'Melhora memória, tem algo melhor?': óleos são vendidos como 'cura'
Alzheimer, autismo, herpes... Todos esses são problemas de saúde complexos e que exigem rigor no tratamento, mas aparecem nas redes sociais como "curáveis" por meio de óleos essenciais.
Feitos pela mistura de substâncias achadas em plantas, os óleos essenciais são vendidos, em geral, em pequenos vidros com aromas diversos.
Vendedores de uma das maiores marcas do mundo, a doTerra, associam em suas redes sociais o uso de óleos essenciais a alívio de problemas de saúde. Os óleos essenciais vendidos pela doTerra podem custar de R$ 60 a R$ 300 no site da empresa.
A VivaBem, a empresa disse proibir "alegações terapêuticas vinculadas a seus produtos".
No entanto, a mensagem cria efeito cascata: consultores da empresa compartilham as informações até chegarem ao consumidor final, que usa as gotinhas com esperança de solução.
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A questão é que, além de não resolver o problema que se pretende tratar, o mau uso de óleos essenciais pode causar complicações. Os óleos essenciais da doTerra não são considerados remédios, segundo a Anvisa, mas, sim, cosméticos.
Produtos obtidos a partir de vegetais, incluindo óleos essenciais, até podem ser regularizados no Brasil como medicamento, mas, para isso, devem ter a indicação aprovada pelo órgão —o que não é o caso.
Não há medicamentos fitoterápicos registrados na Anvisa para a empresa denominada doTerra.
Nota da Anvisa
De onde vem?
A doTerra funciona no modelo de "marketing direto", em que os consultores trabalham de forma independente para atrair clientes a comprar óleos pelo site. No topo da cadeia, estão os líderes de venda ou "clube dos fundadores" —são cerca de 30 pessoas no Brasil.
O grupo, segundo a doTerra em seu site, "tem como objetivo reconhecer os primeiros consultores de bem-estar que alcançaram uma determinada classificação em nosso ranking durante os primeiros anos de operação do mercado brasileiro".
VivaBem analisou perfis online de lideranças da doTerra. Esses vendedores têm fotos nas fábricas da empresa nos EUA e participam de eventos de luxo da companhia.
Entre as doenças citadas por eles (e que supostamente poderiam ser tratadas com os óleos), estão condições sem cura e de difícil tratamento, como Alzheimer e autismo.
'Reforço de imunidade'
O dentista americano David Steuer aparece no site da doTerra como membro do "Painel Consultivo Médico".
Nas redes sociais, com mais de 130 mil seguidores, fala sobre o "poder" dos óleos em condições como autismo, enxaqueca, dependência química, diabetes e tabagismo.
Para enxaqueca, citou problemas enfrentados pelo filho: "Ele sofreu com isso por anos e anos, até que descobri peppermint [hortelã-pimenta] aplicado aqui atrás da cabeça".
Na pandemia, Steuer participou de lives ensinando a "aumentar" a imunidade com óleos essenciais —segundo médicos, porém, esses produtos são ineficazes para esse propósito. Em outro vídeo, indica óleos para "autismo infantil". "Os melhores óleos para crianças seriam peppermint frankincense ou capim-limão", disse.
"Essa combinação foi demonstrada para melhorar a maneira que o cérebro funciona para aumentar a produção de certos neurotransmissores."
A VivaBem, a equipe de Steuer disse que ele não faz mais parte do conselho médico da doTerra e que "qualquer informação que ele compartilhe é baseada em seus estudos individuais e em evidências científicas e não reflete a opinião da doTerra".
A doTerra também disse que Steuer não faz mais parte do painel consultivo da empresa, mas até o fechamento da reportagem aparecia no site como membro do painel. Segundo a doTerra, o site está desatualizado.
A empresa também falou que ele já teve conteúdos removidos "por desconhecimento da legislação brasileira". E afirmou que as informações estavam em "conformidade com a legislação norte-americana", mas não com a do Brasil.
Sobre vídeos relacionados à imunidade na pandemia, a empresa disse que "não fez alegações não fundamentadas sobre os benefícios dos óleos essenciais para a imunidade".
Os próprios consultores e Steuer realizaram as lives, usando as imagens e o nome da empresa sem aval deles, segundo a doTerra.
Qualquer informação divulgada pela empresa durante esse período em seus canais foi destinada a promover práticas saudáveis e de bem-estar geral. Nota da doTerra
De psoríase a dengue
Outra pessoa descrita como "fundadora" da doTerra é a brasileira Ana Paula Delvaux. Ela tem um site em que diz ser formada em odontologia, professora de aromaterapia e de ozonioterapia, além de doutoranda em medicina integrativa.
