'Temos que elaborar o nosso luto', diz roteirista de 'Sessão de Terapia'

Sucesso de público no Brasil, a série "Sessão de Terapia" apresenta os diálogos complexos e nada leves do terapeuta Caio —vivido por Selton Mello — com seus pacientes. Na quinta temporada, ele ainda vai revisitar os próprios demônios ao se consultar com Davi (Rodrigo Santoro), um terapeuta que cuida de crianças.
o texto pode conter alguns spoilers da nova temporada. Se você não quiser saber, pare aqui.
Jaqueline Vargas, roteirista da série, disse que o protagonista está muito fragilizado com a morte da mãe, que o abandonou quando criança e finalmente havia voltado. "Ele então vai para esse terapeuta de crianças e, quando percebe que está em um ambiente seguro, vira novamente aquele menino magoado narrando sua história", conta.
Jaqueline, que também é psicanalista, conta que as experiências mostradas na série são tiradas de observações que ela faz no dia a dia. "Todo roteirista é um voyeur", fala, enquanto ri. "Eu presto atenção em tudo, nas roupas, nos gestos, estou sempre olhando tudo." Ela contou ao VivaBem sobre a construção dos personagens da nova temporada e como a pandemia foi abordada na trama. Confira a seguir:
VivaBem: Caio aparece muito fragilizado nessa temporada e acaba mostrando muito da criança ferida dentro dele. Falar da criança interior, um tema que tem sido bastante abordado nas redes sociais, foi sua intenção?
Jaqueline Vargas: Sim, mas eu também quis mostrar uma outra abordagem terapêutica. O Caio tem uma forma de trabalhar, às vezes pouco ortodoxa, e aí vai se consultar com um terapeuta que praticamente só atende crianças, que é o Davi. Isso causa uma estranheza, mas quando ele se vê acolhido, ele começa a falar como uma criança, as memórias vão voltando. O que ele viveu foi muito sério, ele passou a vida toda achando que a mãe foi embora porque ele fez algo de errado, que ela não o amava, e que o pai era um herói. E não foi bem assim, ela vivia um casamento falido, ficou o quanto conseguiu por ele, tentou voltar e o pai não deixou. Essa confusão é porque a linguagem do adulto é diferente da linguagem da criança, e os pequenos entendem tudo de uma forma muito particular. Nós precisamos, sim, cuidar da nossa criança interior, porque todos temos essa parte dentro de nós.
VB: Além de roteirista, você também é psicanalista. Como foi essa trajetória?
JV: Eu me formei em artes cênicas, era atriz e dava aula de balé clássico. Aí resolvi virar roteirista. Quando peguei "Sessão de Terapia" para fazer, há quase 10 anos, comecei a estudar o tema e me apaixonei. E não parei mais de estudar. Quando a série voltou, em 2018, e eu voltei a escrever, percebi que isso me deu um olhar diferente para as histórias, foi algo muito positivo para mim.
VB: As histórias e os diálogos mostrados são bastantes complexos. De onde você tira as ideias mostradas ali?
JV: Eu coloco muitas coisas pessoais na construção dos personagens. Metade da Chiara (personagem da atriz Fabíula Nascimento na quarta temporada) era minha própria análise (risos). A Haidée (Cecília Homem de Mello, também da quarta temporada) era baseada na minha mãe. Também usei coisas que vi em amigos. A Guilhermina (Livia Silva, também da quarta temporada) recebeu o nome que eu daria se tivesse uma filha.
VB: Um dos temas abordados nessa quinta temporada é a depressão pós-parto, com a atriz Letícia Colin interpretando uma mãe sofrendo após o nascimento do bebê. Como você enxerga essa situação?
JV: Eu adoro o tema "mãe" porque é uma figura fundamental na vida do ser humano. Eu não tive filhos, mas observei minhas amigas e estudei muito para construir essa personagem que sofre com a idealização sobre a maternidade. Porque as pessoas mostram nas redes sociais a parte boa, o bebê bonitinho, mas ninguém mostra ele chorando, você toda descabelada tentando dar conta daquela criança. A personagem da Letícia tem uma expectativa de como ela deveria se sentir e ainda sente que todo mundo a esta julgando. É bastante pesado, ainda mais para uma marinheira de primeira viagem como ela. É uma personagem também que tem questões com a própria mãe, então ela começa a fantasiar que a pressão é maior ainda.
VB: Você acha que as mulheres são muito pressionadas quando viram mães?
JV: A figura materna está muito relacionada ao sagrado, ao divino. Você não pode reclamar porque ser mãe é a maior dádiva que uma mulher pode querer, de acordo com o pensamento coletivo. E é um conflito ser mulher, querer se dedicar à profissão e, quando o bebê vem, ter que se dedicar porque ele demanda atenção total. Espera-se muito dessa mãe, que não pode errar e tem que amar o filho acima de tudo. Mas o que é esse amor incondicional? Como ele acontece? Cada mulher tem um processo, e tudo bem não ser igual para todas. Não se nasce mãe, torna-se mãe.
VB: A pandemia e o estresse pós-traumático também viraram temas na nova temporada. Você acha que vamos precisar de terapia para entender o que passou quando tudo acabar?
JV: Sem dúvida. A Lídia (personagem vivida por Miwa Yanagizawa) é uma enfermeira que trabalhou direto na pandemia, tirou uma licença e, quando tenta voltar, não consegue passar da porta. Eu acredito que não só esses profissionais que estão na linha de frente, como também motoristas de ônibus, pessoas que continuaram pegando metrô, enfim, quem ficou muito exposto ou que perdeu muita gente querida vão ter que elaborar esse trauma vivido. Porque hoje as pessoas vão seguindo, no calor do momento, mas não era assim. Existia um ritual, uma despedida, um tempo para viver o luto, e hoje estamos abdicando desse tempo. E isso é um problema, porque ou vivemos esse luto, ou ele fica com a gente por muito tempo.
VB: O Brasil é o país em que o formato da série mais fez sucesso [a série é uma adaptação da produção israelense Be Tipul, com duas temporadas]. Por que você acha que isso aconteceu?
JV: Acredito que ela desmistifica o processo terapêutico, e também porque as pessoas se enxergam nos personagens. Todo mundo se identifica um pouquinho porque eles trazem situações que nos remetem a alguma coisa que vivemos anteriormente. É engraçado, o ser humano é diferente mas, ao mesmo tempo, tão parecido. Uma das coisas que mais gosto da série é que ela não se esgota justamente por isso. Você pode abordar os mesmos problemas novamente e ver outros ângulos porque as pessoas são diferentes, elas vivem as mesmas experiências de formas variadas.
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