Realidade virtual no diagnóstico de TDAH: tecnologia pode evitar erros

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O diagnóstico de TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) é essencialmente clínico e envolve detalhar o histórico de vida da pessoa, contextualizar os sintomas e coletar relatos de pais e/ou pessoas próximas. Testes neuropsicológicos são importantes e úteis para identificar o perfil cognitivo e entender possíveis déficits funcionais, mas não sensíveis e específicos o suficiente para bater o martelo.
Um dos problemas é a validade ecológica, ou seja, o quanto o desempenho do paciente durante o teste corresponde de fato às situações vividas no dia a dia. Tecnologias como realidade virtual e coleta de dados de movimento e áudio estão sendo estudadas ou aplicadas para melhorar a investigação e entender melhor as dificuldades do paciente.
Entendendo o desafio
No teste neuropsicológico, a pessoa fica numa sala com um único profissional. "A avaliação psicológica e médica é construída num ambiente o mais estéril possível para que a gente alcance os objetivos daqueles instrumentos de avaliação", diz a psicóloga Victória Faraj.
Esse contexto pode expor ou omitir comportamentos. "É uma situação que tem ansiedade de desempenho ou motivação que faz com que a pessoa performe de forma diferente de quando está em sala de aula e tem 30 outros alunos ou está em situação que a motivação é menor", exemplifica o psiquiatra Luis Augusto Rohde, vice-coordenador do CISM (Centro de Pesquisa e Inovação em Saúde Mental) e professor da Unifesp.
Não é possível replicar no teste as exatas condições do dia a dia. A forma como a pessoa usa a memória ou atenção na rotina pode não corresponder à avaliação no teste.
Os estudos que avaliam a performance dos testes não refletem a realidade. Uma pesquisa seleciona, por exemplo, um grupo de 50 pessoas com o transtorno e 50 sem, na proporção de um para um. "Mas na população, a prevalência de TDAH é de 5%", diz Rohde.
Nem sempre uma melhora no teste significa melhora na vida real. Por exemplo, no teste de memória, a pessoa pode ter bons resultados após intervenção, mas no cotidiano ainda tem dificuldade com a memória de curto prazo.
O diagnóstico de TDAH depende também da qualidade dos profissionais. Eles precisam conhecer bem um desenvolvimento típico e ter noções de psicopatologia para diferenciar o transtorno de outros quadros com sintomas semelhantes.
Realidade virtual traz engajamento
Ambientes virtuais têm sido usados na investigação do TDAH. No espaço simulado, a pessoa desempenha tarefas que testam memória e atenção, por exemplo, em vez de só relatar com vieses as situações em que essas competências falham.
"Temos um contexto que traz a pessoa para o ambiente mais próximo da realidade e isso proporciona resultados mais precisos", diz Faraj, que é psicóloga da Nesplora no Brasil.
A Nesplora desenvolve tecnologia para avaliação neuropsicológica por meio de realidade virtual. "Quando a pessoa chega no consultório com uma queixa do que está acontecendo, eu a coloco nesse lugar [virtualmente]", explica.
No país, a ferramenta integra o portfólio da Vetor Editora, onde VivaBem testou o produto. Guiada por Faraj, a reportagem experimentou dois ambientes, mas como não era uma investigação real, não tinha validade diagnóstica. Também não é possível dar muitos detalhes do ambiente para não interferir na experiência de outras pessoas.
O primeiro teste foi o Aquarium, projetado para avaliar adultos e medir atenção seletiva, memória de trabalho e impulsividade. Com óculos de realidade virtual, fones de ouvido e um controle na mão, segui as instruções para reconhecer o espaço e cumprir as tarefas. A boa qualidade da imagem ajuda na imersão e, como na vida real, há distrações pelo espaço, que estão ali de forma natural e intencional.
O segundo ambiente foi o Ice Cream, para pessoas a partir de 8 anos, focado na avaliação da função executiva, como capacidade de planejamento e flexibilidade cognitiva. Nesse, fiquei um pouco nervosa e ansiosa com as demandas, que Faraj explicou ser parte da experiência.
