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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Por que tem pessoas que falam sobre si mesmas em terceira pessoa?

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Imagem: iStock

Marcelo Testoni

Colaboração para o VivaBem

28/06/2022 04h00

"Só trabalho, sem diversão, faz do Jack um bobão!". A frase é de Jack Torrance, personagem do filme de terror psicológico "O Iluminado", de Stanley Kubrick. Na cena em que ela aparece, Jack, interpretado pelo ator Jack Nicholson, está se referindo a si mesmo. Mas calma! Se você compartilha esse hábito, de falar em terceira pessoa, não significa necessariamente que esteja perdendo sua sanidade.

De acordo com um estudo canadense publicado no periódico Psychological Science em 2021, falar de si na terceira pessoa faz com que o sujeito se mentalize numa posição de igualdade com os demais. "É uma forma de se distanciar das próprias experiências para descrever e compreender comportamentos, sentimentos, como se fossem de um outro alguém", explica Eduardo Perin, psiquiatra pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Conversar na terceira pessoa e consigo mesmo também pode funcionar para se controlar emocionalmente sem esforço, sobretudo sobre alguma experiência ameaçadora ou dolorosa. De volta ao estudo, por exemplo, voluntários que falavam consigo mesmos em primeira ou terceira pessoa após serem submetidos a imagens que lhe causavam sofrimento apresentaram uma acelerada redução da atividade cerebral, enquanto eram monitorados.

Hábito ajudaria em decisões

O "ileísmo", como foi nomeado no século 19 pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge o termo específico para falar em terceira pessoa (do latim "ille", cujo significado é "ele" ou "aquilo"), segundo o estudo de 2021, também poderia ser útil como método retórico. Ou seja, para argumentar com excelência, como fazia o imperador romano Júlio César, e para melhorar o processo de tomada de decisões.

Jack Nicholson em "O Iluminado" (1980) - Reprodução - Reprodução
Jack Nicholson interpreta Jack Torrance, em "O Iluminado" (1980)
Imagem: Reprodução

Foi observado que discutir em voz alta algum dilema, pessoal ou político, ajuda na obtenção de sensatez, humildade intelectual, consideração à perspectiva dos outros, reconhecimento de incertezas, capacidade de se buscar um meio termo, que são elementos considerados na pesquisa canadense importantes para se solucionar uma situação tensa, como quando se tem um embate com alguém da família, do círculo de amizades ou do trabalho, por exemplo.

"Organizaria o próprio pensamento, o que ainda é bom para treinar um discurso, uma fala, uma apresentação, ou até mesmo regular o emocional", informa Juliana Casqueiro, psiquiatra do Hospital São Rafael, da Rede D'Or, em Salvador (BA). É que evitaria a "ruminação" de ideias e sentimentos que causam angústia, o que é comum quando se está sob pressão e pode elevar substancialmente o risco de sofrer transtornos, relativos à paranoia, ansiedade, depressão.

Indício de narcisismo e imaturidade?

Se por um lado falar em terceira pessoa pode ser considerado positivo, por outro também pode, juntamente com outras características comportamentais, significar o contrário. Um estudo publicado no periódico científico Brain em 2009 aponta que sujeitos narcisistas apresentariam tendência para falar de si na terceira pessoa, uma estratégia do inconsciente para encobrir o próprio egocentrismo.

Os autores consideram essa tendência um sintoma da "síndrome da presunção", descrita como um tipo de transtorno de personalidade adquirida, principalmente quando o acometido por ela se encontra num cargo de poder. Para confirmar essa teoria, eles estudaram o perfil de presidentes dos EUA e primeiros-ministros do Reino Unido nos 100 anos anteriores à publicação.

O estudo ainda mostrou que referir-se a si próprio como "ele" poderia indicar imaturidade e até falta de responsabilidade.

Em crianças isso é muito mais observado, tanto que alguns personagens infantis costumam falar em terceira pessoa, como Elmo, do programa Vila Sésamo. Pode parecer bonitinho, mas também indicar dificuldades, como em reconhecer e assumir o que faz. "Por exemplo, se a criança, com frequência, direciona seus erros, problemas de comportamento, a um 'ele' que os pais não identificam", diz Leide Batista, psicóloga pela Faculdade Castro Alves, em Salvador (BA).

O que fazer?

Como os motivos para falar em terceira pessoa são variados, primeiro, para se descartar a presença de um transtorno (de humor, psicose, bipolaridade, esquizofrenia), é preciso que a própria pessoa demonstre que tenha ciência do seu hábito. Portanto, sendo "opcional", não há o que se tratar, o que é bem diferente de quando não se percebe e o comportamento causa ou denota algum tipo de sofrimento e atrapalha relações e o desenvolvimento de atividades.

"Se isso [falar em terceira pessoa] realmente provoca um distanciamento negativo, entre as experiências próprias e aquilo que a pessoa está dizendo, ou se ela tem dificuldade em aceitar o que faz, ou os próprios sentimentos, comportamentos, aí será necessário entrar com ajuda de psicólogos e psiquiatras. O trabalho será o de fazê-la reconhecer e identificar o que sente, o que pensa, o que faz, para que consiga obter autoconhecimento", informa Eduardo Perin.

O médico continua que a mudança é observada a partir do momento em que a pessoa passa a nomear, identificar tudo o que se passa no seu interior, sem precisar atribuir a alguém de fora, obtendo assim também um autocontrole maior sobre si. Agora, quando falar em terceira pessoa envolve narcisismo, que piorado pode se desdobrar em psicopatia, a situação fica mais difícil. Não existem medicamentos para reversão e psicoterapia apenas atenua formas graves.