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Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Guerra: como passar dias com medo pode fazer mal à saúde mental

Cidadãos ucranianos cruzam a fronteira ucraniana-polonesa devido à crise de guerra russo-ucraniana, em 02 de março - Abdulhamid Hosbas/Anadolu Agency/ Getty Images
Cidadãos ucranianos cruzam a fronteira ucraniana-polonesa devido à crise de guerra russo-ucraniana, em 02 de março Imagem: Abdulhamid Hosbas/Anadolu Agency/ Getty Images

Flávia Santucci

Colaboração para o VivaBem

18/03/2022 04h00

Apesar do avanço nas negociações entre Rússia e Ucrânia para um possível cessar-fogo, o medo do que pode acontecer nos próximos meses ainda rodeia boa parte da população mundial. Especialistas apontam que, mesmo longe do conflito, é impossível não ficar impactado, e o cenário de destruição, sofrimento, mortes e desespero desencadeia uma série de consequências à saúde, que vão desde estresse, ansiedade e medo até dificuldade para dormir e pensamentos catastróficos.

Sentir medo é natural, mas quando ele é constante pode indicar a necessidade de um acompanhamento profissional. "Ao sentir a presença de um perigo iminente, real ou não, o cérebro prepara o corpo para lutar ou fugir, mobilizando uma série de recursos fisiológicos nessa resposta, como a aceleração dos batimentos cardíacos para levar sangue aos músculos. O medo anda de mãos dadas com a ansiedade, que é a tentativa de antecipar um perigo futuro e que pode gerar o estado de alerta no indivíduo. Se esse estado for constante e persistente, níveis altíssimos de ansiedade são gerados, podendo trazer prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas da vida do sujeito", diz o psicólogo Herbert Saldanha.

A psicóloga Vanessa Gebrim, especialista em tratamento de ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático, diz que viver em medo constante enfraquece o sistema imunológico, afeta o pensamento e a tomada de decisões. "A primeira reação é a ansiedade, mas quando esse processo se prolonga, o organismo pode ficar em um estado de alerta por mais tempo, trazendo problemas para a saúde da pessoa, como o transtorno de ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e quadros de depressão", diz. "Tem pessoas que, mesmo não tendo contato com os ucranianos, estão absorvendo toda a dor e discutindo sobre a guerra, além das possíveis consequências de um ataque nuclear".

Isso não ocorre apenas em guerras, claro. Neurologista do Hospital das Clínicas da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), José Luiz Inojosa diz que ter medo constante e diário, como o medo de perder o emprego, de se contaminar com um vírus mortal, da insegurança nas cidades, de não se alimentar, não se encaixar em padrões de redes sociais ou mesmo o medo de uma guerra, serve como um dos fatores que levarão ao estresse crônico, pois mesmo alguns não sendo intensos, são constantes.

Como o medo age no organismo

De acordo com Inojosa, a amígdala (localizada na profundidade dos lobos temporais) fica, ao mesmo tempo, próxima dos circuitos que geram as memórias e vizinha das estruturas cerebrais capazes de gerar as reações corpóreas ao medo. "Funciona como um receptor especial das várias informações cerebrais como visão, audição ou mesmo da sensação da pele, e desencadeia um comportamento de fuga daquele perigo, ao mesmo tempo em que ficamos em alerta máximo".

Ainda de acordo com o neurologista, ela envia informações ao hipotálamo, que comanda a ativação do sistema nervoso autônomo simpático, estimulando as glândulas suprarrenais a liberar noradrenalina e adrenalina, aumentando as batidas do coração e elevando a pressão sanguínea.

"Se o medo for extremo, a boca fica seca, a pele fica pálida, podem ocorrer tremores musculares e até mesmo perda de urina pela falta de controle do esfíncter interno da uretra. Mas, em geral, essa reação não é tão intensa e serve para preparar o corpo para o que chamamos de situação de 'luta ou fuga'", diz o médico.

O psiquiatra Antônio Geraldo da Silva, presidente da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), explica que o núcleo mediano da rafe, encontrado no tronco cerebral, está envolvido no controle do condicionamento contextual do medo. "Esta parte do cérebro reconhece um ambiente associado a um trauma e o decifra como um estímulo aversivo, espécie de temor associado a um ambiente traumático", explica.

Já os colículos inferiores —um em cada lado do cérebro— funcionam em um tipo mais particular de medo, agindo como um filtro. Se ouvimos um barulho que consideramos perigoso, como um tiro ou uma explosão, os colículos são ativados. A partir daí, o som tido como perigoso vai direto do tálamo auditivo para a amígdala cerebral, que desencadeia as típicas reações de medo: sudorese, aumento do batimento cardíaco e arrepio.

