'Vivi show de horror no parto, e meu filho nasceu praticamente morto'
Com o desejo de ter um parto normal, a advogada Jacheline Batista Pereira da Silva, 50, e seu filho Jonathan, não foram monitorados durante o trabalho de parto. Com o bebê em sofrimento fetal, Jacheline foi submetida a uma cesárea de emergência.
Jonathan nasceu com falta de oxigênio no cérebro, causando uma grave paralisia cerebral. Lutando há 11 anos na Justiça, a advogada afirma: "Meu filho morreu sem um pedido de desculpas e sem acesso a todos os direitos dele". A seguir, ela conta sua história:
"Dois dias antes de me casar descobri que estava grávida, Jonathan era a realização de um sonho, um presente de Deus. Tive uma gestação tranquila, saudável e tinha manifestado ao obstetra a preferência pelo parto normal devido aos benefícios para a mãe e para o bebê. Minha mãe teve 7 partos naturais e minha sogra 16.
Aos 8 meses de gestação sofri minha primeira violência obstétrica. Fui à consulta do pré-natal e o médico agendou uma cesárea contra a minha vontade e mesmo os resultados dos meus exames estando normais.
Ele bateu a mão na mesa, me chamou de louca e disse que não ia ficar 8, 10 horas esperando um bebê nascer. Fiquei em choque porque desde o início ele sabia do meu desejo.
Procurei uma outra médica do hospital para contar o que tinha acontecido e para perguntar se ela poderia me ajudar, mas ela também estava para ganhar bebê e disse que qualquer obstetra de plantão estaria habilitado para fazer o meu parto.
"Vivi um verdadeiro pesadelo durante o trabalho de parto"
No dia 28 de março de 2013 cheguei ao hospital por volta das 23h30 sentindo contrações. O médico fez o exame de toque e viu que eu estava com 1 dedo de dilatação. Disse que gostaria de tentar o parto normal, mas que se durante o trabalho de parto houvesse alguma intercorrência ou situação de risco e fosse necessário fazer a cesárea, seguiria a recomendação dele.
Fui internada e vivi um verdadeiro pesadelo, um show de horror. Durante o trabalho de parto eu e o Jonathan não fomos monitorados e não recebemos assistência das enfermeiras, elas não ouviram os batimentos cardíacos dele e não fizeram o cardiotoco em nenhum momento.
Teve uma hora que eu estava fazendo agachamento e uma enfermeira disse 'vai cagar o bebê'. Elas eram despreparadas, desqualificadas e hostis.
Por volta das 5h da manhã o médico voltou, fez o exame de toque, eu estava com 4 dedos de dilatação. Meu marido, o Jonas, tentou explicar que não estávamos recebendo nenhuma assistência, mas ele não deu abertura e saiu.
Cinco minutos depois minha bolsa estourou com mecônio, o que era um indicativo de sofrimento fetal. Chamaram o médico de volta, ele disse que a situação era crítica e que ia fazer uma cesárea de emergência.
Uma enfermeira jogou a toalha em cima da cama e disse para o meu marido me dar banho. Ele questionou que ela deveria fazer isso, mas ela se recusou e apenas tirou o meu esmalte da unha e a aliança do dedo. Era impressionante a falta de sensibilidade dela comigo e com o meu bebê que estava prestes a nascer. Jonas tentou buscar um atendimento privado, mas não conseguiu.
Apesar da gravidade do meu caso, o médico só fez o meu parto cerca de 1h30 depois que a bolsa rompeu, ficamos sabendo que ele priorizou fazer o parto da esposa de um amigo —ele era o único obstetra de plantão no dia.
Jonathan nasceu no dia 29 de março de 2013, às 6h35, em parada cardiorrespiratória, praticamente morto. O anestesista e neonatologista ficaram 30 minutos tentando reanimá-lo. Ele foi levado à UTI, intubado e ligado a diversos aparelhos para sobreviver.
Foi constatado que faltou oxigênio ao cérebro do Jonathan (ele teve grau severo de encefalopatia hipóxico isquêmico). O cérebro dilatou, ele teve como sequela paralisia cerebral e vários comprometimentos motores e neurológicos.
