'Achei que fosse gastrite, mas era câncer raro. Um misto de medo e raiva'

Com sintomas clássicos de uma gastrite, Vivian Groppo Lima, enfermeira e ex-estudante de medicina, tinha certeza de que seu quadro não passava de um desconforto gástrico. Ao fazer uma endoscopia, porém, ela descobriu ter um tipo de câncer raro, chamado tumor neuroendócrino (TNE), aos 37 anos.

Nesse depoimento, Vivian, hoje com 41 anos, conta como viveu o luto dela mesma, fala sobre os estereótipos da doença e quebra o romantismo sobre a careca oncológica.

  • ENVIE SUA HISTÓRIA: acha que a sua história de vida merece uma reportagem? Envie um resumo para o email enviesuahistoria@uol.com.br. Se possível, já envie fotos e os detalhes que nos ajudarão a avaliá-la. A redação do UOL pode entrar em contato e combinar uma entrevista.

"Comecei a sentir um desconforto gástrico, uma dor de estômago persistente, quando ficava muito tempo sem comer e a sensação de empachamento após as refeições, além de gases.

Na época, minha vida era muito corrida devido à rotina com meus dois filhos, marido, casa e a faculdade de medicina. Estava com péssimos hábitos alimentares e acima do meu peso ideal. Com o surgimento desse desconforto, resolvi fazer uma dieta e emagreci 5 kg.

Eu e meu marido, que é médico, achávamos que era apenas uma gastrite, pois os sintomas eram característicos da doença. Nunca imaginei que pudesse estar com câncer.

Tomava omeprazol e pantoprazol por conta própria, o que aliviava a dor, mas como os sintomas persistiram por cerca de seis meses, resolvi procurar ajuda profissional. Como tinha certeza de que não era nada grave, não achei que seria necessário perder as aulas por causa disso e esperei o início das férias para marcar uma consulta com o gastro. Minha intenção era pegar um pedido de endoscopia e finalmente confirmar minha suspeita de gastrite.

Imagem
Imagem: Arquivo pessoal

O médico me perguntou se eu havia perdido peso, respondi que sim, disse que estava fazendo dieta havia seis meses. Isso o deixou em alerta. Lembro que debochei internamente da expressão que ele fez ao ouvir minha resposta sobre o emagrecimento, afinal, estava perdendo peso intencionalmente. Eu estava enganada.

Continua após a publicidade

Na semana seguinte, fiz a endoscopia e, ao ler o laudo do exame, disse ao meu pai que estava me acompanhando: 'Se prepare porque estamos diante de um grande problema. Estou com câncer'. Meu pai não acreditou e achou que estivesse exagerando. Ainda não tinha o resultado da biópsia, mas quando vi a foto do 'danadinho', já sabia que era câncer, só não sabia qual.

O resultado da biópsia demorou 10 dias para ficar pronto, certamente foram os 10 dias mais longos da minha vida. Em dezembro de 2020, recebi o diagnóstico, estava com um tipo de câncer raro, um tumor neuroendócrino de alto grau, no duodeno (na primeira porção do intestino logo após o estômago).

No início, fiquei espantada e incrédula, não imaginava que poderia ter um câncer aos 37 anos, principalmente algo tão raro. Só havia ouvido falar de tumor neuroendócrino na faculdade. Como a doença foi identificada precocemente, achei que faria a cirurgia, seria curada e a vida voltaria a ser como antes.

Após o diagnóstico, passei com alguns oncologistas na minha cidade, em Campinas, no interior de São Paulo, mas eles não tinham muita experiência com TNE. Encontrei uma equipe na capital paulista e iniciei o tratamento. Desde então, já fiz quimioterapia oral por dois anos, um ciclo de quimioterapia venosa e atualmente faço terapia alvo.

Em 2021, fui submetida a duas cirurgias, retiraram parte do estômago, do intestino e do pâncreas, o que me causou muitos problemas de digestão e absorção de nutrientes. No mesmo ano tive uma recidiva, deu metástase no fígado e nos linfonodos. Em 2024, fiz uma segunda cirurgia em que retirei 14 nódulos no fígado e fiz a ablação de mais 8, mas três meses depois, apareceram novos nódulos no fígado.