Com quase 300 mil seguidores, fala sobre o efeito dos óleos essenciais da doTerra para autismo, diabetes, psoríase, síndrome do pânico e até dengue.
Ela sugere receitas até para ingerir alguns tipos de óleos (algo contraindicado por médicos) e outras formas de aplicação.
A VivaBem, Ana Paula afirmou que suas publicações nas redes sociais "refletem sua experiência como aromaterapeuta e estudos ao longo dos anos. Nada têm a ver com a política adotada pela doTerra, que segue estritamente as determinações da legislação brasileira".
'Melhora memória'
A líder Marizete Neves, também do "clube dos fundadores", propaga conteúdos parecidos. Em live no YouTube, fala de óleos para transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, memória e até Alzheimer.
Nos slides, há supostos benefícios no combate a doenças.
Para o Alzheimer, por exemplo, uma publicação de Marizete indica que o óleo de hortelã-pimenta "melhora a memória". "O que poderia ser melhor?", completa a publicação. Não há evidência científica de benefício de óleos para a memória.
Ela também participa de convenções da empresa, veste camisetas com as frases "Ser, Sou, Somos DoTerra" e escreve frases nas redes como se fosse funcionária —algo que a doTerra reforça que não é.
A VivaBem, disse que "não tem nenhum vínculo com a doTerra". "O título de 'fundadora' limita-se apenas ao fato de eu ter sido uma das primeiras a me tornar consultora da empresa no Brasil."
Marizete também disse que, como consultora, está "desautorizada a fazer qualquer associação dos produtos da doTerra com propriedades terapêuticas".
Quando questionada sobre as publicações, ela disse que a experiência dela como aromaterapeuta "tem demonstrado os benefícios dos óleos essenciais para diversas enfermidades".
[Minhas opiniões] foram expressas dentro do meu papel como especialista na área. No entanto, fui comunicada pela doTerra para não vincular minhas opiniões aos produtos.
Marizete Neves
O que diz a empresa
A empresa diz que seu conteúdo é monitorado em "tempo real" nas redes. "Pontuamos que não é viável a fiscalização em tempo real de 100% dos consultores no ambiente online."
A companhia diz que, em 2023, 50.169 postagens foram avaliadas ou eliminadas, resultando na suspensão de 1.100 membros.
"O consultor pode inclusive perder o cadastro com a empresa se continuar descumprindo o contrato", diz a doTerra.
A doTerra afirma que essas pessoas, assim como os outros consultores, são independentes e não têm vínculo com a empresa, além de desempenharem outras atividades, como a aromaterapia.
Opiniões emitidas no exercício destas funções não ligadas à doTerra são de responsabilidade do indivíduo e não da empresa. Por esse motivo, também não devem conter qualquer vínculo com a doTerra, como uso de marcas registradas, símbolos ou identidade visual da empresa.
Nota doTerra
Alegações não comprovadas e não autorizadas sobre seus produtos são proibidas, diz a doTerra.
Se algum consultor propagar informações que violem essas políticas, a empresa toma medidas para corrigir a situação e educá-lo.
Nota da doTerra
O que dizem as redes
VivaBem questionou YouTube, Meta e TikTok sobre a presença de publicações nas redes que associam os óleos à cura de doenças.
O YouTube informou que os vídeos citados pela reportagem estão em análise e que conteúdos que representam riscos ou desinformação sobre saúde são proibidos. Já a Meta diz ter estratégia para "impedir a desinformação em suas plataformas". O TikTok não retornou.
Não tem benefício?
A eficácia da aromaterapia, a prática de usar esses óleos, é controversa. Especialistas ouvidos por VivaBem dizem que faltam estudos de qualidade (com humanos e não com ratos, por exemplo) para detalhar possíveis benefícios.
Aromaterapeutas explicam que a prática deveria ser vista como ferramenta extra para ajudar no controle do estresse e de algumas emoções. Oficialmente, o Ministério da Saúde considera que a aromaterapia com óleos essenciais pode ser complementar a outras estratégias para promover o bem-estar.
"A aromaterapia tem foco no paciente, para tentar minimizar efeitos decorrentes de uma doença, sempre complementando um tratamento já em andamento", diz Maria Aparecida das Neves, psicóloga, aromaterapeuta e coordenadora das Terapias Botânicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Fazemos um esforço para conseguir um modelo de evidência para que seja uma prática reconhecida e viável, mas nunca podemos prometer cura de nada. Trata-se de uma prática integrativa e complementar.
Maria Aparecida das Neves, aromaterapeuta
A preocupação da aromaterapeuta são os extremos do assunto. "De um lado, usam a aromaterapia para 'curar tudo'; do outro, dizem que é uma pseudociência, mas ela não é o inferno e nem o Éden, ela está no meio. A prática tem sua potencialidade."