'Sonhos têm segredos': veja as recentes descobertas da neurociência

Há sonhos que, de tão vívidos, podem ser relatados como se fossem um roteiro cinematográfico: cheio de conexões, com começo, meio e fim. Outros, no entanto, assemelham-se aos gifs do WhatsApp ou, no máximo, a um roteiro de vídeo curto, ao estilo da rede social chinesa TikTok. Embora possam ser impactantes e repletos de significados, apresentam estrutura muito mais simples que a descrição onírica do tipo "longa-metragem".

A analogia sobre as diferentes formas de relato de sonhos é da neurocientista Natalia Mota, pesquisadora do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e uma das autoras de um estudo publicado em 2020 no periódico PLOS One, que confirmou que os relatos de sonhos ocorridos durante o estágio de sono REM tendem a ser mais complexos e conectados que os do sono não REM.

Divisão em quatro estágios

Os dois primeiros estágios do sono (N1 e N2) ocorrem quando a pessoa está saindo da fase de vigília e geralmente tem sonhos curtos, embora muitas vezes intensos para a transição do sono.

O estágio seguinte é o chamado sono de ondas lentas (N3), em que praticamente não há sonho algum.

Já no estágio N4, também conhecido como sono REM, que se caracteriza pelos movimentos repetitivos dos olhos, o sonho tende a ser mais expressivo, com conexões e princípio, meio e fim.

"Já existe todo um conhecimento sobre a ciência dos sonhos a partir de ferramentas objetivas em que julgadores humanos eram treinados para ler relatos oníricos e avaliar quão complexos, bizarros ou conectados eles eram. Sabe-se que os sonhos do sono REM são mais longos e, inclusive, mais parecidos com filmes", disse o neurocientista Sidarta Ribeiro à Agência Fapesp.

Segundo ele, que também participou do estudo, automatizar esse processo de análise permitiu pela primeira vez fazer uma avaliação quantitativa dessa diferença estrutural. "Desenvolvemos uma ferramenta que é capaz de analisar um volume grande de dados de modo rápido, sem vieses subjetivos ou até de linguagem, pois pode ser utilizada em qualquer idioma", disse.

Quais as descobertas até agora?

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Imagem: Getty Images
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"Sem descartar a importância dos métodos tradicionais de análise, esses resultados são importantes, pois indicam que métodos computacionais podem ser aplicados aos estudos do estado onírico", diz Joshua Martin, primeiro autor do artigo e que realizou o estudo como dissertação de mestrado defendida junto ao programa de psicobiologia da UFRN.

O estudo de Martin foi orientado por Ribeiro e Mark Solms, um pesquisador da Universidade da Cidade do Cabo (África do Sul) e o primeiro a demonstrar, em estudos anteriores, que o sonho não ocorre apenas no sono REM.

"Até o início do século 21, havia a premissa de que o sonho ocorre apenas no sono REM, que nem era preciso estudar sonhos: estudava-se o sono REM e pronto. Hoje já se sabe que sonhamos durante a noite tanto nos estágios REM quanto nos não REM, embora em graus variáveis", observa Ribeiro.

Assunto para além das fronteiras

Um dado importante do estudo é que, por se tratar de uma colaboração internacional, os relatos foram colhidos de voluntários na África do Sul e analisados no Brasil, o que reforça essa o caráter global de aplicação da ferramenta para estudos sobre sonhos.

"Os resultados apontam que a ferramenta consegue identificar essa diferença de complexidade entre as fases do sono em termos de qualidade dos sonhos. Não são diferenças que dependam do significado, trata-se de diferenças na forma como a pessoa se comunica. Isso é extremamente importante para sairmos do viés do idioma", explica Mota.

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A pesquisadora explica que a variação está na organização da fala. "O que nos leva para um questionamento que vai além do significado das palavras. Por mais que o sonho seja bizarro, que tenha conteúdos ou não, o que importa é a maneira como o indivíduo organiza essa memória e a relata. O que vimos é que a forma como o sujeito conta um sonho de sono REM é muito mais complexa e mais cheia de informações conectadas", afirma.

Os pesquisadores afirmam que a ferramenta surge como uma alternativa promissora para ampliar o conhecimento que temos sobre os sonhos. "Ela pode ser muito útil para uma análise ampla de relatos de sonhos em todo o mundo, como os do repositório on-line Dream Bank, que atualmente contém mais de 20 mil relatos", diz Martin.

*Com informações de reportagem da Agência Fapesp, publicada em 20/09/2020

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