"Vivi o luto de mim mesma"

Ao descobrir a metástase, tive a consciência de que não teria mais possibilidade de cura e o chão se abriu. Fiquei apavorada, chorei, gritei. Entrei em um estado que alternava a negação e o desespero.

Continua após a publicidade

Teve uma fase do tratamento em que entrei em depressão, não saía do quarto durante o dia por não ter coragem de encarar os meus filhos. Passava a noite em claro negociando com Deus, com o universo, com os comprimidos. Depois dormia o dia todo.

Minha família sofreu muito com esse processo. Foram dias de luto, o luto de mim mesma. O luto pela Vivian enfermeira, pela Vivian médica, pela Vivian vovó e por tantas Vivians que eu jamais seria.

"'É só cabelo, cabelo cresce.' Não, não é tão simples assim"

Vivian faz questão de combater o 'romance oncológico'
Vivian faz questão de combater o 'romance oncológico' Imagem: Arquivo pessoal

Durante o tratamento, é comum ouvirmos que o cabelo é o de menos ou que ele cresce. O que a maioria das pessoas não entende é que nem é sobre o cabelo. Claro que a vaidade grita, mas o buraco é mais embaixo. O câncer tem um estereótipo, os "post its" oncológicos que nos fazem lembrar dele: a palidez, a falta de cabelos, a magreza.

Assumir esses traços traz uma exposição indesejada, olhares de pena, perguntas inconvenientes e rouba a nossa autonomia de não poder escolher quem sabe ou não sobre a doença.

Continua após a publicidade

A falta do cabelo é um grito no espelho toda vez que a gente passa por ele e o escuta dizendo: 'você está doente'.

Uma vez estava conversando com uma colega que me disse: 'Vivi, tenho a impressão de que estou indo junto com o cabelo. A cada banho é um pouco de mim que vai pelo ralo, parece que estou definhando'. Me vi nesse comentário e senti o mesmo quando aconteceu comigo. É um misto de medo, raiva, vergonha, revolta e derrota.

Algumas pessoas passam por isso de maneira mais leve, mas acho que muitas vezes essa leveza é apenas uma resposta montada para suprir a necessidade do outro, seja de um familiar, amigo ou até de um seguidor na internet.

As pessoas querem ver os 'guerreiros oncológicos', aqueles que aceitam e ressignificam tudo.

Sinto a necessidade de quebrar um pouco o romantismo sobre a careca oncológica. Sou vaidosa e amava o meu cabelo, mas esse processo não se reduziu apenas à vaidade, foi quase o momento mais difícil desde o meu diagnóstico. Minha luta em tempos de romance oncológico é entender que devo e posso acolher minhas fraquezas e vulnerabilidades.

A troca de experiência com outros pacientes também é muito importante. Sou uma das coordenadoras de um grupo no WhatsApp, em que fornecemos informações sobre TNE, como sintomas, diagnóstico, tratamento e acolhemos cerca de 200 pacientes e seus familiares.

Continua após a publicidade

"Viver como uma paciente de câncer raro é uma montanha-russa de sentimentos"

Vivian ao lado dos médicos que a tratam
Vivian ao lado dos médicos que a tratam Imagem: Arquivo pessoal

Ao longo desses quatro anos com câncer, já tive fases em que me senti bem, disposta, confiante, a doença se estabilizou. Mas já tive fases ruins em que precisei ficar internada, emagreci 12 kg e tive um quadro de desnutrição.

Atualmente, a doença progrediu, sinto fadiga, dores abdominais que às vezes me deixam prostrada e tenho algumas limitações, mas nada que me impeça de realizar minhas tarefas diárias, precisei fazer algumas adaptações e diminuir o ritmo.

