Gessos, cirurgia e órtese: mães relatam tratamento do pé torto congênito
Com diagnóstico ainda na gestação e tratamento precoce, crianças que nascem com pé torto congênito, após a correção, têm uma infância ativa e sem limitações, com brincadeiras e esportes. A condição que provoca o nascimento com os pés encurvados para dentro e pouca mobilidade nas articulações das extremidades dos membros inferiores pode ser identificada a partir do 2º trimestre de gestação por meio do ultrassom morfológico.
Até os anos 2000, a indicação era cirúrgica e, há cerca de 20 anos, o método Ponseti, que leva o nome de seu criador —Ignacio Ponseti—, tem até 95% de bons resultados quando aplicado por ortopedista pediátrico treinado. Além disso, é menos invasivo e de baixo custo.
"Assim que o problema é detectado, o bebê deve seguir com acompanhamento com um ortopedista pediátrico para a realização do tratamento adequado que é muito eficaz, em especial se iniciado logo nos primeiros meses de vida", explica Tatiana Guerschman, ortopedista do Centro de Excelência do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo.
Quando a doença é negligenciada provoca dor e deformidades que impossibilitam o uso de calçados e impedem as atividades do dia a dia. "Já tratei um garoto que com dez anos não frequentava a escola devido ao problema. Com a prática correta, a criança tem uma vida normal, vai correr e brincar", fala Guerschman.
'Menos um'
Jéssyka Leite Cunha Alves, mãe de Vinícius Cunha Alves, que tem 11 meses, relata que desde o ultrassom morfológico já havia sinais de que o pé do lado esquerdo fosse torto. Segundo ela, não havia casos na família.
"Fiz uma tentativa de indução de parto normal, mas não deu certo porque o bebê não descia e, assim, após a cesárea, vimos que eram os dois pés curvados para dentro. Mesmo com os exames, sempre se espera que seja apenas posicional."
Ainda na maternidade, ela foi orientada sobre os procedimentos e direcionada ao Sabará Hospital Infantil. Mas, o próprio diagnóstico, muitas vezes, só ocorre no nascimento e o início do tratamento —realizado pelo SUS (Sistema Único de Saúde)— é demorado.
No sistema suplementar, ainda são poucos os convênios que autorizam, após solicitação de muitas documentações. "Muitos não compreendem que se faz toda a movimentação do pé para engessar e se economiza com menos cirurgias e fisioterapia", pontua a mãe do Vinícius.
A cada gesso trocado semanalmente, que totalizam em torno de um mês e meio, ela lembra que pensava: "Menos um."
O método Ponseti
Pelo método, o pé invertido é trazido de maneira progressiva à posição correta por manipulações e gessos corretivos —de cinco a sete, trocados semanalmente— seguidos de uma pequena cirurgia —a tenotomia do tendão calcâneo, que consiste no corte do tendão de Aquiles para recuperar a capacidade de puxar o pé para cima— e o uso de órtese.
Os procedimentos desenvolvidos por Ponseti são aplicados em todo mundo em crianças pequenas, em maiores e em casos de recidiva. "Quanto mais cedo, melhor, mas pode ser realizado em qualquer idade. O mais velho que tratei tinha 15 anos e era uma recidiva", comenta Nordon.
"O gesso é o comum, porém quem coloca é apenas o médico especializado, a partir da raiz da coxa e vai progressivamente corrigindo. Algumas vezes, perguntam se é possível usar o gesso sintético que é mais leve e não quebra, mas não se molda tão bem. Daí, a opção é usar o comum para modelar e, nas crianças maiores, chega-se a colocar o sintético por cima, apenas para não quebrar", elucida Nordon.
Antes do último gesso, é realizada a secção completa do ligamento calcâneo, a tenotomia do Aquiles. Após a retirada desse gesso, em duas semanas, o pé está corrigido e o próximo passo é o uso regular de uma órtese, apoio ou dispositivo externo para auxílio ortopédico que consiste em duas sandálias, com cano alto para atingir o tornozelo e parte da canela.
"Elas são presas por uma barra já fixa em alguns modelos, em outros, é possível realizar pequenos ajustes", descreve o ortopedista pediátrico. A medida da barra é a mesma da distância dos ombros.
