durante o esforço físico intenso, o catabolismo quebra os macronutrientes para liberar a energia de que o corpo precisa. "Nesse processo, há liberação de toxinas que vão ser filtradas pelos rins, o que pode ser danoso", diz Magalhães.
Também há menos sangue nesses órgãos para que possam trabalhar, levando a uma insuficiência temporária. "É muito importante que depois de atividade intensa tenha o tempo de recuperação, que depende de cada pessoa", afirma a médica do esporte.
Calor e desidratação
Com todos esses sistemas trabalhando a todo vapor, o corpo aquece e o suor é uma forma de liberar calor para manter a temperatura equilibrada. Na maratona, a perda de água é intensa, e a hidratação adequada dá segurança e favorece a performance.

Mas é preciso se atentar à quantidade de água ingerida no percurso, pois, se excessiva, reduz a concentração de sódio no sangue. A condição é chamada de hiponatremia e pode provocar desde dor de cabeça e enjoo até convulsões e coma em casos graves.
Para evitar problemas, hidrate-se antes da prova e, se possível, calcule a quantidade de água necessária para o percurso. Ao correr no calor intenso, é melhor reduzir a velocidade ao sinal de qualquer mal-estar do que beber muita água, porque ela não resfria o corpo.
Sensação de bem-estar e um risco
Exercícios físicos diminuem sintomas de depressão e ansiedade, liberam neurotransmissores que dão sensação de prazer, o que motiva a seguir na atividade. Mas o efeito positivo pode fazer a pessoa querer experimentá-lo com mais frequência sem os cuidados necessários, levando, no extremo, ao vício.
"O vício no exercício é entendido quando o indivíduo coloca a atividade como central na vida dele e isso começa a comprometer o social", explica Santos. "A exposição exacerbada ao treinamento vai levar a lesões, diminuição da imunidade, desregulação hormonal e risco de transtornos alimentares."
Como evitar problemas
Apesar de estressante para o corpo, a prática de corrida progressiva e bem planejada tem benefícios duradouros. Mas se mesmo em pequenas distâncias o cansaço for exagerado, a taquicardia surgir ou um sintoma assustar, vale uma consulta médica para avaliação.
Genética e histórico familiar de problemas cardíacos também são alertas para prevenção. "A pessoa pode ter patologias silenciosas, arritmia leve, que no exercício podem piorar e levar à parada cardíaca", diz Solano.
Nos cuidados com o coração e a recuperação, algumas pessoas usam bermudas ou meias de compressão para aliviar a contração muscular involuntária e melhorar a circulação sanguínea. Mas são poucos os estudos sobre os benefícios desses itens em praticantes de corrida. As publicações, por si, não comprovam os ganhos, pois são feitas com poucas pessoas e limitações metodológicas.
"Meia não melhora performance, mas dá conforto, economia de energia e melhora retorno do sangue para o coração. A principal vantagem é na recuperação muscular, na drenagem do ácido lático", diz Solano, que é consultor médico da Sigvaris Group. O uso é orientado a partir de evidências já estabelecidas no tratamento de doença venosa. "A gente pega um pouco desses estudos e transporta para a corrida", explica.
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