'Saci trilheiro', ele sobe as montanhas mais temidas com uma perna só

Com carapuça vermelha, muleta e uma bolsa acoplada ao corpo, está Angelo dos Santos, 48, o "saci trilheiro".

Em 2018, o servidor público encontrou nas trilhas uma forma de aceitar sua condição. Na adolescência, um câncer raro o fez perder uma perna, e o tratamento acabou afetando sua bexiga.

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Paranaense de Ponta Grossa e morador de Brasília desde 2006, ele usa as redes sociais para compartilhar suas aventuras em trilhas —os percursos incluem a temida Pedra da Gávea, no Rio, e o Pico da Bandeira (entre Minas e Espírito Santo), um dos mais altos do Brasil.

'Levei uma semana para aceitar'

Santos tinha apenas 17 anos quando recebeu o diagnóstico de um fibrossarcoma, um tipo de câncer.

Vi que minha perna esquerda estava um pouco inchada. Não dei muita importância no primeiro momento, mas logo senti que tinha algo diferente na altura da virilha.
Angelo dos Santos

"Fui ao médico e, depois de exames mais aprofundados, me disseram que seria necessária uma cirurgia. Achei que seria algo simples, mas, durante a operação, o médico descobriu que o tumor era mais complexo do que imaginava", diz Santos.

A decisão pela amputação total da perna esquerda foi difícil, mas inevitável.

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Levei uma semana para aceitar. Eu tinha febre, muita dor, e sabia que era arriscado manter a perna, pois a infecção poderia se espalhar. No dia 10 de agosto de 1994, acordei no centro cirúrgico e, dez horas depois, estava sem minha perna. Minha vida continuou daquele ponto em diante.
Angelo dos Santos

'Comecei a ter sintomas estranhos'

Dois anos depois da amputação, Santos enfrentou um novo desafio: a recidiva (retorno) do mesmo câncer e complicações no tratamento.

Comecei a ter sintomas estranhos e descobri que o câncer havia voltado. O tumor cresceu na cicatriz da amputação.
Angelo dos Santos

Segundo ele, foram 40 sessões de radioterapia. Depois da oitava, passou a ter dificuldade de ir ao banheiro e precisou usar bolsas de colostomia, para eliminação das fezes, e urostomia, para a urina.

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"A radioterapia acabou com o tumor, mas os tecidos no entorno também foram afetados. E, nesse processo, como a bexiga estava ao lado do tumor, a radioterapia fez com que a bexiga perdesse a elasticidade que ela tem ao encher de urina. Então, de certa forma, também atrofiou e perdeu a capacidade de armazenar."

Santos ficou desacreditado de sua melhora. "Achei que meu tempo de vida seria curto, mas continuei lutando. Em 2005, consegui retirar a bolsa de colostomia e hoje uso apenas a de urostomia."

Angelo dos Santos era chamado de saci pelas crianças e acabou adotando o apelido
Angelo dos Santos era chamado de saci pelas crianças e acabou adotando o apelido Imagem: Arquivo pessoal

'Me chamavam de saci'

Em meados de 2000, voltou a ser exibido na TV o "Sítio do Picapau Amarelo", baseado na obra de Monteiro Lobato. E foi então que crianças na rua passaram a chamá-lo de saci, um dos personagens do programa.

Na época, isso o incomodava. "Não gostava da minha aparência, não gostava de me ver sem perna, e isso afetava minha autoestima. Eu entendia as crianças, mas não aceitava."

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Santos também teve de lidar com as dificuldades de usar a prótese —e precisou apostar nas muletas.

Entre a amputação e o segundo câncer, eu queria muito ter a aparência de quem tinha uma perna. Mas, após a radioterapia, a região ficou muito sensível. No meu caso, a prótese encaixava na cintura, o que fazia muita pressão e irritava a pele. Foi então que abandonei a prótese e assumi a muleta para me locomover o tempo todo.
Angelo dos Santos

Angelo já percorreu mais de 40 km em uma travessia nos Lençóis Maranhenses
Angelo já percorreu mais de 40 km em uma travessia nos Lençóis Maranhenses Imagem: Arquivo pessoal

Em meados de 2018, Santos resolveu começar a fazer trilhas "de verdade" —usando muletas. Desde 2007, ele já fazia algumas, mas curtas e fáceis. Estreou na Chapada dos Veadeiros (GO).

Depois, resolveu abraçar o apelido que o machucava antes. Naquele mesmo ano, criou o perfil "Saci Trilheiro" no Instagram, para compartilhar suas aventuras.

