'Vida interrompida': mãe diz que filha ficou em coma após anestesia em casa
Ler resumo da notícia
A vida da funcionária pública Flávia Bicalho, 55, de Nova Lima (MG), está em suspenso desde 20 de setembro de 2024. Naquele dia, Letícia, 31, sua única filha, entrou em coma após reação adversa a um bloqueio anestésico —injeção que interrompe os impulsos sensoriais de uma região do corpo.
A VivaBem, Flávia diz que o procedimento foi realizado em casa, e de forma inadequada, por Natália Peixoto. A médica anestesista, amiga de infância de Letícia, também teria demorado a prestar socorro, segundo a mãe.
- ENVIE SUA HISTÓRIA: acha que a sua história de vida merece uma reportagem? Envie um resumo para o email enviesuahistoria@uol.com.br. Se possível, já envie fotos e os detalhes que nos ajudarão a avaliá-la. A redação do UOL pode entrar em contato e combinar uma entrevista.
A família protocolou queixa-crime no Ministério Público de Minas Gerais e fez denúncia no CRM-MG (Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas Gerais), pedindo a cassação da licença médica. Procurada por VivaBem, Natália não quis comentar.
Minha vida acabou. A vida da minha filha foi interrompida, assim como a da minha família. Não tenho mais forças. Se estou aqui até hoje, é por causa dela.
Flávia Bicalho
Jovem tem síndrome
Flávia conta que Letícia convive há anos com a síndrome de Bertolotti, que causa dor lombar crônica. Antes de receber os bloqueios anestésicos aplicados por Natália, que ocorreram em duas ocasiões, chegou a fazer uma cirurgia endoscópica na coluna, mas a dor voltou.

A jovem então foi orientada por um médico a fazer uma cirurgia convencional —outros profissionais avaliaram que ela era muito nova para se submeter a um procedimento tão invasivo. Para lidar com a dor, eles recomendaram a aplicação regular de bloqueios anestésicos.
Procedimento em casa
O primeiro bloqueio anestésico que Letícia recebeu foi aplicado dentro de um hospital e seguiu todos os protocolos. Até que, certo dia, ela e Natália combinaram de realizar o procedimento na casa da médica. Segundo Flávia, a filha confiava plenamente na amiga e nunca supôs que ela pudesse colocá-la em risco.
O primeiro bloqueio anestésico aplicado por Natália correu sem complicações. Já na segunda vez, Letícia teve uma reação adversa —sofreu duas convulsões, vomitou, aspirou o próprio vômito e teve uma parada cardiorrespiratória. Ela foi reanimada e, na sequência, intubada.
O primeiro bloqueio anestésico foi realizado sem o conhecimento da família de Letícia. Depois da primeira aplicação, a jovem contou aos pais sobre o episódio, mas garantiu que o tratamento era à base de produtos naturais, como arnica e camomila.
De fato, um dos medicamentos aplicados por Natália, conhecido pelo nome comercial de Traumeel, tem arnica na composição. Outros, como a ropivacaína, não. Trata-se de um remédio que não pode ser administrado fora de ambientes hospitalares.
Segundo a mãe, a própria Natália revelou ter injetado a ropivacaína.
"Nós jamais imaginaríamos que a Natália levaria para casa dela um medicamento que não pode sair de clínica ou hospital", diz Flávia. "Foi um erro atrás do outro."
Segundo a mãe, Natália não orientou Letícia a ficar em jejum, demorou a prestar socorro e não poderia ter realizado um bloqueio anestésico naquele dia, pois, na véspera, Letícia se submetera a um procedimento com ventosa, que causa vasodilatação.
"Todo anestesista responsável e consciente jamais faria um bloqueio anestésico nesse caso porque o risco de cair na corrente sanguínea é enorme. Pode ter sido o que aconteceu com a Letícia, mas nunca iremos saber", diz.
Segundo a mãe, após Letícia passar mal, Natália não ligou imediatamente para o Samu ou para a ambulância de um hospital particular próximo: preferiu chamar o marido e o cunhado e esperar que eles chegassem em casa.
Gastos passam de R$ 200 mil
Letícia está internada no Hospital Materdei Contorno, em Belo Horizonte, e o plano de saúde vem cobrindo todas as despesas relativas ao tratamento hospitalar. Apesar disso, Flávia conta que a família já gastou muito com custos não cobertos pelo plano.
Alguns desses custos incluem R$ 200 mil do transporte aeromédico (antes da internação no Materdei, Letícia ficou no Hospital Albert Einstein, em São Paulo); a compra de uma cadeira de rodas sob medida (R$ 55 mil) e tratamentos diversos, como fisioterapia, neurorreabilitação e neuromodulação (R$ 18 mil por mês). A família luta na Justiça para que Natália arque com todos esses gastos.
De acordo com Flávia, o prognóstico da filha é "o pior possível". Ela, que não gosta de tocar no assunto e se emociona ao trazê-lo à tona, afirma que Letícia teve comprometimento cerebral significativo e que não responde a estímulos. Apesar disso, torce por um milagre.
Letícia é uma menina boa demais, daquelas amigas de todo mundo. Infelizmente, foi na inocência porque confiava demais na Natália. Ela tem de voltar [do coma]. É a minha única filha.
Flávia Bicalho

Procurada por VivaBem, Natália preferiu não se posicionar sobre o caso. O espaço segue aberto.
O MP-MG afirmou que o caso é investigado pela unidade do órgão em Nova Lima e que está em contato com a promotoria responsável, mas que ainda não há mais detalhes sobre o caso.
O CRM-MG disse que "todas as denúncias recebidas (...) são apuradas" e que "todos os procedimentos abertos correm sob sigilo, conforme previsto no Código de Processo Ético-Profissional."
Bloqueio anestésico e seus riscos
O bloqueio anestésico é um procedimento realizado para reduzir ou eliminar a sensibilidade à dor, ou, ainda, auxiliar o médico na localização anatômica da origem da dor e estabelecer prognósticos, diz o médico anestesista Plínio da Cunha Leal, diretor do Departamento Científico da SBA (Sociedade Brasileira de Anestesiologia).
A via de aplicação pode ser subcutânea (abaixo da pele), intradérmica e em outras regiões específicas do corpo para alcançar nervos mais profundos.
A realização do bloqueio anestésico, independentemente do objetivo do procedimento, deve ocorrer em uma unidade ambulatorial. O paciente deve receber assistência adequada ao grau de complexidade do procedimento e à dose administrada.
Plínio da Cunha Leal
Qualquer procedimento implica algum nível de risco, diz o médico. "No caso dos bloqueios anestésicos, as intercorrências podem ser reação alérgica grave; intoxicação, quando acidentalmente o medicamento atinge a corrente sanguínea, arritmias cardíacas, convulsões e até mesmo paradas cardíacas", diz Leal, ressaltando que não há uma contraindicação formal em relação ao uso da ventosa.
A depender da intercorrência, recursos disponíveis no ambiente hospitalar podem ser usados para tentar revertê-la. Alguns desses recursos são a suplementação de oxigênio e a monitoração da frequência cardíaca, do nível de oxigênio no sangue e da pressão arterial. Quanto mais longa a demora por atendimento, maior é o risco para a saúde e até mesmo para a vida do paciente.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.