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'O Golpista do Tinder': como paixão pode 'cegar' alguém e facilitar golpes

Shimon Hayut, o golpista do Tinder - Reprodução
Shimon Hayut, o golpista do Tinder Imagem: Reprodução

Denise Brito

Colaboração para o VivaBem

23/02/2022 04h00

A sensação é tão boa, que pode ser irresistível e levar alguns à perdição. Apaixonar-se, mesmo que pela pessoa errada na internet, é um processo que tem início no match e logo se transforma em uma avalanche de alterações fisiológicas, deixando a pessoa imersa em uma onda de sensações prazerosas e alienantes.

Além do catfishing —uso de perfis falsos nas redes sociais ou em aplicativos de relacionamento—, pessoas podem sofrer estelionato sentimental, que é quando alguém obtém vantagem ilícita em prejuízo alheio a partir de relações de caráter emocional. Esse último caso é mostrado no documentário da Netflix "O Golpista do Tinder", que conta a história de como o israelense Shimon Hayut teria acumulado mais de 10 milhões de dólares em golpes aplicados em mulheres que conhecia pelo aplicativo de namoro.

Algumas que caíram no golpe de Hayut tiveram coragem de denunciar o criminoso, mas muitas se perguntaram o que as fez acreditar tão plenamente e cair na armadilha de sedução do golpista. A resposta, que obviamente inclui a lábia do bandido, envolve mais de um aspecto e pode mostrar que, de fato, as emoções do momento de desejo intenso exercem influência considerável sobre o comportamento, mas há outros fatores decisivos no rumo que as pessoas tendem a dar às suas paixões.

Sabe-se que, cientificamente, uma vez estabelecida uma conexão emocional com alguém tão atraente, o cérebro apaixonado estará empenhado em incentivar a continuidade dos sentimentos românticos por meio de uma série de reações químicas. Tratam-se de mecanismos neurais e fluxo de vários hormônios e neurotransmissores em uma ampla mobilização que, de acordo com a psicologia evolucionista, existe para motivar a perpetuação da espécie pelo intenso prazer proporcionado.

Cecilie Fjellhøy, uma das personagens entrevistadas em "O Golpista do Tinder" - Netflix/Reprodução - Netflix/Reprodução
Cecilie Fjellhøy, uma das personagens entrevistadas em "O Golpista do Tinder"
Imagem: Netflix/Reprodução

Como paixão altera cérebro

Embora não exista uma área de pesquisa neurobiológica específica para mecanismos cerebrais da paixão ou do amor, ao menos três alterações, compartilhadas com outras funções do cérebro, são bem conhecidas, segundo Leonardo Machado, médico psiquiatra, terapeuta cognitivo, professor com mestrado e doutorado em neuropsiquiatria e ciências do comportamento pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

A primeira delas é a hiperativação de uma área do cérebro conhecida como circuito de recompensa ou circuito do prazer, cuja estrutura principal é o chamado núcleo accumbens. É nessa área que situações geradoras de satisfação —sexo, comida, substâncias psicoativas, projetos pessoais— provocam a liberação de dopamina, o neurotransmissor relacionado ao prazer. Na paixão, a intensidade dessa descarga é tal que leva a pessoa apaixonada a ficar obcecada pela outra.

Nos primeiros seis meses de uma relação afetiva, há uma descarga maior de dopamina nesse núcleo, ou seja, a pessoa tem uma intensidade de prazer maior. "Com a hiperativação desse núcleo, há alteração do córtex pré-frontal, área responsável pelo raciocínio, senso crítico e controle dos impulsos, num mecanismo parecido ao da dependência química, em que a pessoa pode começar a tirar dinheiro da casa dos pais para comprar drogas e, mesmo percebendo o prejuízo, não consegue pôr limite", diz Machado. Também na paixão o raciocínio crítico e o controle inibitório ficam alterados devido a uma maior descarga de dopamina na região.

Duas outras alterações podem afetar o raciocínio e o foco de interesse da pessoa apaixonada. Em uma, no eixo formado pela área do hipotálamo e pela glândula hipófise, ambas no cérebro, mais as glândulas adrenais, localizadas acima dos rins, há uma ativação na descarga de noradrenalina, neurotransmissor relacionado ao estresse, provocando estimulação, coração acelerado, boca seca, frio na barriga, alterações do sono e do apetite.

Em outra alteração, há maior liberação de oxitocina, neurotransmissor que provoca o sentimento de estar vinculado, pertencente a alguém, presente também na relação inicial entre mães e bebês, direcionando a atenção para o outro. Todas são reações que alteram o foco da pessoa, deixando-a obcecada, e dificultam sua capacidade de ajuizamento. Há, no entanto, outros aspectos a considerar.

Personalidade também entra em jogo

Apesar desse mecanismo fisiológico afetar todas as pessoas, alguns tipos de personalidade apresentariam maior facilidade para sofrer problemas decorrentes da paixão por tenderem a criar dependência do outro. Como no caso de bebida alcoólica, que altera o córtex pré-frontal de todos, desinibe, mas algumas pessoas, porém, revelam facilidade para dependência química e reagem tendo alterações específicas.