Eu e meu marido já tínhamos ciência de que havíamos sido vítimas de erro e de negligência pela equipe de parto, mas isso ficou mais claro quando a neurologista pediu para ver os prontuários.
Como eu e o Jonathan não fomos monitorados durante o trabalho de parto, os prontuários foram fraudados, ou seja, foram preenchidos pelas enfermeiras depois com qualquer dado. Ao ver as anotações dos supostos batimentos cardíacos e dos sinais vitais do bebê que estavam normais —inclusive na hora que a bolsa estourou com o mecônio—, a neurologista concluiu que, dada as graves sequelas que o Jonathan ficou, ele já estava em sofrimento havia muitas horas e que portanto seria impossível que aquelas informações estivessem corretas.
"Médico inventou história e quis me culpar porque tentei parto normal"
Durante a minha recuperação pós-parto, o obstetra disse para o meu marido não deixar eu me culpar pelo que tinha acontecido, porque poderia ficar com uma depressão pós-parto.
Ele achava que eu era culpada por ter desejado tentar um parto normal e inventou uma história de que tive um descolamento de placenta. Meu marido encerrou a conversa e disse que nos veríamos na Justiça.
Jonathan ficou 75 dias internado. Ele foi muito bem atendido pela equipe da UTI e da neurologia, mas houve uma tentativa da diretoria do hospital de desligar os aparelhos e de acabar com a vida dele porque ele era a prova viva do erro e da negligência no dia do parto.
Meu filho vivia com apenas 30% de capacidade do cérebro. Ele não andava, não falava, não sorria e existia dúvidas se ele enxergava e ouvia. Ele tinha problemas cardíacos e pulmonares graves. Ele tinha gastrostomia e traqueostomia.
Entramos com duas ações contra o hospital na Justiça. Na primeira, pedimos a manutenção da vida do Jonathan com fornecimento de profissionais especializados, recursos materiais, equipamentos de sobrevida, medicamentos, tratamentos especializados, alimentação especial, entre outros.
Hospital cumpriu a decisão por um mês, mas depois descumpriu apesar da imposição de multa diária. Na segunda ação pedimos indenização por danos materiais, morais e estéticos.
O Poder Judiciário reconheceu a responsabilidade civil do hospital pelo evento adverso e determinou a reparação dos danos morais ao Jonathan, a mim e ao meu marido, o pagamento de pensão vitalícia e de todas as despesas. O hospital ainda recorre na Justiça de algumas decisões, mas já pagou uma parte do valor.
A batalha teve início em 2013 e se arrasta há 11 anos. É um processo cansativo, custoso e desgastante. O médico foi absolvido pelos órgãos de classe, e na esfera criminal fez acordo para encerrar o processo reconhecendo o erro com pagamento de pequena reparação civil a favor do Jonathan. As enfermeiras sofreram sanções disciplinares no órgão de classe, foram suspensas temporariamente e pagaram multa.
Mesmo com as decisões judiciais, o hospital nunca esclareceu o acontecido, não forneceu as informações corretas sobre o evento, não pediu desculpas, não reconheceu o erro, pelo contrário, eles nos acusaram, nos culparam alegando que queríamos parto normal e chegaram até a pedir a minha prisão em uma das audiências, demonstrando total descaso e desrespeito.
"Guerra com o hospital lá fora e ambiente seguro em casa"
Apesar da dor e do sofrimento, deixávamos as brigas e a guerra com o hospital e o advogado lá fora e criávamos um ambiente seguro, saudável, de amor, paz e harmonia para o Jonathan em casa. Nosso papel era protegê-lo, suprir suas necessidades e proporcionar qualidade de vida e bem-estar.
Vivíamos em função do nosso filho, aprendemos neurolinguística para poder entender como ele se manifestava. Ele interagia conosco através do olhar.
Deus permitiu que Jonathan vivesse conosco por 7 anos, 2 meses e 25 dias. Ele faleceu no dia 23 de junho de 2020 de morte súbita.
Nosso filho morreu sem um pedido de desculpas do hospital e sem acesso a todos os direitos dele. Ele foi para outra dimensão, mas a luta em prol de outros pacientes continua. Eu e meu marido fazemos parte da Anavem (Associação Nacional de Vítimas de Erros Médicos), que dá apoio a vítimas, familiares e presta assessoria jurídica.
