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'Me chamavam de boca torta': como ela superou o bullying por fissura labial

Bárbara Therrie

Colaboração para VivaBem

06/02/2022 04h00

A cicatriz na boca da gaúcha Camila Rocha, 44, jornalista e escrita, gerava curiosidade em quem não sabia o que ela tinha. Alguns adultos diziam que a marca era por alguma "arte" que ela tinha aprontado, os colegas da escola faziam bullying quando brigavam com ela. Com fissura labial, Camila passou por 5 cirurgias e se tornou um ícone de representatividade ao virar embaixadora da maior organização do mundo dedicada à causa da fissura labiopalatina e lançar um livro que conta a história de uma personagem com a condição.

"Minha mãe conta que quando eu nasci e o médico explicou que eu tinha fissura labial foi um baque para toda a família. Ninguém sabia o que era e havia muitas incertezas. Com cinco meses de vida, fiz minha primeira cirurgia e fiquei com uma cicatriz na boca. Durante o pós-operatório, minha tia foi limpar meu nariz porque eu estava chorando e arrancou um ponto, fiquei com um buraquinho no lábio.

Minha mãe era muito protetora, ela tinha medo de eu ser discriminada, de as pessoas fazerem perguntas, de não serem gentis comigo. Vivia perguntando aos meus pais sobre a minha condição, mas eles quase não conversavam comigo sobre o assunto. Eles eram leigos, não sabiam me explicar por que eu havia nascido daquele jeito, diziam que não era nada e que eu era bonita.

Por conta dessa superproteção, passava muito tempo só em família, fui ter algum tipo de vida social aos cinco anos quando fui para a pré-escola. Foi nessa fase que a ficha caiu e vi que eu era diferente.

Imagem: Arquivo pessoal

Muitas crianças me perguntavam por curiosidade o que era a cicatriz na minha boca, mas outras usavam isso para me depreciar e ofender durante alguma briga, me chamavam de boca torta, diziam que eu tinha um buraco na boca.

Me defendia, nunca fui do tipo que me trancava no quarto para chorar. Sofria e ficava com raiva, é horrível ser diferente, ninguém quer, mas nunca me coloquei no lugar de autopiedade.

Por muito tempo vi a minha condição com um fardo, achava que era a única pessoa no mundo a ter fissura labial, não tinha noção de que havia mais gente. Também ficava brava quando os pais dos meus colegas perguntavam o que eu tinha aprontado para ficar com aquela cicatriz e diziam que eu era muito arteira.

Um ano depois de ter entrado na escolinha, quis fazer uma segunda cirurgia com a ilusão de que fosse ficar 'normal', mas desisti na última hora.

Aos 12, me apaixonei pela primeira vez e decidi operar na tentativa de ficar mais bonita. Fiz o procedimento com outro médico, mas o resultado ficou horrível, fiquei decepcionada e chorei muito. Quando eu fechava a boca, dava para ver um pouco do meu dente pelo buraquinho na boca —daquele ponto que minha tia arrancou quando eu era bebê. Para corrigir isso, o cirurgião mexeu na cicatriz e a deixou em forma de raio.

Na adolescência, todas as minhas amigas começaram a namorar, menos eu, porque me achava feia e tinha certeza que nenhum guri ia me querer. Saía com elas, me divertia, mas me via em desvantagem, não era vaidosa e não me arrumava porque pensava: 'Não vai adiantar nada'.

Uma amiga me incentivou a me cuidar, a me vestir melhor e a me maquiar. Arranjei meu primeiro namorado aos 19, poucos meses antes de fazer a terceira cirurgia com o primeiro médico que me operou quando eu tinha cinco meses e com um otorrino.

Imagem: Arquivo pessoal

O resultado foi bem melhor: eles deixaram minha boca mais simétrica, mais centralizada, fecharam o buraquinho e tiraram um calombo do meu nariz. Além da melhora estética, também ganhei mais qualidade de vida em termos de saúde.

Respirei pelo nariz pela primeira vez na vida aos 19 anos, foi uma sensação incrível. Passei a ficar menos rouca e os quadros de bronquite asmática e rinite alérgica melhoraram bastante.

Dois anos antes de me formar na faculdade de jornalismo, aos 21, fiz a quarta cirurgia porque queria sair bem nas fotos da formatura. O médico tirou a cartilagem da orelha e realizou um enxerto no nariz para deixá-lo menos caído, ele também fez um contorno no lábio.

