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Ela morreu a 14 dias da imunização: as vítimas que a vacina poderia evitar

Claudia Hardt e a mãe, Dirce Hardt, vítima da covid-19 - Arquivo Pessoal
Claudia Hardt e a mãe, Dirce Hardt, vítima da covid-19 Imagem: Arquivo Pessoal

Anahi Martinho

Colaboração para o VivaBem, em São Paulo

04/07/2021 04h00

Duas semanas antes de receber a vacina contra covid-19, a aposentada Dirce da Cruz Hardt morreu, aos 62 anos, por causa da doença. Moradora da cidade de São Paulo, sem comorbidades para a doença causada pelo coronavírus, ela poderia ter recebido a primeira dose do imunizante a partir de 6 de maio. Mas, depois de ficar internada por um mês —sendo três semanas intubada—, ela não resistiu e veio a óbito em 22 de abril.

"Foi por muito pouco [que ela não se vacinou]. Tem dias em que a raiva e a revolta acabam se sobrepondo à dor do luto", diz a filha de Dirce, Claudia Hardt, 29, que produz conteúdo para redes sociais. "Quem morreu no ano passado é até compreensível, pois era uma doença nova. Mas é muito revoltante saber que já era para ela estar vacinada."

Claudia conta que, quando a mãe foi internada, ela disse: "Leva seu pai para vacinar". O marido da aposentada, que é cadeirante, também foi contaminado e chegou a ser internado, mas se recuperou.

Até agora, cerca de 13% dos brasileiros completaram o ciclo de imunização com as duas doses ou dose única da vacina contra a covid-19 —outros 36% tomaram a primeira dose. A campanha de vacinação começou em janeiro deste ano. Mais de 523 mil pessoas morreram por causa da doença no país.

À CPI da Covid, o epidemiologista Pedro Hallal, da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), citou estudos que indicam que entre 95,5 mil e 145 mil mortes poderiam ter sido evitadas se o Brasil tivesse assinado com maior antecedência os contratos de compra de vacinas da Pfizer e da Sinovac —que produz a CoronaVac em parceria com o Instituto Butantan—, ou tivesse aderido a um percentual maior de vacinas no consórcio Covax Facility, da Organização Mundial da Saúde, e a outras oportunidades.

O atraso na vacinação foi o responsável pela minha mãe ter partido tão cedo. Tenho certeza que ela estaria aqui ainda com a gente. Ela era saudável e ativa, nos check-ups anuais os médicos diziam que ela tinha saúde de uma menina de 20 anos."
Claudia Hardt, filha de Dirce

'É muito revoltante'

O comerciante Clebson Araújo Portela, que morava em São Luís (MA), tinha hipertensão —por isso, era do grupo de risco para a covid-19. Aos 47 anos, ele poderia ser vacinado a partir de 9 de maio na capital do Maranhão. Mas foi contaminado, internado e morreu em 24 de março.

Por poucos dias, ele teria se vacinado. É muito revoltante. Se a compra de vacinas não tivesse sido negligenciada, a vida dele e de outras pessoas poderia ter sido salva."
Marcela Garreto, viúva

Marcela lamenta a escassez de imunizantes, mesmo morando em um estado que está com o calendário de vacinação mais adiantado, na comparação com outras localidades.

Marcela e o marido, Clebson, morto de covid dias antes de poder se vacinar - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marcela e o marido, Clebson, morto de covid dias antes de poder se vacinar
Imagem: Arquivo pessoal

Ela conta que o marido foi intubado depois de uma semana com sintomas graves de covid, e teve uma parada cardíaca. "Numa segunda-feira, ele foi intubado. Foi a última vez que conversamos", conta. "Ele me pediu perdão e falou que sentia que não ia mais voltar pra casa."

Dois dias depois, ela recebeu uma ligação do hospital para comparecer com os documentos do marido. "Foi o pior momento da minha vida."

Hoje, Marcela está na casa dos pais, já vacinados, no interior do Maranhão. "Não consigo ainda encarar minha casa, ficar sozinha é muito dolorido."

'Escolher vacina é falta de empatia'

Todas as vacinas disponíveis no Brasil foram aprovadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e têm eficácia comprovada. Outros países que já atingiram porcentuais mais altos de imunização estão reabrindo os negócios, planejando receber turistas e até liberando o uso de máscaras nas ruas.

Diante da corrida contra o tempo para atingirmos a vacinação em massa, o médico Alexandre Naime Barbosa, do departamento de infectologia da Unesp, ressalta que o imunizante deve ser tomado o quanto antes —e da marca que estiver disponível.

"É muita falta de empatia do cidadão brasileiro querer escolher a vacina neste momento", diz Barbosa. "Em termos coletivos, a imunização precisa ser feita o mais rápido possível. Não há sentido nenhum em postergar a imunização, ainda mais no cenário em que estamos, com a doença totalmente descontrolada."

A taxa de transmissão (Rt) no Brasil chegou a 1,13 em junho, segundo o Imperial College de Londres. Isso significa que 100 pessoas infectadas com o vírus contaminam outras 113. A taxa deve se manter abaixo de 1 para que a contaminação seja considerada controlada.

'Caça à Pfizer'

Na capital paulista, a reportagem do UOLpresenciou pessoas abandonando a fila dos postos de vacinação ou nem chegando a descer do carro após saber qual era a vacina que estava sendo aplicada.

Moradora de um condomínio no Morumbi, bairro de alto padrão da zona sul paulistana, a publicitária Aline Araújo, 40, relata que o grupo de Whatsapp dos moradores do prédio virou uma "caça à Pfizer".

"Todos os dias no grupo tem alguém perguntando se sabem onde estão aplicando a Pfizer", diz. A irmã de uma moradora teria passado por oito postos em busca da Pfizer. Sem sucesso, deixou para se vacinar outro dia.

Ficar peregrinando para buscar a vacina de determinada marca é erro em cima de erro. É extremamente egoísta e mostra uma face triste do brasileiro. A pessoa está se condicionando a tomar uma vacina apenas para poder viajar, esquecendo da coletividade."
Alexandre Naime Barbosa, infectologista