Entre os tipos de personalidade mais inclinados a envolvimentos problemáticos estariam os com sentimento de inferioridade e vazio existencial, pessoas que não conseguem ficar sozinhas. Elas acabariam se apaixonando com mais facilidade e permanecendo em relacionamentos ruins, como os abusivos, por medo de ficarem sós. Nesse perfil, cita o psiquiatra, se enquadrariam também quem tem transtornos de personalidade borderline e histriônico ou pessoas com algumas de suas características, conhecidas pela emotividade excessiva e instável, além de intensidade e rapidez nas relações (conhece hoje e já vira melhor amigo).

Vários outros fatores, porém, podem estar envolvidos em situações como os golpes na internet, não necessariamente apenas paixão, considera Ivan Mario Braun, médico psiquiatra com mestrado e doutorado em psiquiatria pela FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

Segundo ele, como todos os estados de emoção alterados, uma paixão propicia um viés no raciocínio. A pessoa está apaixonada por alguém e um olhar, uma palavra, um jeito de se vestir é interpretado como sinal de que o outro também está apaixonado por ela. "Isso é uma coisa comum, a gente vê no dia a dia e pode acontecer com pessoas mais ingênuas, menos experientes, quando as pessoas são mais propensas a terem dificuldade de interpretar as nuances do comportamento do outro e tendem a interpretações menos objetivas", diz.

Entre os diversos aspectos em interação nos golpes, haveria o da experiência de vida, uma vez que há pessoas mais crédulas por ingenuidade, as pessoas com carência afetiva, além de deficiências no repertório social que também poderiam influenciar, como no caso de pessoas com fobia social que, por não se exporem a relacionamentos sociais com muita facilidade, acabariam não tendo muita experiência sobre o mundo. "Elas não têm coragem de sair e paquerar e aí vem alguém que toma essa atitude e isso pode parecer muito interessante por ela não precisar enfrentar o medo. Mas poderá ser uma pessoa mais propensa a ser vítima desse tipo de situação", analisa Braun.

Viciada em paixão  - Unsplash - Unsplash
A estratégia do golpista, somada ao perfil de alguém em busca de sensações, com idealização romântica e mais impulsividade, talvez seja uma receita bastante eficaz para quem dá esse golpe
Imagem: Unsplash

Do mesmo modo ocorreria quando a pessoa é movida por carência afetiva. "Ela também estará mais predisposta a ter esse viés cognitivo de interpretar e ter o 'wishful thinking', ou seja, o desejar alguma coisa e isso leva-la a acreditar. A pessoa está carente e aí alguém entra em contato através de um site de relacionamento e 'vende' aquilo que quer, faz uns elogios, fala coisas agradáveis e acaba envolvendo. Então carência também é algo que propicia as pessoas a se envolverem."

Golpe com receita eficaz

Embora o mecanismo da paixão possa acontecer com qualquer pessoa ao surgir identificação com alguém, a existência de perfis emocionais mais frequentes entre as vítimas nos romances online é um fato, conforme apontam estudos já realizados, afirma Camila Magalhães, médica psiquiatra do Hospital Sírio-Libanês. "O golpe parece ser dado mais nesses perfis, não só necessariamente numa questão de um mecanismo de paixão".

Em uma revisão de 12 estudos sobre o tema, publicada em 2020, foram descritas as características do perfil psicológico associado ao risco de cair nas armadilhas. O perfil tem predominância do sexo feminino (embora homens também sejam vulneráveis), meia-idade, impulsividade, idealização de um par romântico, busca de sensações (em psicologia, o chamado perfil "sensation seeking"), maior suscetibilidade a vícios e traços de neuroticismo, que pode ser entendido como uma pessoa ora ansiosa, ora angustiada, ora com afeto mais depressivo. Também foi constatado que o golpe, considerado duplo por ser afetivo e financeiro, é dado geralmente após um período entre 6 a 8 meses de relacionamento.

Apesar de estar apaixonado incluir acreditar no outro, a questão de o lóbulo frontal não raciocinar direito talvez não seja suficiente para explicar o motivo de as pessoas caírem nos golpes, pondera Magalhães. Segundo ela, há dois lados a serem considerados e um deles é o do golpista, que executa uma estratégia cuidadosa de dar muita atenção, fazer-se presente, formar vínculo, mostrar uma foto, depois outra (quase sempre falsas), enquanto a vítima vai criando uma projeção em cima do que ela está recebendo.

"Acredito que essa estratégia, somada ao perfil de alguém em busca de sensações, com idealização romântica e mais impulsividade, talvez seja uma receita bastante eficaz para quem dá esse golpe", observa Magalhães. "O lóbulo frontal afetado explica muito a paixão, mas o perfil de personalidade da vítima contribui bastante, inclusive porque, querendo ou não, a paixão tem um limite de duração e seria difícil pensar nessas pessoas ficando esse período todo movidas por um raciocínio prejudicado."