'Bebeu e ficou internada': mau uso de óleos essenciais causa danos

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A rede de desinformação sobre os óleos essenciais, propagada por lideranças e consultores da doTerra, uma das maiores marcas do mundo, atinge de forma perigosa o cliente final.
É ele quem vai receber as dicas equivocadas de como curar doenças com os produtos e corre o risco de prejudicar a própria saúde.
"Uma paciente contou que bebeu óleo de limão-taiti e ficou dois dias internada", narrou a aromaterapeuta Ana Guerra, que atua no Rio de Janeiro.
Segundo Ana, a paciente, que é uma adolescente, já tinha problemas gástricos e teria sido incentivada por uma revendedora da empresa a beber algumas gotas do óleo por um determinado período de tempo, para ajudar no processo de emagrecimento.

Ana compartilhou ainda outro caso de um paciente que revelou estar bebendo uma gota de óleo de lavanda todos os dias, há dois anos, por indicação de uma terapeuta. "Fiquei espantada."
Relato semelhante ouviu a psicóloga e aromaterapeuta Maria Aparecida, do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da USP).
Em um evento do IPq, uma moça animada estava toda feliz e veio me contar que colocava um pingo de um óleo na água todos os dias. Me arrepiei. Basta pensar: 'Você toma um remédio de dor de cabeça para prevenir todos os dias?' Maria Aparecida, aromaterapeuta e psicóloga
No perfil de uma das líderes da doTerra, há até comentários de um cliente que relatou "cura" do herpes-zóster perto dos olhos após usar o óleo de melaleuca.
A doença pode causar lesões em forma de pequenas bolhas dolorosas pelo corpo —e não pode ser curada com óleo essencial, explica Carla Gayoso, professora na residência médica em dermatologia da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).

Ao contrário disso, é preciso ser tratada rapidamente com medicamentos aprovados para não comprometer a visão.
Além disso, diz a médica, "nenhum óleo essencial deve ser aplicado puro na pele. O uso diretamente na pele, em grandes extensões, pode causar reações alérgicas ou formação de manchas", diz a dermatologista.
Pode beber?
A ingestão do óleo essencial é indicada por fundadores e consultores equivocadamente, com suposto benefício para emagrecer ou para o funcionamento do estômago, mas pode causar problemas.
Há uma linha chamada de "aromas naturais" da doTerra que, segundo a empresa, pode, sim, ser ingerida, pois "são compostos por aditivos alimentares aromatizantes/flavorizantes, autorizados pela RDC [Resolução de Diretoria Colegiada] 725/2022 da Anvisa".
No entanto, os rótulos são semelhantes e, nos vídeos publicados pelas consultoras nas redes sociais, não fica claro qual dos produtos é utilizado —a própria linguagem utilizada pelos influenciadores faz referências aos óleos e, não a "aromas naturais" (veja abaixo).

"Os óleos essenciais são lipossolúveis (não são solúveis na água) e, por isso, podem ser prejudiciais ao fígado", diz Henrique Perobelli, cirurgião do aparelho digestivo e coloproctologista dos hospitais Sírio-Libanês e São Camilo, em São Paulo.
O uso de óleos essenciais na dieta pode causar, a depender da periodicidade e da quantidade, inflamação no esôfago e gastrite. Se for uma quantidade exagerada, podem causar toxicidade nas células do fígado, rim e coração.
Henrique Perobelli, cirurgião do aparelho digestivo
O especialista explica que há uma confusão entre substâncias originadas de plantas, que realmente podem trazer benefícios ao corpo —como camomila e hortelã—, e a ingestão de óleos.
Consultores da empresa argumentam que o "atestado de pureza" permite a ingestão do óleo, o que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) nega.
Cosmético não é um produto para ingestão, não tem avaliação para este fim no que toca os ingredientes e processo de fabricação. Produtos para ingestão seriam alimentos ou medicamentos, a depender do caso.
Anvisa, em nota a VivaBem
Os óleos essenciais vendidos pela doTerra podem custar de R$ 60 a R$ 300 no site da empresa.
Não tem benefício nenhum?
A eficácia da aromaterapia, a prática de usar esses óleos, é controversa. Segundo especialistas consultados por VivaBem, ainda faltam estudos de qualidade (feitos com humanos e não com ratos, por exemplo) para detalhar possíveis benefícios.
Até mesmo quem estuda o assunto critica o modelo de venda dos óleos adotado nas redes sociais. Aromaterapeutas explicam que a prática deveria ser vista como ferramenta extra para ajudar no controle do estresse e de algumas emoções.

Oficialmente, o Ministério da Saúde considera que a aromaterapia com óleos essenciais pode ser complementar a outras estratégias para promover o bem-estar dos pacientes.
"A aromaterapia tem foco no paciente, para tentar minimizar efeitos decorrentes de uma doença, sempre complementando um tratamento já em andamento", diz Maria Aparecida das Neves, psicóloga, aromaterapeuta e coordenadora das Terapias Botânicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Fazemos um esforço para conseguir um modelo de evidência para que seja uma prática reconhecida e viável, mas nunca podemos prometer cura de nada. Trata-se de uma prática integrativa e complementar.
Maria Aparecida das Neves, aromaterapeuta
A preocupação da aromaterapeuta são os extremos do assunto. "De um lado, usam a aromaterapia para 'curar tudo'; do outro, dizem que é uma pseudociência, mas ela não é o inferno e nem o Éden, ela está no meio. A prática tem sua potencialidade."

O que diz a empresa
Procurada, a doTerra disse que os consultores são independentes e não têm vínculo com a empresa, além de desempenharem outras atividades, como a aromaterapia.
A empresa reforça que não é responsável por tudo que os consultores publicam nas redes sociais.
Assim, as opiniões emitidas no exercício destas funções não ligadas à doTerra são de responsabilidade do indivíduo e não da empresa. Por esse motivo, também não devem conter qualquer vínculo com a doTerra, como uso de marcas registradas, símbolos ou identidade visual da empresa. Nota doTerra
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