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Dentista brasileira quer revolucionar tratamento de fissura labiopalatina

A dentista Daniela Franco Bueno ganhou um prêmio da International Society for Cell & Gene Therapy por sua pesquisa com células-tronco no tratamento de fissura labiopalatina - Arquivo pessoal
A dentista Daniela Franco Bueno ganhou um prêmio da International Society for Cell & Gene Therapy por sua pesquisa com células-tronco no tratamento de fissura labiopalatina Imagem: Arquivo pessoal

De VivaBem, em São Paulo

05/08/2022 04h00

Daniela Franco Bueno tem um sonho. Ela quer que o procedimento padrão de cirurgia óssea alveolar usada para tratamento de fissura labiopalatina seja coisa do passado. A dentista espera que sua pesquisa de uso de células-tronco de dentes de leite para fazer osso para crianças com fissura se torne rotina nos centros de referência da doença no Brasil e no mundo.

Há quase 20 anos, Bueno se dedica a encontrar uma saída menos dolorosa para resolver o problema da fissura labiopalatina, que atinge 1 a cada 650 crianças nascidas no Brasil. Trata-se de um problema congênito de má formação dos lábios e do palato (região do céu da boca) que pode prejudicar o desenvolvimento infantil. Crianças com fissura podem enfrentar má nutrição, fome, problemas na fala e na audição, além de questões de saúde mental.

Para fazer a reconstrução do lábio e do palato, é necessário uma série de cirurgias. Entre três e seis meses de idade, é fechado o lábio e, perto de um ano, o palato. Quando a criança tem entre 8 e 12 anos, é preciso uma nova cirurgia para fechar a gengiva.

Nessa terceira operação, uma parte do osso crista ilíaca (da bacia) do paciente é retirada e usada para fechar o céu da boca. "Isso gera muita dor para as crianças com fissura", afirma Bueno. "Elas precisam ficar internadas por dois, três dias no hospital", conta. Mas, se essa cirurgia não for feita, os dentes da criança não têm onde nascer.

Não é magia, é tecnologia

Preocupada em amenizar as dores de seus pacientes, ela teve uma ideia: fazer ossos a partir de células-tronco das próprias crianças. As células-tronco são capazes de se transformar em outros tipos de células. "Tem uma parte do dente de leite que é viva, que é a polpa. A gente tira essa parte, leva para o laboratório e isola as células-tronco que ficam ali", conta Bueno. "Elas podem ser manipuladas para se transformarem em outras coisas, então fazemos o osso para as crianças com fissura a partir delas", completa.

O processo de "criação" do osso no laboratório leva cerca de um mês. Quando ele fica pronto, é feita a cirurgia para inseri-lo na criança. A técnica ainda é experimental e o procedimento tem sido feito em caráter de pesquisa, mas, desde 2012, 64 crianças foram operadas com o método desenvolvido por Bueno.

Em 2020, a pesquisadora concluiu um estudo multicêntrico no Brasil, que foi realizado por intermédio do Proadi-SUS (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde) junto ao Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. A técnica foi aplicada em diferentes regiões do país por vários cirurgiões. "Se ela funcionar em todos os lugares, é porque a técnica, independentemente do profissional, funciona", explica Bueno, que acompanhou pessoalmente todos os procedimentos e agora quer levar o modelo para ser testado nos Estados Unidos, onde teve a oportunidade de fazer seu pós-doutorado.

"Parece mágica, mas eu comecei a estudar isso em 2003", conta a dentista, que tem uma série de artigos publicados sobre o assunto. Bueno fazia parte da equipe do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-tronco, da USP (Universidade de São Paulo) e queria descobrir as causas genéticas da fissura labiopalatina.

Mas, na época, "virou febre" estudar sobre células-tronco, era um assunto muito em alta na academia, então ela pensou em formas de transformar essas células nos ossos que faltavam na boca de seus pacientes com a má formação.

"Na comunidade científica, as células-tronco são vistas como um tesouro para os pacientes, pesquisas sobre esse tema são vistas com bons olhos", diz a cientista. "Trazem muitos benefícios para os pacientes porque permitem desenvolver tratamento personalizados", explica.

Quando ela pensou na possibilidade de usar células-tronco, já se sabia que elas podiam ser encontradas em todos os tecidos do corpo. Muitos pesquisadores trabalham com as células-tronco da medula, mas Bueno decidiu usar as dos dentes de leite. "Querendo ou não, é um dente que vai cair e pode ser uma fonte não invasiva de células tronco. Pensei, por que não?", relembra.

Além de amenizar a dor dos pequenos pacientes por não precisar retirar osso da bacia, usar as células-tronco diminui o tempo de internação das crianças e a necessidade de equipe dentro do centro cirúrgico. "Fazer células a partir do dente de leite pode melhorar muitas coisas para o SUS, para as crianças e para os pais", diz a especialista.

Em uma de suas pesquisas, Bueno também demonstrou que a recuperação das crianças operadas com sua técnica é melhor do que entre as crianças operadas com a técnica clássica de cirurgia. "Elas não ficam com dor na região doadora, entra de manhã no hospital e tem alta no fim do dia", afirma. "A descoberta dessa técnica realmente pode revolucionar o tratamento das crianças com fissura", opina.

Preconceito moveu pesquisadora

Bueno dedicou toda a sua carreira acadêmica ao desenvolvimento dessa técnica. "Eu queria eliminar a dor para essas crianças, elas já sofrem demais", reflete. "Sempre quis fazer uma descoberta para ajudar essas pessoas, é uma causa pouco olhada porque ela não mata. Não é como crianças com câncer, crianças com fissura não vão morrer por isso", continua.

A falta de tratamento adequado, no entanto, pode deixar sequelas e consequências graves para a vida dessas crianças, especialmente na infância. "Eu adoro criança, mas elas são cruéis", opina a dentista. "Sem tratamento, as crianças com fissura falam errado e sofrem preconceito, bullying na escola porque também não conseguem comer direito. Quando adultos, têm dificuldade para arrumar emprego porque ninguém entende o que elas dizem", conta Bueno.

Foi em 1995 que ela atendeu sua primeira paciente com fissura labiopalatina e se envolveu com a causa. "Apareceu uma criança de uns 4 ou 5 anos na clínica da faculdade e ninguém quis atendê-la. Isso me mobilizou a me tornar especialista nesse tipo de atendimento", relata Bueno, que é voluntária desde 2007 da ONG Operação Sorriso, que oferece atendimento gratuito para pessoas com fissura. "Essas crianças não têm nada de diferente, mas elas sofrem muito preconceito e não é todo o mundo que quer tratá-las."

E, por incrível que pareça, diz a dentista, é um problema muito simples de ser resolvido, se a pessoa tiver acesso a tratamento adequado.