O uso da órtese é convencionado como contínuo por 23 horas ao dia durante três meses e depois por 14 horas até os quatro anos de idade. Sem o uso da órtese, as chances de reverter são de mais de 180 vezes.
Os resultados são pés flexíveis, indolores, funcionais, com excelente aparência, que permitem o uso de sapatos convencionais e até a prática de esportes de alta performance. Além disso, o índice de recidivas é baixo, assim como a necessidade de outras intervenções cirúrgicas.
1 mês e o primeiro gesso
Noah Rodrigues Victorelli tem 4 meses e nasceu com o pé torto congênito —no caso, apenas o esquerdo. A mãe Angélica Gisele Victorelli dos Santos relata que o diagnóstico foi feito ainda no ultrassom morfológico. Ao saber, ela conversou pela internet com outras mães que têm filhos com o mesmo problema e uma delas indicou um médico, porém ele era de Belém e a direcionou a David Nordon.
Quando Noah completou um mês de vida, fez a colocação do primeiro gesso. No seu caso, não foi preciso fazer a cirurgia no tendão. Nordon explica que em 95% dos casos ela é obrigatória para o sucesso.
"No dia 30 de abril, Noah começou a usar as órteses por 23 horas. Após três meses, passará para 16 horas por dia", destaca a mãe.
Duas vezes mais frequente em meninos
O pé torto congênito é considerado o defeito congênito ortopédico mais comum e atinge, aproximadamente, 0,5% da população. Segundo a PIA (Ponseti International), são 200 mil recém-nascidos a cada ano com a doença, sendo 80% deles nos países em desenvolvimento.
O ortopedista pediátrico David Nordon informa que, no estado de São Paulo, de 550 mil bebês nascidos em 2020, 2.750 deles têm condição que é mais frequente em meninos —duas vezes mais do que nas meninas— e, em metade dos casos, é bilateral.
?A causa ainda é desconhecida, mas há grande influência genética e hereditariedade. Sabemos, também, que há um defeito na deposição de colágeno, a estrutura gelatinosa que faz a pele, tendões, músculos, ligamentos e ossos. A alteração afeta a parte interior e de trás da perna, desde o joelho até o pé, puxando-o para dentro. Com isso, a condição leva a um pé invertido e menor, além de uma perna mais curta e mais fina?, esclarece o ortopedista pediátrico.
A deformidade é tridimensional e consiste em: adução (para dentro), equino (para baixo), cavo (aumento do arco longitudinal medial) e varo (parte posterior do pé voltada para dentro).
Tratado de forma adequada, o atraso no ganho de marcha é de dois meses, pelos estudos. ?Se feito desde o primeiro mês de vida, o benefício é, praticamente, nenhum dano ao desenvolvimento. A criança terá um pé normal e andará bem sozinha?, afirma Nordon.
Projeto Pequenos Passos
Flávia Bonfim descobriu que sua filha Maria Hellena Borges Bonfim teria a disfunção ainda na gestação pelo ultrassom. Após o nascimento, a hipótese foi confirmada. "Passamos por consulta com o ortopedista pelo SUS, porém, sem previsão de tratamento."
Ela conta que, mesmo durante a gravidez, pesquisou ortopedistas e estudou o assunto. Quando sua filha estava com 3 meses, conheceu o projeto Pequenos Passos, liderado pelo ortopedista pediátrico David Norton e pela enfermeira Mirian Nordon, que atende crianças de famílias carentes para terem acesso gratuito e completo, que vai do primeiro gesso até a última órtese, inscreveu-se e em quatro dias foi chamada para avaliação e na semana seguinte teve início a fase dos gessos.
Depois de 4 gessos foi feita a tenotomia de Aquiles e, agora, Maria Hellena está usando a órtese prestes a diminuir o tempo por dia.
Fontes: David Nordon é ortopedista pediátrico, professor da disciplina de saúde pública da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), campus Sorocaba, e pesquisador do Instituto de Ortopedia do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e Tatiana Guerschman, especialista no método Ponseti no Brasil e ortopedista do Centro de Excelência do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo.
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