Topo

Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Viu o filme 'Awake'? O que aconteceria se não conseguíssemos dormir mais?

Filme explora futuro distópico em que ninguém consegue dormir - Reprodução
Filme explora futuro distópico em que ninguém consegue dormir Imagem: Reprodução

Marcelo Testoni

Colaboração para o VivaBem

20/08/2021 04h00

Resumo da notícia

  • Dormir é essencial para a saúde, pois entre os muitos benefícios recarrega nossas energias
  • Privação de sono prejudica organismo e rendimento diário e, ao extremo, pode até matar
  • Há muitos fatores por trás de noites em claro, mas a maioria deles pode ser evitada e tratada

Você já assistiu ao filme "Awake", da Netflix? Lançada em junho deste ano, a ficção explora uma Terra em que ninguém mais —ou praticamente ninguém — é capaz de dormir após um estranho fenômeno da natureza. Dá para adivinhar o "pesadelo" em que a humanidade, embora acordada, se meteu. Mas e fora das telas, não conseguir pregar o olho de jeito nenhum, mesmo cansado, é possível? Se o cérebro não relaxar, quais as consequências para a saúde?

Para explicar, primeiro é preciso compreender a finalidade do sono. Júlio Barbosa Pereira, médico pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e neurocirurgião, diz que ele serve para recarregar as baterias do organismo e, por consequência, melhorar a saúde física e mental. Dormir ajuda na filtragem e memorização das experiências vividas ao longo do dia, ajudando a concentração e na aquisição de novas informações. Além disso, contribui para regular os hormônios, equilibrando apetite e humor, e garantindo o pleno funcionamento do metabolismo e sistema imunológico.

Como atua no desenvolvimento e maturação do sistema nervoso, é fundamental que na infância não seja inferior a 10/12 horas por dia. O natural de recém-nascidos e crianças até os cinco anos costuma ser um pouco mais, mas não necessariamente um sono contínuo. Dormem respectivamente 17 a 13 horas por dia, a maior parte à noite e o restante são cochilos diurnos.

Sem dormir, colapsamos

Segundo a ciência, se adolescentes e adultos precisam dormir, em média, oito horas diárias (embora isso varie um pouco mais ou um pouco menos de pessoa para pessoa), não respeitar os ponteiros do próprio relógio biológico acaba repercutindo em consequências graves. No começo, os sintomas mais comuns da privação de sono são perda de atenção, atraso de respostas a estímulos, sonolência durante o dia, cansaço, falhas de memória e irritabilidade, lista Rodrigo de Faria Ferreira, neurologista da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo.

Depois, caso as eventuais noites mal dormidas evoluam para semanas insones, o que se observa é um agravo dos sintomas mencionados, acrescidos de outros: falta de libido e ânimo, que pode evoluir para depressão, enxaqueca, dificuldade para dirigir e tomar decisões lógicas, queda da imunidade e propensão a adoecer, elevação da pressão arterial, perda de massa muscular, distúrbios alimentares, alteração endócrina, mau funcionamento dos órgãos.

Nesse ritmo, a qualidade de vida despenca. Liberada diariamente em doses acima do normal, a dupla de hormônios adrenalina, da ansiedade, e cortisol, do estresse, não só contribui para os aumentos de peso, perda de cabelo, colesterol e diabetes, como de se sofrer um ataque cardíaco ou AVC, caso o sistema cardiovascular já esteja sobrecarregado ou doente. Quatro horas diárias de sono por seis dias consecutivos são suficientes para se estabelecer esse risco.

Cérebro não deve se viciar

Agora, não "desligar", nem que seja por algumas horinhas, em questão de alguns dias pode ser fatal. Sem dormir por mais de 30 horas seguidas, a pessoa fica desorientada, muito agressiva e fraca. A partir de 72 horas, alucina e corre risco de sofrer ataque epilético. Em 2017, cientistas da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) também descobriram e publicaram no periódico Journal of Neuroscience que a privação de sono faz com que algumas células cerebrais "devorem" outras.

Ninguém consegue mais dormir no filme pós-apocalíptico “Awake”, da Netflix - Reprodução/Awake/Netflix - Reprodução/Awake/Netflix
Enxaqueca e dificuldade para dirigir e tomar decisões lógicas são alguns dos sintomas da falta de sono
Imagem: Reprodução/Awake/Netflix

Exausto, o cérebro constante e involuntariamente entra em microssonos (episódios de inconsciência que duram segundos, como piscadas), mas à medida que é mantido em alerta contra vontade, tende a se "viciar" em se manter acordado. Seus neurotransmissores são bombardeados por estímulos que retroalimentam tensão, ansiedade e preocupação, ainda mais se junto houver consumo de medicamentos, cocaína e estimulantes, como café, cigarro e bebidas energéticas.

Pereira lembra o caso de Randy Gardner, americano que nos anos 1960 bateu o até então recorde mundial de mais tempo que um ser humano consegue ficar sem dormir (11 dias e 25 minutos). Ele relatou que privar o sono ao extremo lhe rendeu décadas de insônia grave. No Japão, segundo o Conselho Nacional de Defesa, muitos fazem isso em prol da carreira e o total de óbitos após 80/100 horas extras na jornada de trabalho é estimado em até 10 mil ao ano.

Como não virar "zumbi"

Comportar-se como personagens de "Awake", competidores de insônia ou workaholics não é normal e muito menos saudável. Para desacelerar os pensamentos e conseguir dormir bem é preciso que se respeite os próprios limites (tanto que o Guinness Book parou com a modalidade de privação), como buscar ajuda médica se as noites têm sido frequentemente conturbadas, em claro, e os sintomas sentidos pelo organismo estiverem prejudicando as tarefas diárias.

Havendo relação entre privação de sono e desordens neurológicas e psiquiátricas (transtornos de ansiedade generalizada, bipolaridade, déficit de atenção e hiperatividade, estresse pós-traumático), o tratamento precisa ser conjunto. "A insônia mais comum é causada, em particular, pela depressão. Alguns trabalhos também mostram que 35% das pessoas insones têm histórico familiar, a mãe é a portadora mais comum", afirma Luiz Scocca, psiquiatra pelo HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

Nesse contexto, são indicados psicoterapia, acompanhamento e intervenção medicamentosa, a depender da intensidade e recorrência dos sintomas. Quadros leves podem ser contornados com revisão de hábitos: dieta leve antes de dormir, atividades físicas diurnas, meditação, passatempos prazerosos, controle do peso e organização de tempo e afazeres. Evite ainda à noite filmes tensos e exposição a muita luz, especialmente a azul, de celulares, e que pode alterar o ritmo circadiano (que regula o organismo) e a melatonina, "hormônio do adormecer".

Casos de apneia do sono (obstrução da respiração que provoca ronco alto e noites agitadas) podem requerer CPAP, uma máquina que ajuda a respirar melhor, ou aparelhos bucais e cirurgias. Só não há tratamento disponível atualmente para condições extremamente raras e ainda pouco compreendidas, a exemplo da "insônia familiar fatal", de origem genética e cerebral, complementa Scocca. A doença produz danos cognitivos e mata em poucos meses.