Outras duas reações importantes quando a pessoa está com medo são as pupilas dilatadas e o pulmão mais preparado para as trocas gasosas, ainda de acordo com Inojosa. "As glândulas suprarrenais também despejam na corrente sanguínea os corticoides, que vão inundar o sangue com açúcares para alimentar ao máximo o metabolismo do cérebro e dos músculos. Em compensação, o sistema circulatório reduz o fluxo de sangue para as nossas vísceras e extremidades dos membros".

Se essa resposta for momentânea, o organismo entra novamente em equilíbrio e o sofrimento psíquico será superado. A atividade do sistema nervoso autonômico simpático se equilibrará com o parassimpático, o fluxo sanguíneo se restabelece para todos os órgãos, a pressão sanguínea se estabiliza e as batidas do coração voltam ao normal.

16.mar.22 - Moradores ajudam uma idosa a sair de um prédio residencial danificado por bombardeios em Kiev - STATE EMERGENCY SERVICE/via REUTERS - STATE EMERGENCY SERVICE/via REUTERS
16.mar.22 - Moradores ajudam uma idosa a sair de um prédio residencial danificado por bombardeios em Kiev
Imagem: STATE EMERGENCY SERVICE/via REUTERS

O que o medo a longo prazo pode causar

De acordo com o neurocirurgião Ricardo Santos de Oliveira, médico assistente da divisão de neurocirurgia do Hospital das Clínicas da FMRP/USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo), ao ser submetido a eventos estressores, o ser humano passa por três fases distintas: alerta, resistência e exaustão, que podem ter efeitos na saúde a curto, médio e longo prazo.

Na fase de alerta, como já explicado, o organismo sofre alterações que têm a finalidade de prepará-lo para a fuga ou para a luta. Na fase de resistência, o organismo tenta se reequilibrar para voltar ao estado normal, aumentando a capacidade de resistência. "Essa dinâmica exige o uso de muita energia e, consequentemente, são percebidos alguns sintomas como cansaço, tontura, formigamento, lapsos de memória e mal-estar".

Já na fase de exaustão, os estados físicos e psicológicos ficam comprometidos, ainda de acordo com Oliveira, e a pessoa passa a ter dificuldades para realizar atividades diárias. O cansaço se torna crônico e surgem irritabilidade, isolamento social, dificuldade sexual, queda de cabelo e insônia.

Os efeitos crônicos e a ativação a longo prazo do sistema de resposta ao estresse e a superexposição ao cortisol e outros hormônios do estresse podem interromper quase todos os processos do corpo, segundo Oliveira. Isso aumenta o risco de muitos problemas de saúde, incluindo ansiedade, depressão, aparecimento de acnes e lesões de pele, queda de cabelo, problemas digestivos, dores de cabeça, tensão muscular e dor crônica, doença cardíaca, ataque cardíaco, pressão alta e acidente vascular cerebral, insônia, ganho de peso, distúrbios de memória e de concentração.

Quando a ajuda profissional é necessária

Segundo o psicólogo Herbert Saldanha, alguns sinais podem identificar quando o medo está tomando conta da pessoa. O primeiro é a frequência com que os episódios acontecem ao longo de um determinado período. "Se os sintomas persistirem por seis meses ou mais, esse pode ser um indicativo de que está na hora de procurar ajuda".

Ele também aponta que fatores contextuais culturais devem ser levados em consideração na avaliação pelo profissional de saúde. O medo excessivo, persistente e como resposta desproporcional a um risco real que se apresenta deve impactar significativamente no funcionamento social e profissional do indivíduo. "Nestes casos, deve-se procurar um psicólogo ou psiquiatra para uma avaliação adequada, levando em conta o contexto sociocultural do paciente e sua história de vida e histórico na família para avaliar a influência de possíveis fatores genéticos".

Técnicas podem ajudar a diminuir a ansiedade

Se a pessoa já sofre com ansiedade, a tensão mundial pode aumentar o mal-estar diante do cenário incerto que vivemos hoje. Vanessa Gebrim ensina como algumas atitudes podem diminuir a ansiedade:

  • Não consuma notícias em excesso e procure fontes fidedignas: fake news são sempre focos de ansiedade.
  • Saiba que é normal sentir medo e chorar: afinal de contas, somos humanos e temos uma profunda empatia com quem está sofrendo. Se isso persistir, procure uma ajuda psicológica.
  • Converse sobre o que está sentindo: conversar com algumas pessoas em quem você confia ajuda bastante a externalizar as emoções e os sentimentos.
  • Tente cultivar pensamentos positivos: podem surgir pensamentos catastróficos e isso não é mais do que um reflexo do medo e do desconhecido.
  • Faça exercícios de respiração (diafragmática) e de relaxamento muscular.
  • Procure manter hábitos saudáveis: uma boa alimentação, meditação, atividade física regular e ter alguns hobbies para distrair a mente. Psicoterapia e espiritualidade também ajudam a manter uma vida mais saudável.