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Pessoas que tentaram suicídio relatam descaso na emergência de hospitais

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Letícia Simionato

Colaboração para o VivaBem

17/09/2021 04h00

"Sabe o que você faz quando ficar nervosinha assim? Vai pescar". O "conselho" não foi dado por um parente sem noção, mas, sim, por um médico da área de emergência de um hospital público da zona leste de São Paulo. A costureira Suzane Barbosa, 32, teve que ouvir isso após ter tentado suicídio por ingestão de medicamentos, em 2019.

"Quando entrei na sala do hospital, já ouvi de imediato a enfermeira: 'bem agora que estava acabando meu turno!'. Ela mal olhou na minha cara, perguntou o que eu tinha tomado e falou que ia fazer a lavagem estomacal. Eu fiquei assustada e falei que não queria. Então, ela perguntou: 'você realmente tomou alguma coisa ou está fazendo isso só para chamar a atenção?'".

Durante o procedimento, Barbosa ficou duas horas na sala com muito frio e sozinha, ainda ouviu a enfermeira falando novamente que ela só queria chamar atenção. "Não aguentei, puxei a sonda e tirei a agulha do braço. Esguichou muito sangue e minha mãe teve que colocar um agasalho para estancar''. Barbosa foi levada para uma maca no corredor e só saiu do hospital depois de passar pelo médico que a mandou ir pescar.

Em Curitiba, Vanessa*, 24, passou por situação semelhante. Após a ingestão de remédios, foi parar no hospital e o "inferno começou". "Duas enfermeiras pediram para minha mãe se retirar porque, segundo elas, 'a coisa ia ficar feia' e começaram o procedimento de lavagem. Elas forçaram a sonda no meu nariz enquanto debochavam: 'olha só, acabei de descobrir que você tem desvio de septo'; 'isso que dá fazer merda, agora aguenta' e empurravam a sonda cada vez mais. Eu via o sangue escorrendo e o olhar de desprezo daquelas mulheres. Por fim, ouvi, entre gritos, que a sonda precisava ser engolida 'igual aos comprimidos que eu tomei'''.

Vanessa ficou suja de sangue, sentindo o gosto de plástico na boca e com um novo trauma. "Me senti humilhada e violentada por profissionais que, por algum motivo, queriam me fazer sofrer". Quando recebeu alta, uma delas ainda disse "que bom que você está bem. Pela quantidade de remédios que tomou, não vai ter dor de cabeça ou uma infecção tão cedo".

A reportagem ouviu 10 relatos de pacientes que tentaram suicídio e sofreram maus-tratos no atendimento de emergência de hospitais. Nas redes sociais e em conversas com profissionais da área, também não é difícil se deparar com depoimentos como esses. A psicóloga Janaína Catolino afirma ser uma situação recorrente. "Atendi uma paciente que, durante o procedimento de alta, uma enfermeira disse que, da próxima vez, podia procurá-la, pois ela arrumaria um medicamento que seria 'tiro e queda' para se matar".

adolescente em consulta com médico hebiatra  - iStock - iStock
Há um julgamento e uma dificuldade de compreender os motivos do paciente
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Por que um profissional da saúde age dessa forma?

Um artigo da professora do Departamento de Medicina Preventiva da USP (Universidade de São Paulo) Rosana Machin discute a influência do "modelo de inteligibilidade da doença" —presente na formação dos profissionais de saúde — que, baseado na ideia do corpo como lugar privilegiado do cuidado, e a doença como um evento de caráter acidental, prepara para salvar vidas. Dessa forma, as situações de lesões autoprovocadas —que inclui aborto e alcoolismo, por exemplo — são consideradas eventos carregados de intencionalidade, resultantes de uma escolha, o que não gera a identificação de seus autores como doentes ou vítimas.

Segundo Machin, há um julgamento e uma dificuldade de compreender os motivos de a pessoa não querer viver. "Eles estão lá para ajudar uma pessoa que sofreu um acidente ou um tipo de violência. Dessa forma, quem promove uma lesão autoprovocada é visto como alguém que está criando um problema. Essa distinção continua muito presente na formação da área da saúde e borra o atendimento de emergência", afirma.

