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Mito ou verdade: a dieta cetogênica pode tratar o câncer?

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Imagem: iStock

Lívia Inácio

Colaboração para VivaBem

23/08/2021 04h00

Resumo da notícia

  • Eficiente no tratamento da epilepsia e muito usada para o emagrecimento, a dieta cetogênica divide opiniões entre profissionais da saúde
  • Há vários estudos em andamento para verificar sua eficácia no tratamento do câncer, mas não há benefícios comprovados
  • Embora adeptos da dieta a recomendem como tratamento complementar do câncer, entidades como o INCA desencorajam o seu uso para esse fim
  • Nutricionistas indicam uma dieta variada e individualizada durante o tratamento do câncer

Quando o assunto é a dieta cetogênica, o debate entre especialistas costuma ser acalorado. Com eficácia comprovada no tratamento da epilepsia e muito usado por quem quer emagrecer, esse regime alimentar pobre em carboidratos e rico em gorduras é amplamente difundido na internet e divide opiniões na área da saúde. Mas alguns pareceres são consensuais na comunidade científica. Um deles diz respeito ao tratamento do câncer.

Mesmo entidades entusiastas desse cardápio restritivo, como a ABLC (Associação Brasileira LowCarb), reforçam que não há estudos suficientes para dizer que ele seja capaz de tratar o câncer. Então, de onde veio essa ideia? Primeiro, é preciso entender como a cetogênica funciona.

Sua avó já dizia: saco vazio não para em pé. Então não é segredo que o corpo precisa de energia para se manter funcionando. Acontece que o combustível dele pode vir de duas fontes: da glicose, fabricada a partir dos carboidratos, ou dos chamados corpos cetônicos, que nascem da metabolização da gordura.

O objetivo da dieta cetogênica é fazer o organismo funcionar à base de corpos cetônicos, por meio de uma redução drástica no consumo de carboidratos. Nossa reserva de glicose é suficiente para no máximo 36 horas. E, na redução dela, produzimos e usamos corpos cetônicos (provenientes da gordura), o que leva ao emagrecimento. "Para se ter uma ideia, o indivíduo em cetose ingere até 50 g de carboidratos por dia. Uma maçã tem o equivalente a 30 g", exemplifica o cirurgião do aparelho digestivo Carlos Bastian, membro da diretoria da ABLC.

Outra eficácia comprovada é no tratamento da epilepsia, doença neurológica que leva a movimentos descontrolados e crises convulsivas. Os primeiros estudos mostrando essa efetividade, especialmente em crianças, foram publicados no início do século 20, sendo o mais marcante deles o do médico estadunidense Russell Wilder, que cunhou o termo dieta cetogênica.

Seus experimentos na Clínica Mayo, divulgados em 1921, foram tão eficientes que até hoje o regime é usado para tratar a condição neurológica mediante um acompanhamento especializado e a reposição nutricional adequada.

E quanto ao câncer?

A associação da dieta cetogênica ao tratamento do câncer veio após um estudo do médico alemão Otto Heinrich Warburg, aclamado com o Nobel de Medicina em 1931. Ele descobriu que as células cancerígenas se alimentavam de glicose. Com base nisso, cientistas passaram a estudar se a baixa ingestão de carboidratos poderia então matar essas células de "fome".

Há décadas, pesquisadores têm se empenhado em desvendar o mistério. Mas ainda não há uma resposta. Isso porque, conforme explica Bastian, as pesquisas que apontam tal eficiência foram feitas em animais, por meio de análises in vitro, ou em grupos com poucas pessoas.

Além disso, o cirurgião oncológico Diego de Aragão Bezerra, professor da UFC (Universidade Federal do Ceará), explica que muitos resultados obtidos em pessoas são controversos. "Notou-se que algumas vezes células do tecido tumoral foram capazes de metabolizar corpos cetônicos, indicando uma habilidade do tumor em mudar sua fonte de energia", diz.