A ferramenta tem outros ambientes, como uma sala de aula, para avaliar atenção, impulsividade e orientar o processo de aprendizagem das crianças, e outro para avaliar diferentes tipos de memória.
Apesar do nervosismo, me diverti com o teste, o que é um atrativo da avaliação com realidade virtual. "Tem esse aspecto um tanto subjetivo que é a adesão, de motivar um pouco mais a pessoa, que traz engajamento e qualidade de dados", ela explicou.

É uma experiência diferente da avaliação apenas com lápis, papel e conversa, embora estas sigam válidas. "São importantes e a gente vai fazer, porque a Nesplora não exclui outros materiais", diz a psicóloga.
Segundo Faraj, a realidade virtual permite testar pessoas diferentes em um mesmo contexto, nivelando os pacientes. Mesmo que eu nunca tivesse entrado num espaço que a ferramenta simula, ainda seria possível fazer o teste, pois ele explica como tudo funciona. "A validade ecológica é uma ambientação mais próxima da realidade. Seja ela a realidade conhecida pela pessoa ou não", diz.
Fenótipo digital
Outro recurso que pode ajudar no diagnóstico é a fenotipagem digital, que coleta e analisa dados durante as tarefas. Com aprendizado de máquina, os resultados podem reforçar uma hipótese diagnóstica.
Um exemplo é o sistema ChAMP, que inclui um aplicativo para celular, uma plataforma de código aberto para extrair biomarcadores digitais e um dispositivo que capta dados de movimento e áudio. O aparelho é colocado na parte inferior das costas com um cinto personalizado.
Em estudo com 101 crianças de 4 a 8 anos, com e sem transtornos de saúde mental, o sistema identificou transtornos específicos com precisão balanceada de 70% a 73%, resultados semelhantes aos limites clínicos estabelecidos a partir de relatos dos pais (63% a 82%).
"No futuro, a partir de medições, podemos ter dados que associam fenotipagem digital com inteligência artificial que cooperem com dados da entrevista clínica para poder ter uma visão mais clara", diz Rohde.
Tecnologia no tratamento
Outra possível aplicação da realidade virtual é no tratamento não farmacológico do TDAH, ainda em estudo. Rhode pesquisa como o exercício físico aliado à interação virtual pode ajudar adolescentes de 12 a 17 anos com o transtorno. O estudo clínico é conduzido pelo CISM no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e na rede de atenção especializada da cidade de Indaiatuba.
"Existem evidências sólidas de que o treino intervalado de alta intensidade melhora atenção e função executiva em pacientes com TDAH. Ao mesmo tempo, sabemos que uma das grandes dificuldades é como engajar alguém que não tem interesse ou não gosta", diz o psiquiatra.
A prática de exercício físico por meio de videogame torna a atividade mais interessante e aumenta a adesão. Com os óculos de realidade virtual, a pessoa enfrenta drones e faz pontos ao acertar ou se esquivar. São 12 ciclos de exercícios que incluem 16 segundos de esforço máximo seguidos por 20 segundos de descanso.
Os participantes fazem cinco sessões semanais e passam por testes que medem atenção e função executiva antes e depois da atividade, além de ressonâncias magnéticas do cérebro para entender possíveis modificações que se associam à melhora.
O grupo que usa a ferramenta é comparado a outro que joga o mesmo game, mas apenas com joystick, sem realidade virtual. A coleta de dados deve ser concluída até o fim do ano.
Promissor, mas com cuidados
A tecnologia permite analisar muitos dados e fazer cálculos rapidamente, mas o uso dessas ferramentas envolve discussões éticas, de segurança, qualidade e confiança.
"Para poder extrair informações, preciso ter um banco de dados muito claro de indivíduos com desenvolvimento típico para fazer análise e ter ideia de quanto os indivíduos com TDAH são diferentes", aponta Rohde.
A precisão dos resultados depende de como os dados são inseridos no sistema, se têm validade para o objetivo e se o profissional está capacitado para interpretá-los.
"O profissional precisa saber o que está avaliando. Quem não tem experiência com neuropsicologia não vai conseguir discernir o resultado na Nesplora. Outra recomendação é não aplicar o teste sem antes ter passado também pela experiência. O profissional deve estar preparado para a avaliação", diz Faraj.
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