A estudante Caroline Assis, 24, de São Paulo, é um exemplo de como esse julgamento está presente. Ela foi ao hospital com dor no estômago, mas quando foi tomar soro, ao perceberem os cortes no braço por tentativas de suicídio anteriores, fizeram comentários desagradáveis como: "já que você gosta tanto de ser perfurada e de cortes, vou aplicar várias vezes para te satisfazer" e "isso é falta de Deus". "Eu entrei passando mal por um motivo comum e saí pior. Aplicaram a medicação de forma errada e quando fui dizer que estava doendo, riram: 'mas você gosta de sentir dor, não é?'", conta.

A médica Isabela Pina, psiquiatra do HC-UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), acredita que há uma certa lacuna nos currículos da graduação. Ela cita como exemplo que, apenas no ano passado, foi adicionado ao curso de medicina da UFPE o rodízio obrigatório em saúde mental. "Essa atenção ao aprendizado e experiência com pacientes em estado de adoecimento psíquico é recente, o que justifica, em parte, essa forma inadequada de lidar com as tentativas de suicídio".

Alexandrina Meleiro, vice-presidente da ABEPS (Associação Brasileira de Estudo e Prevenção de Suicídio), destaca que os profissionais da emergência, de um modo geral, estão sobrecarregados e com burnout pela estrutura precária, mesmo em hospitais particulares. "É como se houvesse uma censura, 'nós estamos aqui tentando salvar vidas e você tenta contra a sua'. Além disso, há uma falta de conhecimento de que o suicídio é uma emergência médica por um quadro psiquiátrico. Há um tabu com a morte autoinfligida como se a pessoa tivesse que sempre estar bem para enfrentar qualquer situação", comenta.

mão de paciente em maca de hospital - GettyImages - GettyImages
Profissionais acreditam que há uma certa lacuna nos currículos da graduação
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Como abordar os pacientes

O Hcor, por exemplo, criou um Protocolo de Avaliação e Cuidados para o Suicídio. "Fizemos uma capacitação da equipe como um todo. Os médicos do PS trouxeram para nós uma dificuldade muito grande em saber como abordar esses pacientes. O profissional não pode julgar. Temos que ser imparciais ", afirma Cury.

Ela destaca a importância da presença de um psicólogo ou psiquiatra nos atendimentos de urgência para realizar a ponte entre o paciente e a equipe. No entanto, nem sempre isso é possível. "O importante é capacitar os profissionais para entender o motivo de a pessoa tentar suicídio. O sofrimento dela é tão grande que fica insuportável. Então, na cabeça dela, é mais fácil morrer do que buscar ajuda".

Para Pina, tudo começa na formação, com treino de habilidades de comunicação e empatia. Machin corrobora com isso. Segundo ela, quando o profissional da saúde está em atendimento, os valores morais não vão sumir, mas precisam ficar suspensos diante daquele contexto, pois há outras prioridades, como salvar o paciente.

Barbosa saiu do hospital traumatizada, o mau atendimento, segundo ela, a "fez ter ainda mais vontade de morrer". Alguns pacientes fogem antes mesmo de receberem alta, como Tyler Silva, 27. O operador de telemarketing conta que escutou a enfermeira dizendo: " vendo? Adiantou? Agora tem que passar por isso", enquanto enfiava a sonda com tudo.

"Toda hora vinha alguém e me olhava com cara de desprezo ou fazia algum comentário do tipo: 'tanta gente lutando pra viver e outros fazendo isso, tirando lugar de quem precisa'. Outra disse que, se eu fizesse de novo, eles não me atenderiam mais". Após ficar três horas isolado, ele fugiu.

Segundo Silvia Cury, gerente de saúde mental do HCor, nos últimos anos, ficou cada vez mais comum os pacientes tentarem suicídio dentro dos hospitais. "Quando a pessoa percebe que não conseguiu se matar, sente que fracassou e ainda foi maltratada por isso. Então, pode ficar mais frustrada, trazendo uma necessidade interior maior de morrer", afirma.

Enquanto as mudanças necessárias não são aplicadas em todos os hospitais, os pacientes continuam sendo afetados. Depois de ouvir que "se queria morrer, era melhor fazer direito'' e que ''deveria ficar numa cama para aprender a valorizar a vida", Isabela*, 21, se sentiu muito pior e só queria ter "feito direito mesmo'' para não dar trabalho. Meleiro destaca que é importante abordar sem sermões. "Só a pessoa sabe a dor, sofrimento e angústia que está sentindo. Qualquer palavra pode piorar a situação. É necessário ouvir com compaixão e fazer o melhor para ajudar", afirma.

Procure ajuda

Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

*Nomes fictícios para preservar identidade do personagem