Criar esse nome foi um passo importante para aceitar quem eu sou. Em 2020, durante o Carnaval, me fantasiei de saci, com calção vermelho e carapuça, e fiz minha primeira trilha assim na Chapada dos Veadeiros. Isso chamou muita atenção nas redes sociais e me ajudou a levar a vida com mais leveza
Angelo dos Santos

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Isabel Carvalho, que começou as trilhas com o esposo, vê nele um exemplo de força de vontade
Isabel Carvalho, que começou as trilhas com o esposo, vê nele um exemplo de força de vontade Imagem: Arquivo pessoal

Nas trilhas, ele também usa a bolsa de urostomia —a mesma usada no dia a dia, sem adaptações. "Carrego uma reserva para emergências, mas nunca tive problemas graves. Faço tudo com muito planejamento." Por ter insuficiência renal crônica, ele tem de beber pelo menos 3 litros de água durante as trilhas.

Para a esposa, a jornalista Isabel Carvalho, 43, ele é um "exemplo de força de vontade e de superação". Eles estão juntos há 18 anos e ela passou a acompanhá-lo em alguns percursos.

É a prova de que limitações não definem ninguém. Ele me ensina, todos os dias, que a vida é sobre encarar desafios, não importa o tamanho deles. Começamos juntos! Sempre fui aquela que incentivava a cada trilha, a cada nova ideia. Ele acabou me motivando a explorar mais, a sair da zona de conforto e encarar a natureza como um espaço de renovação e conquista.
Isabel Carvalho

Santos já fez trilhas de longa duração e grande complexidade, como a travessia dos Lençóis Maranhenses, com 40 km percorridos em três dias, e a subida da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro —complicada para a maioria das pessoas e considerada uma das mais difíceis do Brasil.

Angelo e Isabel Carvalho começaram a fazer trilhas juntos
Angelo e Isabel Carvalho começaram a fazer trilhas juntos Imagem: Arquivo pessoal
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A trilha da Pedra da Gávea tem aproximadamente 3,7 km e uma parede de rocha de cerca de 70 metros que mete medo.

"A parede, conhecida como Carrasqueira, foi a parte mais difícil: é uma parede de rocha levemente inclinada e, para subir, é preciso escalar ou fazer rapel com cordas. Subi escalando, com ajuda dos guias e auxílio de uma corda de segurança", diz ele.

Quando chegou ao topo, ganhou uma surpresa: desceria de rapel. "Achei que um amputado nem conseguiria, mas desci e foi fantástico", conta Santos, que também dá palestras em empresas e escolas sobre sua história.

Em 2022, o guia Leandro Mc Comb fez uma surpresa a Angelo: o 'presenteou' com um rapel na descida da Pedra da Gávea
Em 2022, o guia Leandro Mc Comb fez uma surpresa a Angelo: o 'presenteou' com um rapel na descida da Pedra da Gávea Imagem: Arquivo pessoal/Leandro Mc Comb

Para o guia e amigo Leandro Mc Comb, 35, que ajudou a fazer a surpresa do rapel, Santos é um ídolo. "Exemplo máximo de superação e empatia. Em todos os lugares que passamos, ele foi o centro das atenções e as pessoas se emocionaram muito ouvindo sua história."

Hoje, Santos diz que nem sempre vai fantasiado, mas leva a carapuça e o cachimbo como forma de caracterizar seu personagem. "Fazer o que gosto, independentemente do que os outros vão achar, me trouxe uma sensação de liberdade."

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Entenda o fibrossarcoma

O fibrossarcoma, câncer que Santos teve, é um sarcoma considerado ultrarraro. O câncer também não responde tão bem à quimioterapia, explica o oncologista Rodrigo Munhoz, especialista em tumores cutâneos e sarcomas do Hospital Sírio-Libanês.

Tem um número muito pequeno de pacientes por ano. A radioterapia, junto com a cirurgia, pode funcionar bem no tratamento desse tumor. No entanto, a radioterapia, além dos efeitos locais de irritação da pele, eventualmente pode provocar a inflamação dos tecidos ao redor.
Rodrigo Munhoz, oncologista

O tumor pode ter um "comportamento localmente agressivo". "Vão formando massas, nódulos, empurrando as estruturas ao redor. E, uma vez operados, ainda tem uma chance de retornar."

Como são tumores que crescem muito lentamente, muitas vezes você só faz o diagnóstico em etapas avançadas, quando o tumor já se espalhou localmente e permeou as estruturas ao redor, o que pode dificultar o tratamento cirúrgico.
Rodrigo Munhoz, oncologista

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