Você já ouviu falar no 'povo avestruz'? Mutação rara causa deformidades

Você já ouviu falar no "povo avestruz"? Assim são chamados os membros do povo africano VaDoma, do norte do Zimbábue, e cujos pés são similares aos da maior ave do planeta.
Segundo a lenda local, seres vindos de sistemas estelares tiveram aqui na Terra relações sexuais com mulheres e desse cruzamento vieram os VaDoma, acompanhados dessa condição.
Seus pés comparados aos dos demais humanos são deformados, não possuem os dedos do meio, o que lhes confere uma aparência bifurcada, geralmente em "V", sobrando apenas os dois dedos externos (dedão e mindinho) virados para dentro.
Considerada uma característica rara, estima-se que acometa cerca de um a cada 90 mil a 150 mil nascidos. Mas entre os VaDoma é muito mais comum, um em cada quatro indivíduos, e isso por serem muito isolados e protegerem uniões consanguíneas, entre parentes muito próximos.
É uma mutação genética e hereditária

Se para o povo avestruz seus pés parecem ter vindo do espaço, para os médicos, embora incomuns, não são de outro mundo, mas frutos de uma mutação autossômica dominante. Ou seja, o filho recebe uma cópia de um gene mutante de um dos pais afetado pela condição.
Daí a chamada ectrodactilia. "É uma forma de ausência congênita [desde o nascimento] de um ou mais dedos que envolve os raios centrais do pé e da mão e faz parte do grupo de síndromes denominadas 'malformações mão-pé divididas'", explica Susana Massarani, geneticista e biologia molecular graduada pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Clínica DNA Massarani.
Nos pés, a deficiência pode dificultar o andar, o correr, igualmente o uso de certos calcados, mas, muitas vezes, os pacientes se adaptam. Os membros do povo africano, por exemplo, consideram seus pés em formato de pinça vantajosos, por escalarem árvores muito bem.
"Se ainda acometer as mãos, a ectrodactilia é conhecida como garra em lagosta. A forma típica se caracteriza pela ausência de ossos e falanges, o que causa não apenas dificuldades motoras, restrição de habilidades, como problemas psicossociais", acrescenta Nelson Douglas Ejzenbaum, pediatra e neonatologista membro da APA (Academia Americana de Pediatria).
Agora, a presença de dedos a mais, do que cinco em cada pé ou mão, é chamada polidactilia.
Já a sindactilia é quando os ossos e tecidos moles dos dedos médio e anelar nascem grudados.
Pode estar associada a outras malformações
Quando parte de uma síndrome (conjunto de sinais e sintomas) autossômica dominante, a ectrodactilia, sobretudo em casos graves, também pode estar associada a cerca de 40 tipos de malformações, incluindo acometimentos do sistema nervoso e déficits no neurodesenvolvimento, gerando diferentes combinações.
"É que nas síndromes cromossômicas um conjunto de cromossomos, ou seja, de estruturas que abrigam o material genético, sofre alterações e isso repercute tanto na formação da parte física como cognitiva", explica Júlio Barbosa, médico pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e neurocirurgião.
Entre as alterações mais observadas e que variam muito entre os acometidos aparecem:
- Fenda labiopalatina
- Ausência parcial ou completa de glândulas sudoríparas (displasia ectodérmica)
- Presença reduzida de fios de cabelo
- Ausência dentária
- Anomalias craniofaciais
- Baixa estatura
- Malformações geniturinárias
- Anomalia no ducto lacrimal e olhos
- Surdez neurossensorial
- Malformações dos hemisférios cerebrais
A síndrome mais descrita é a EEC, um acrônimo para ectrodactilia (E), displasia ectodérmica (E) e fissura labiopalatina (C), descrevem, em artigo, geneticistas da UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre).
No Brasil, casos similares também foram estudados pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pela SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria).
Como se faz diagnóstico e tratamento?

Com casos de ectrodactilia ou de outras síndromes autossômicas dominantes na família (de Goltz, Rapp-Hodgkin, Hay-Wells), o mapeamento genético é indicado, e sendo gestante, um acompanhamento pré-natal.
O exame de ultrassonografia obstétrica ajuda a diagnosticar malformações e anomalias congênitas associadas no primeiro trimestre de gestação e permite também um envolvimento precoce de uma equipe multidisciplinar no cuidado da criança.
Logo após o nascimento deve ser realizado um exame físico, especialmente na apresentação sindrômica da doença, e de imagem (o mais solicitado costuma ser a radiografia), para nortear a equipe médica e, eventualmente, intervenções. Na maioria das vezes, a reabilitação é o principal tratamento, pois não há possibilidade de reversão completa da deficiência.
"No entanto, a depender do tipo e da extensão da deformidade, com dificuldades adaptativas e funcionais e para ajudar no aspecto psicossocial, alguns casos podem se beneficiar de conduta cirúrgica", explica Alessandra Russo, neuropediatra, professora de neuropediatria da Afya, grupo educacional de cursos de medicina, e fundadora da Clínica Vivere, em Cotia (SP).
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