'Paralisei no meio do louvor': ela teve AVC grávida e virou estudo de caso
Aos 38 anos, a profissional de educação física e bailarina Mara Rúbia já era mãe de Caleb, então com três anos, quando engravidou novamente. Como a primeira gestação havia sido normal e sem intercorrências, ela e o marido, Ricardo, moradores de Brasília, jamais imaginavam o que aconteceria quando ela completou sete semanas de gravidez: um AVC (acidente vascular cerebral) isquêmico.
De acordo com Mara, tudo aconteceu em um domingo comum. Ela, o filho e o marido estavam cantando hinos de louvor da igreja que frequentam quando, de repente, Ricardo notou que ela tinha parado de cantar. "Não senti nada, nem dor. Também não lembro de nada daquele momento", conta. "Meu marido disse que viu meu semblante 'caindo', pendendo para o lado direito. Fiquei paralisada", afirma.
Até aquele momento, Mara conta que nunca havia tido nenhum sinal de que poderia sofrer um evento desse tipo, já que os exames de rotina sempre voltavam normais. Além disso, ela sempre foi uma pessoa ativa, praticava atividade física e era bailarina.
Levada às pressas pelo marido até a maternidade, ela foi atendida imediatamente e transferida para o Hospital Brasília. Até então, Ricardo acreditava que a esposa estava sofrendo com uma forte crise de enxaqueca.
O 'passeio' de ambulância e intervenção incomum em grávida
"Lembro de poucas coisas desse momento, apenas alguns flashes", afirma. "O 'passeio' de ambulância, já que eu tinha muita curiosidade de como era fazer isso, meu marido conversando comigo, uma médica de olhos verdes", conta.
No hospital, ela seguiu para a sala de exames para que fosse feito o diagnóstico do que estava acontecendo. Foi então que Mara relata ter vivido uma experiência vista hoje como incomum. "Senti alguém segurando minha mão o tempo todo, mas estava sozinha na sala de exame", afirma ela, que se descreve como uma pessoa com muita fé em Deus.
As imagens mostraram que Mara estava tendo um AVC isquêmico, que ocorre quando o fluxo de sangue para o cérebro é interrompido por um coágulo bloqueando alguma artéria.
O tratamento para o caso de Mara foi a trombectomia, um tipo de cateterismo em que os médicos chegam fazem uma pequena incisão na virilha do paciente e inserem um cateter para chegar até o local do coágulo e desfazer a obstrução.
O problema é que esse tipo de intervenção em uma mulher grávida não é corriqueiro. Na verdade, há pouquíssimas descrições de casos do tipo, de acordo com a neurologista Letícia Rebello, do Hospital Brasília, da rede Dasa, que atendeu a educadora física durante o episódio.
"Como as grávidas são excluídas das pesquisas por questões éticas, são poucos os estudos que falam desse tipo de caso", afirma a médica.
Mesmo assim, não ouve hesitação por ninguém da equipe naquele momento sobre o que deveria ser feito. "Quando entendemos a gravidade do problema, não pensamos duas vezes em iniciar o tratamento imediatamente", lembra Rebello. "O benefício de salvar aquela vida era muito maior do que os possíveis riscos que o bebê correria", explica.
O procedimento foi bem-sucedido e, ao todo, Mara precisou ficar internada por cerca de seis dias. O atendimento médico rápido fez toda a diferença no prognóstico da profissional de educação física, que ficou com poucas sequelas.
Tenho perda de sensibilidade do lado direito do corpo e alguns problemas menores de audição e visão. Fora isso, tenho uma vida normal. Mara Rúbia
A bailarina diz que ainda não voltou a dançar, mas espera que isso aconteça "em breve".
Investigação e descoberta de condição congênita
Parte do acompanhamento do episódio de Mara, que aconteceu em 2019, incluiu a investigação das causas do AVC. Foi aí que a paciente teve uma segunda surpresa, ao descobrir que possuía uma má formação cardíaca congênita chamada FOP (forame oval patente).
O problema consiste em uma abertura no coração que faz com que as cavidades que separam o sangue venoso (pobre em oxigênio) do arterial (vindo dos pulmões e rico em oxigênio) continuem se comunicando.
De acordo com a Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo), a FOP pode ser encontrada em até 30% da população adulta e é considerada um facilitador para a ocorrência de AVCs em jovens.
Como estava grávida quando descobriu a condição, Mara não poderia passar pela cirurgia para corrigir o problema. Por isso, foi acompanhada de perto pela neurologista e por uma equipe médica com obstetra e cardiologista para garantir seu bem-estar e do bebê até o fim da gestação.
Ela também precisou tomar doses diárias de medicamento anticoagulante para prevenir a formação de novos trombos, já que as mudanças hormonais que ocorrem no corpo da mulher durante esse período aumentam o risco para a formação de coágulos, especialmente em pessoas com predisposição ao problema, como era seu caso.
Mesmo sob tensão, Mara teve Noah, seu segundo filho, sem maiores complicações. Também nunca mais sofreu de enxaquecas após o nascimento do bebê. Quando ele tinha seis meses, ela passou por uma cirurgia para a correção do problema cardíaco.
"Sou muito grata a todos os médicos e por tudo que fizeram, pois salvaram minha vida", declara ela, que ainda teve mais uma filha, Eva, em 2023.
Ineditismo virou estudo de caso
Rebello acompanhou Mara até o parto e por mais seis meses após o nascimento de Noah. Pelo ineditismo do caso, Rebello pensou em publicar um estudo de caso com a história de Mara. Ao procurar outros casos parecidos, encontrou mais dois episódios semelhantes no Brasil e descobriu que já havia uma pesquisa com o mesmo tema sendo desenvolvida nos Estados Unidos.
O estudo falava justamente das melhores práticas na hora de tratar pacientes grávidas que sofrem um AVC. O problema, claro, é que não é possível realizar testes em pacientes nessa condição. "Como elas são excluídas das pesquisas, pouquíssimas pessoas de fato tiveram a oportunidade de tratar pacientes assim", afirma a médica.
Quando isso aconteceu "por acaso", a neurologista pensou que seria importante compartilhar as lições aprendidas com a comunidade científica. "Juntamos então com os casos dos EUA e formamos o estudo", afirma. O trabalho foi publicado em 2020 no periódico Journal of NeuroInterventional Surgery.
A rapidez entre diagnóstico e tratamento certamente foi fundamental para que Mara pudesse se recuperar bem e seguir sua vida de forma praticamente normal. "Como o cérebro tolera muito pouco tempo sem oxigênio, costumamos falar que 'tempo é cérebro'. No caso dela, isso fez a diferença."
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