Cabe acrescentar ainda que, mesmo se a eficiência já tivesse sido comprovada, seria restrita a alguns tipos de câncer, como o de intestino, de mama e de endométrio, já que não é todo tumor que responde minimamente aos testes. "Em resumo, ainda temos um longo caminho pela frente", diz Bastian.

A dieta cetogênica, que prioriza gorduras, pode provocar deficiência nutricional, fragilizando ainda mais o indivíduo com câncer - iStock - iStock
A dieta cetogênica, que prioriza gorduras, pode provocar deficiência nutricional, fragilizando ainda mais o indivíduo com câncer
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Esse dilema não é particular do câncer. O psiquiatra Régis Chachamovich, também da ABLC, menciona que, embora a cetogênica seja usada até mesmo no tratamento de quadros depressivos e ansiosos, os estudos que apuram essas relações não têm uma resposta definitiva. Análises ainda observam a eficiência da dieta para o tratamento de outras condições, como autismo, cefaleia e demência.

É nesse sentido que a existência de dados animadores sobre o regime não quer dizer que ele seja eficaz e ponto final. As pesquisas devem ter comprovação em humanos, com um número significativo de participantes, e passar por um filtro rigoroso da comunidade científica para que se possa bater o martelo.

"Mal não faz". Será?

Por entenderem que a dieta cetogênica é "saudável", adeptos indicam seu uso como prevenção do câncer (já que a obesidade está ligada a 13 tipos dele) e como complementação ao tratamento convencional, segundo Bastian.

E é aí onde especialistas mais divergem. Autoridade no combate à doença, o INCA (Instituto Nacional do Câncer) chegou a lançar um guia alertando quanto ao risco de dietas restritivas em pessoas com diagnóstico positivo. A cetogênica entra na lista.

O documento reforça, por exemplo, que, além de o método não ser comprovadamente eficaz, todas as células do corpo precisam de glicose. E quando o organismo sente falta dela, encontra outros meios de produzi-la, usando, por exemplo, proteínas musculares.

Isso gera um emagrecimento que não é bom para quem já está debilitado. "O fato de o tumor utilizar a glicose como fonte de energia não pode ser, portanto, justificativa para retirar os carboidratos da alimentação.", diz o texto do órgão ligado ao Ministério da Saúde.

Segundo a nutricionista Gabriela Vilaça, da Seção de Nutrição e Dietética do Hospital do Câncer II, que integra o INCA, por ser difícil de seguir, o regime pode até trazer mais problemas do que benefícios. É possível que haja deficiência nutricional, fragilizando ainda mais o indivíduo. Assim, a especialista defende um acompanhamento específico para cada paciente. Ela explica que pessoas em tratamento, independente da dieta adotada, podem apresentar alterações no paladar, inflamações, perda de apetite e tudo isso deve ser levado em conta no planejamento alimentar.

Além disso, em hipótese alguma, o paciente deveria largar o tratamento para tentar controlar a doença apenas com a alimentação. A nutricionista Danile Sampaio, do Hospital Sírio-Libanês, lembra que na internet circulam muitos mitos alimentares, sejam eles ligados a dietas ou mesmo a alimentos pontuais. Por isso, é fundamental redobrar a atenção ao que se lê e vê.

Sempre que se deparar com uma dieta alternativa, o paciente deve levá-la ao seu médico ou nutricionista a fim de entender sua aplicabilidade e real eficácia. "Ao menos ainda não existe uma dieta universal para o tratar o câncer. É preciso olhar sempre caso a caso", reforça.

Enquanto não há um veredicto científico sobre o assunto, o que Vilaça indica é uma dieta com alimentos in natura ou minimamente processados, conforme a orientação do Guia Alimentar para a População Brasileira. Além disso, o cardápio deve ser variado, individualizado e caber na rotina do paciente. "De nada vai adiantar um regime complicado, que a pessoa terá dificuldade de cumprir", finaliza.