Sigo uma dieta regrada devido à retirada de parte do pâncreas; tenho gastroparesia, que é a dificuldade de digerir alimentos; tomo medicação diária para não ter diarreia e sempre que saio de casa preciso me organizar com relação às idas ao banheiro.

Cursei três anos de medicina, tranquei a faculdade, achei que conseguiria voltar, mas preferi priorizar o meu tempo para descansar e ficar com a minha família. Viver como uma paciente de um câncer raro é uma montanha-russa de sentimentos.

Continua após a publicidade

Para mim, a parte mais desafiadora é a imprevisibilidade e não ter o controle de nada. Nunca sei se um tratamento novo vai funcionar, se o meu organismo vai tolerar, e caso funcione, se isso será por muito tempo ou por poucos meses.

Vivian com o marido e os dois filhos
Vivian com o marido e os dois filhos Imagem: Arquivo pessoal

Passei a aceitar a doença, porque é algo que não pode ser mudado. Não é uma aceitação plena e bem resolvida, eu ainda revisito o luto e as emoções negativas. Às vezes, sinto medo e tristeza ao lembrar que talvez não tenha tanto tempo por aqui quanto gostaria, mas procuro focar no meu maior propósito que são os meus filhos, a Rafaela e o Lucas.

Tenho dois bolsos de sonhos. Um para guardar aqueles que não vou mais conseguir concretizar devido às limitações do TNE. O outro bolso está cheio de novos sonhos realizáveis, e aprendi a ser feliz com eles.

Hoje em dia, vivo as Vivians do presente: a Vivi mamãe, esposa, filha, irmã, amiga. Aprendi que devemos viver para amar e para receber amor, no final, é só isso que importa."

Tumores neuroendócrinos: o que você precisa saber

Tumores neuroendócrinos se originam de células do sistema endócrino. São raros e podem surgir em diferentes órgãos, como estômago, pâncreas, intestino, pulmões, adrenais, tireoide, hipófise e até na mama.

Continua após a publicidade

A causa dos TNEs não é conhecida e eles não apresentam fatores de risco convencionais. No entanto, podem estar associados a síndromes genéticas hereditárias, como doença de von Hippel-Lindau, esclerose tuberosa e neurofibromatose.

Os sintomas variam conforme a localização do tumor e podem incluir:

Rubor facial intermitente e diarreia (em tumores gastrointestinais);

Empachamento, saciedade precoce, gastrite e perda de peso (em tumores pancreáticos, estomacais ou duodenais);

Sinais associados à secreção de insulina, glucagon e outros hormônios;

Confusão com outras doenças, como síndrome do intestino irritável, hipertensão e diabetes.

Continua após a publicidade

Os tumores são classificados como "funcionantes" (quando causam sintomas hormonais) ou "não funcionantes" (quando não geram sintomas aparentes).

O diagnóstico envolve exames de imagem e biópsia. Como a doença pode ser silenciosa, o diagnóstico pode demorar de 5 a 10 anos.

Os tratamentos incluem:

Medicamentos para bloquear a proliferação do tumor e a produção hormonal;

Terapia por medicina nuclear, quimioterapia e imunoterapia;

Oncologia intervencionista para tumores no fígado;

Continua após a publicidade

Radioterapia em casos específicos;

Cirurgia com intenção curativa quando não há metástases.

Os TNEs podem afetar significativamente a qualidade de vida, principalmente os tumores funcionantes, que podem causar complicações graves, como arritmias cardíacas e hipoglicemia severa.

Há opções de cura, geralmente envolvendo a remoção cirúrgica das lesões tumorais, inclusive em casos metastáticos, dependendo da avaliação individual de cada paciente.

Não há dados oficiais sobre a incidência no Brasil, mas estima-se que os TNEs representem 0,5% dos tumores malignos. Nos Estados Unidos, a incidência anual é de 6,8 casos a cada 100 mil habitantes.

Fonte: Pedro Luiz Serrano Uson Junior, médico oncologista do Hospital Israelita Albert Einstein (SP) e fellow da Mayo Clinic, nos Estados Unidos.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.