Errar é humano, o problema é persistir no erro e destruir vidas. O hospital já teve outros casos antes e depois do Jonathan.
Para muitos, pode parecer uma história triste e até trágica, mas é também uma história sobre paciência, persistência, justiça, amor e superação. Jonathan será para sempre nossa joia preciosa."
Negligência médica
A pedido de VivaBem, a advogada Aline Albuquerque, pós-doutora em direito humano à saúde pela Universidade de Essex (Reino Unido), diretora da Sociedade Brasileira Para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente fala mais sobre erro e negligência médicos.
Para começar, o termo citado pela advogada é disclosure, que pode ser definido como um processo que envolve um diálogo entre a instituição de saúde e o paciente após um evento ou circunstância que resultou em um dano desnecessário àquele paciente.
"É dever do hospital, da clínica e de qualquer instituição de saúde comunicar de forma honesta o que aconteceu para o paciente/familiar, conferir-lhe apoio emocional, pedir desculpas e adotar medidas institucionais para evitar que um evento semelhante ocorra no futuro. O disclosure também vale para o profissional de saúde implicado diretamente no evento adverso, quando se trata de uma segunda vítima", afirma.
De acordo com a advogada, a falta de informação e a sensação de que algo está sendo escondido agrava a situação pela qual o paciente ou familiar está passando e a solução encontrada acaba sendo o tribunal.
"Geralmente, a vítima precisa entrar com uma ação judicial para saber o que aconteceu. O sistema de Justiça olha apenas para trás, sem trazer nenhuma perspectiva de melhora para a saúde", comenta.
Segundo Albuquerque, no processo de disclosure, o paciente ou familiar tem direito à reparação integral, ou seja, se ele sofreu um dano associado ao seu cuidado, o hospital tem o dever de realizar um novo exame ou cirurgia sem custos, por exemplo.
Outro aspecto da reparação diz respeito ao pedido de desculpas, que deve ser verdadeiro. O pedido de desculpas não significa que a instituição ou o profissional de saúde esteja admitindo um erro, mas que valida a emoção do paciente ou familiar, conectando-se com a sua dor.
O direito à reparação integral do paciente também envolve o direito à reparação financeira, mas ela não é obrigatória. Uma instituição de saúde pode realizar o disclosure e não se comprometer a pagar uma reparação financeira, são modos distintos de responder a um evento adverso.
A especialista destaca que o disclosure não é um procedimento jurídico, não é uma forma de mediação, não tem como objetivo determinar os motivos que causaram o evento adverso, a negligência do profissional de saúde ou mesmo culpá-lo.
"O disclosure é um processo de cura emocional e de restauração das conexões rompidas a partir da ocorrência do evento adverso. Caso ele seja feito da forma adequada, é possível que o paciente ou familiar renove sua confiança e seus vínculos com a instituição e o profissional de saúde. Por outro lado, se a instituição esconde ou não explica o que aconteceu, o paciente é revitimizado, sofrendo mais angústia e dor por se sentir desrespeitado", diz.
Único livro publicado no Brasil a tratar o disclosure, "Disclosure na Saúde: Comunicação Aberta de Eventos Adversos", a publicação aborda assuntos que interessam a profissionais, gestores de saúde, pacientes e familiares e traz questões como comunicação empática, segurança psicológica para os profissionais de saúde revelarem uma falha ou erro; necessidade de mudança do enfoque punitivista do sistema de justiça brasileiro e não preventivo, entre outros.
"Ao longo dos anos de pesquisa, pude identificar que, independentemente do país, o disclosure tem uma base em comum com três pilares: comunicação honesta e empática sobre o que aconteceu, pedido de desculpas e adoção de medidas futuras preventivas de eventos adversos. A discussão do disclosure é frequente em vários países do mundo. Caso seja adotado pode se tornar uma política pública do SUS", comenta Albuquerque.
O livro ainda trata dos direitos dos pacientes e dos modelos de disclosure de EUA, Reino Unido e Irlanda, cuja lei de disclosure é de 2023, e dos Países Baixos, onde Aline realizou a pesquisa como visitante da Universidade Erasmus.
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