De lá para cá me tornei uma outra pessoa, fiquei muito mais vaidosa e finalmente passei a me achar uma mulher bonita. Minha última cirurgia foi aos 32 anos. Já namorava o meu marido, com quem estou casada há 8 anos, e estava satisfeita com o meu rosto, mas como ia colocar silicone nos seios, meu cirurgião sugeriu de eu fazer alguns retoques, e aceitei.

Em 2018, me envolvi em um acidente de trânsito com um motoqueiro. No meio da discussão, ele perguntou o que eu tinha na boca, não de uma forma ofensiva, mas demonstrando interesse. Falei sobre a fissura labial, ele contou que o filho dele de cinco meses também tinha e que ia fazer a cirurgia. Ele se emocionou e me pediu ajuda para entender mais sobre a condição. Eu o ajudei.

Nesse mesmo dia fui à aula do curso de formação de escritores que estava fazendo e contei o que tinha acontecido. Meu professor falou: 'Esse é o seu livro, é a história que você vai contar para ajudar as pessoas'.

Imagem: Jackson Ciceri

A partir daí, criei um perfil no Instagram (@fissuradapelavida) e comecei a ter contato e a trocar experiências com outros fissurados e familiares. Fui me tornando um ícone de representatividade. Em 2020, participei de uma campanha de conscientização da fissura labiopalatina, o vídeo viralizou e foi visto em vários países da América Latina.

Nesse mesmo ano, me tornei embaixadora da Smile Train, maior organização do mundo dedicada à causa da fissura labiopalatina, que apoia, em média, a realização de cerca de cinco mil cirurgias por ano, e conta com 42 centros parceiros habilitados para tratar crianças com a condição.

Em meio a esse processo, comecei a trabalhar no meu livro, que foi lançado em novembro de 2021. 'Fissurada pela Vida' narra a trajetória de Carol Martins, que nasceu com fissura labial. A personagem tem muito de mim, são histórias que aconteceram comigo, que registrei nos diários que escrevo há quase 30 anos, desde 1992.

No entanto, é uma autoficção, adaptei as histórias para o universo da protagonista, criando uma personagem forte e empoderada, que viu na fissura labiopalatina a inspiração para realizar seus sonhos e também para ajudar os outros. Meu desejo é que meu livro atinja também as pessoas que não conhecem a condição, que elas se solidarizem e tenham o desejo de ajudar a comunidade de fissurados."

Saiba mais sobre a condição

O que é a fissura labiopalatina?
Fissura labiopalatina é o defeito congênito mais comum entre as malformações que afetam a face do ser humano, o que corresponde a cerca de 25% de todos os defeitos congênitos. "Fissura" significa fenda ou abertura e, portanto, fissura labiopalatina é um defeito de não fusão de estruturas embrionárias, em que pode estar acometido o lábio, o palato ou o lábio e o palato, de um ou dos dois lados da face.

O que causa?
A causa exata da fissura labiopalatina permanece incerta, mas ela pode ocorrer pela interferência de fatores ambientais ou genéticos, ou uma combinação de ambos. Entre os fatores ambientais mais comuns e que são de risco para quaisquer malformações congênitas, podemos citar o consumo de bebida alcoólica, cigarros e medicamentos como corticoides e anticonvulsivantes, principalmente durante o primeiro trimestre da gestação.

Como é a cirurgia?
De forma geral, o reparo cirúrgico da fissura labial é feito entre 3 e 6 meses de idade; da fissura palatina entre 12 e 18 meses de idade; e da fissura alveolar (na gengiva) entre 8 e 12 anos de idade.

A cirurgia tem como objetivo a reabilitação plena do paciente portador de fissura labiopalatina, neutralizando ao máximo o estigma da deformidade: do ponto de vista estético envolvendo lábio e nariz, oclusão dos dentes e crescimento ósseo facial; funcional envolvendo desenvolvimento de fala e audição normal; bem como psicológico e de qualidade de vida dele e de sua família.

Fonte: Daniela Tanikawa, médica assistente da disciplina de cirurgia plástica e queimaduras do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), médica do Grupo de Fissuras Labiopalatinas do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus (SP) e membro do Conselho Médico Consultivo da Smile Train Brasil.

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